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março 30, 2010
Sobre Desfazer o espaço por Fábio Tremonte
Sobre Desfazer o espaço
Fábio Tremonte
Especial para o Canal Contemporâneo
A exposição Desfazer o espaço, do norte-americano Gordon Matta-Clark, apresentada no MAM São Paulo até o dia 4 de abril é um convite a conhecer e refletir sobre a vigorosa produção desse artista morto prematuramente aos 35 em decorrência de um câncer, e que deixou um corpo de trabalhos que influencia muitos artistas até hoje.
Seus trabalhos mais conhecidos são os cortes em casas e prédios, intervenções na arquitetura. Matta-Clark estava, sim, discutindo o espaço, sem dúvida. Arquiteto por formação (formado pela Cornell University, no final dos anos 60), tinha na arquitetura e no espaço urbano sua atenção, preocupação e reflexão. Entretanto, dizer que suas intervenções nesse espaço são pura e simplesmente formais é um engano, assim como o é dizer a mesma coisa de Lúcio Fontana quando toma um estilete e corta a superfície de uma tela, mas isso pode ser assunto para um outro texto.
Quando Matta-Clark toma uma serra e parte a parede de uma casa ao meio (Splitting, 1974), ele está atacando um corpo, criado para abrigar outros corpos. A fenda criada não é apenas um corte, mas a criação de um outro espaço, a possibilidade de criar um "entre" entre exterior e interior. Há o risco de se machucar, pois pega a serra e parte para cima da construção sem o uso de equipamentos de segurança ou, talvez, um estudo da estrutura do edifício (aqui estou fazendo uma suposição, pois me agrada esse risco que corre).
Também cria esse espaço "entre" quando atira nas janelas do Edifício da sede do Instituto de Arquitetura e Estudos Urbanos de Nova York, em 1976, no trabalho intitulado Window blow out. A partir desses trabalhos e de outros em que o artista interfere na arquitetura, ao abrir uma fenda, ao quebrar uma janela, ao abrir um buraco na parede, permite que a luz natural invada o ambiente, o espaço, antes iluminado por luzes artificiais ou sem iluminação, no caso de edifícios sem uso, vejo que Matta-Clark está pensando na cidade e repensando e recriando seu uso, a sua apropriação.
Viveu isso intensamente em Nova York, quando as leis de zoneamento foram alteradas e permitiram que artistas ocupassem galpões abandonados em uma determinada região da cidade, conhecida posteriormente como SoHo. O deslocamento para uma região distante e a alteração no uso dos edifícios ali presentes e o contato com outros artistas e moradores dessa região estão intimamente ligados com essa atuação no espaço urbano.
Mas, não só de cisão na arquitetura é formado o trabalho de Matta-Clark. Estava interessado nos cantos, nos vão da escada, nos subterrâneos e também na vida coletiva. Participou de muitos trabalhos em parceria com outros artistas. Fundou, em 1971, um restaurante chamado Food, onde artistas se revezavam na cozinha, no serviço afim de juntar recursos para financiar seus projetos artísticos. Local que imediatamente se integrou a paisagem do SoHo, tornando-se ponto de referência entre os frequentadores da região.
Termino com dois trechos da entrevista feita com Matta-Clark e publicada na Arts Magazine, em maio de 1976 que foi traduzida para português no Guia da 27a. Bienal de São Paulo: "O mais importante é que escolhi não me isolar das condições sociais, mas lidar com elas, por uma implicação física, como ocorre com a maioria dos meus trabalhos com edifícios, ou por um envolvimento comunitário direto (...) O ato de cortar através de um espaço produz certa complexidade que envolve uma percepção em profundidade. Aspectos da estratificação provavelmente me interessam mais do que as inesperadas visões geradas pelas modificações - não a superfície, a camada fina, a superfície rompida que revela processo autobiográfico da sua feitura".
março 23, 2010
Cosmococas e Objetos Relacionais: a participação na encruzilhada entre o público e o privado por Lais Myrrha
“(...) a maioria criou um academicismo dessa relação ou da idéia de participação do espectador, a ponto de me deixar em dúvida sobre a própria idéia.” (Hélio Oiticica)
Sei do risco de recair em possível redundância ao escrever mais algumas páginas sobre esse ou aquele aspecto das obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica. Entretanto arvoro-me a fazê-lo. Menos com o propósito de constituir uma “nova” concepção do que para organizar algumas das minhas impressões e reflexões sobre as noções relativas à participação, à interação, à convivência e ao relacional nos trabalhos desses artistas.
Tomando como ponto de partida “o fim” de suas respectivas trajetórias (os Objetos Relacionais de Lygia e as Cosmoscocas de Hélio e Neville D’Almeida), minha hipótese geral é de que ambos os artistas transformam profundamente as noções de espectador/participador/público — e assim daquilo que é chamado de objeto da arte ou arte — ao negarem, de certa forma, suas invenções (para utilizar um termo de Oiticica) à esfera pública. Talvez, fosse melhor dizer que ambos recolheram suas invenções à esfera privada e creio que por motivos distintos e até em prol da esfera pública.
A noção de arte ou estética relacional que Nicolas Bourriaud atribui a uma fatia (para ele a mais importante) da produção artística da década de 1990 e que crê ser distinta da arte participativa dos anos de 1960, já está plenamente desenvolvida e madura nas obras de Lygia e Hélio; arrisco-me a dizer que de forma ainda mais radical e anárquica do que ele (Bourriaud) conseguiu conceber no seu Estética Relacional. Nesse livro o autor cria uma série de falsas oposições e “novidades” que só podem ser aceitas à custa de se aceitar um reducionismo eurocêntrico que coloca todas as experiências artísticas, européias e norte-americanas, dos anos 1960 e 70 no mesmo bojo e, ao mesmo tempo, desconsidera aquelas realizadas no hemisfério sul.
Grosso modo, o que ele diz ser a principal diferença entre a arte (participativa) produzida nos anos de 1960 e da arte (relacional) dos anos de 1990 é que a primeira estava comprometida em definir, ampliar, testar e tencionar os limites da arte, ou seja, convidava a uma subversão pela linguagem ; enquanto a segunda, a arte relacional dos anos 1990, privilegiava as relações externas de uma cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao rolo compressor da “sociedade do espetáculo” e estaria voltada sobretudo à criação de novos modelos de sociabilidade.
Aqui vale a pena mencionar que meu objetivo não é refutar os argumentos de Bourriaud e sua estética relacional (embora esteja tentada a fazê-lo). Entretanto como este livro tem sido amplamente utilizado como referência teórica tanto por curadores e quanto por artistas aqui no Brasil, penso que vale a pena trazê-lo à baila a partir dos dois pontos citados no parágrafo anterior, e confrontá-lo, demonstrando como o relacional e a problemática do(s) outro(s) (seja este outro o crítico, o historiador, o co-autor, o espectador, o leitor, o participador ou o público), já eram preocupações arraigadas e aprofundadas na produção de Oiticica e Clark, tendo sido uma das linhas de força propulsoras de suas pesquisas artísticas. Começando pela relação entre Hélio e Lygia que, em 1986, ela mesma assim define:
Hélio era o lado de fora de uma luva, a ligação com o mundo exterior. Eu, era a parte de dentro. Nós dois existíamos a partir do momento que há uma mão que calce a luva.
Afora as imagens dicotômicas que Lygia usa e que nos podem soar ultrapassadas, o mais importante desse depoimento é a dimensão do diálogo, da relação. O que ela marca é como a sua produção (e a de Hélio), dependiam desse diálogo, dessa relação e da relação com o outro, com o mundo exterior e esse mundo exterior não era restrito ao mundo da arte, mas estava intimamente relacionado à idéia de uma esfera pública, compartilhada e não homogênea.
Principalmente nas Cosmococas de Hélio e Neville e nos objetos relacionais de Lygia, suas preocupações não se limitavam a redefinir o campo, domínio ou linguagem da arte. Para eles a questão da esfera pública e da presença da arte na constituição e significação dessa esfera, deveria se dar através de processos dinâmicos que envolvessem negociações, jogos, confrontos, protestos, fricções.
Por isso, a partir do momento que, aqui no Brasil, essas possibilidades foram restringidas, tolhidas, e a liberdade de expressão cerceada em função da ditadura militar que instituiu o AI5 nos fins de 1968, Hélio, conscientemente, se retrai. Literalmente, declara sua retirada de cena. Em carta de vinte e três de dezembro de 1969 à Lygia, Hélio diz: No Brasil não quero aparecer nem fazer coisas públicas, pois seria uma compactuação com o regime; além disso, se eu não ficar quieto prendem-me.
Aqui fica claro que para Hélio a arte não deveria estar simplesmente situada na esfera pública, mas participar mesmo da sua constituição. Por isso, a partir do momento em que essa esfera foi colocada sob o controle repressivo e violento de um governo militar golpista, Hélio sai de cena. Graças a bolsa Guggenhein que recebeu em 1970, passa quase todo os anos dessa década em Nova York (retorna ao Brasil só em 1978). Nesse período envolveu-se com experiências em torno da expansão da linguagem cinematográfica que para ele deveria ser não-narrativa e com a construção de uma ambiência anárquica. De certa forma é uma expansão dos penetráveis e ambientes onde as pessoas poderiam se dedicar ao delírio-deleite (ao crelazer), ao play-papo.
Uma diferença que merece ser remarcada entre as Cosmococas, os penetráveis e os demais ambientes criados por Oiticica (incluindo ai o seu Éden) é que as experiências CC que foram realizadas, o foram em sessões privadas, no apartamento do próprio artista em Nova York. Depois que retornou ao Brasil nunca chegou a mostrá-las.
Durante os anos de 1978 e 1980 (quando morreu), Oiticica atua em alguns filmes, constrói um de seus penetráveis para servir de cenário para um filme, participa do evento Mitos Vadios (São Paulo) para o qual realiza a performance Delirium Ambulatorium e escreve texto homônimo. Promove o evento Caju-Kleemania, proposta para participação coletiva no que denominou acontecimento poético-urbano.
Esse evento realizado no Bairro do Caju no Rio de Janeiro também foi definido pelo artista, da mesma forma que as Cosmococas, como programa in progress.
Paulo Herkenhoff argumenta que as experiência CC de Hélio são uma crítica à sociedade de consumo (e do espetáculo) norte-americana, e que no Bólide Cara de Cavalo a critica é remetida à sociedade brasileira , e na base de ambas as obras subjaz a questão do crime. Numa o crime é duplo: a imagem do temido bandido Cara de Cavalo (que já seria a imagem do criminoso e assim a encarnação do crime) e, de outro lado, o seu assassinato pela polícia que também era um outro tipo de ação criminosa. Já as Cosmococas, segundo Herkenhoff, atuam como provas materiais de um crime. As fotos projetadas mostrando, as Mancoquilagens desenhos feitos por “carreiras” de cocaína — que funcionavam como uma espécie de maquiagem sobre retratos de celebridades (Merlin Monroe, Jimi Hendrix, Buñuel) para serem consumidos. Os slides (momentos-frames), não mostram o ato, a inalação, mas toda a parte material envolvida onde a ação ocorreu. Em algumas imagens chega a aparecer uma mão fazendo (ou retocando) o desenho.
Enquanto isso Lygia Clark desenvolve em Paris suas experiências sensoriais coletivas com grupo de alunos ou outros interessados: Baba Antropofágica, Cabeça Coletiva, etc. O que mais irá interessar aqui é no que essas experiências culminaram: nos Objetos Relacionais, com os quais Lygia irá trabalhar entre 1976 até sua morte em 1988 como elementos nas suas sessões de Estruturação do Self. Durante esse período a artista afirma categoricamente que o que está fazendo não é arte, mas uma prática terapêutica. Não há mais aqui espectador ou participador, há simples e puramente a relação, ela e seu cliente, não há terceira pessoa, não há testemunha, apenas duas versões, a dela e a do “cliente”.
Não há mais mercado da arte, ela cobra o tempo de uma sessão terapêutica, não há mais coleção, museu, exposição. Adentrar o campo da psicoterapia de certa maneira é (re)fazer a torção e o corte contínuo que ela propõem com seu Caminhando de 1963. Ela “entra” para arte em função de uma crise deflagrada após o nascimento de seu terceiro filho em 1947 e “sai” da arte para continuar revertendo, não mais só as suas, mas as crises do(s) outro(s). Ela está caminhando sobre uma fita de Moebius onde não se tem um dentro e um fora. O que passa a interessar à Lygia nessa nova volta pela fita de Moebius é a reinvenção do sujeito, é inventar uma nova maneira de estar no mundo, de relacionar-se.
Assim podemos concluir que o recolhimento a um domínio privado nas obras de Hélio e de Clark não nascem de uma necessidade de criar um espaço autônomo para suas práticas, ao contrário, vêm de uma necessidade de terem suas obras consumidas, tragadas pelo mundo, pela vida, pelo outro, pois desejam de alguma forma serem canibalizados, devorados porque, ao mesmo tempo, em que repudiam a estetização da participação não se sentem mais como detentores da potência engendrada pelas suas proposições. Nas palavras de Hélio: O que acho é que o lado formal do problema (da participação) foi superado, há muito, pelo da “relação nela mesma”, dinâmica pela incorporação de todas as vivências do precário, do não-formulado, e às vezes o que parece participação é apenas um detalhe dela, porque na verdade o artista não pode medir essa participação, já que cada pessoa vivencia de um modo.
É justo essa relação nela mesma que vai gerar a radicalidade, tanto das Cosmococas quanto dos Objetos Relacionais. A relação nela mesma, o acontecimento, o imponderável e imaterial da obra é que pode estender-se pelo mundo e modificá-lo, mesmo que em pequena parcela. É dessa parte imaterial, daquilo que não está lá, é que nascem os relatos, que se dá a criação do outro sobre qualquer proposição artística. “Não basta o factual: isso e aquilo; as palavras e a escolha dos termos e a construção (como num poema) é que dão a dimensão ao relato da coisa ” é o que recria, modifica ou destrói a coisa. Mas, à Hélio, incomodava a emergência de uma cultura da participação, ou melhor, que um maneirismo participativo deixasse a “descoberta/invenção do artista ser reduzida às mesquinharias idiossincráticas do espectador que não existe mais. Quem vive o que você (Lygia) propõe e dá ou vive ou não vive, mas nunca fica na posição de “assistir” como de fora! Voyeurs da arte!” .
Esse espectador que não existe mais foi eliminado definitivamente da obra de Lygia que o transformou em cliente ou em nada/ninguém, no qualquer; naquele a quem desafiou com sua prova do real. Com um seixo colocado entre a sua mão e a do outro construiu uma ponte , a única na qual ainda acreditava que pudesse caminhar.
Bibliografia
BATTCOCK, Gregory (Org.).A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1968. Debates)
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional; (trad.) Denis Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CLARK, Lygia e OITICICA, Hélio. Cartas 1964-74 (org.) Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
Hélio Oiticia e Neville D’Almeida. Cosmococa programa in progress. (Catálogo)
Lygia Clark: da obra ao acontecimento. Somos o molde a você cabe o sopro. Exposição organizada pelo Musée des Baux-Arts de Nantes, França e pela Pinacoteca do estado de São Paulo. Curadoria: Suely Rolnik e Corinne Deserens.( Catálogo da exposição).
PEDROSA, Mário. Mundo, Homem, Arte em crise (org.) Aracy Amaral. São Paulo: Perspectiva,1986. (Debates)
Questão de Método por Antonio Malta Campos
Recentemente, tive uma discussão com amigos, um crítico de arte com formação em filosofia e um artista plástico que gosta de escrever e desenhar histórias em quadrinhos. Impropérios à parte, coloquei algumas questões relativas à Crítica de Arte, que considero pertinentes. Não posso dizer que meus amigos concordaram com o que eu disse. Eles colocaram outras questões, e também não posso dizer que concordaram entre si. O fato é que o Canal Contemporâneo estava escutando a conversa (pela Internet) e me pediu para escrever um ensaio sobre o assunto. Acabei escrevendo um texto que não reflete exatamente o que eu disse, mas chega perto. É incrível como podemos formular as mesmas questões de maneiras diferentes; depende do dia. De qualquer forma, aí vão minhas considerações.
De forma geral, a primeira abordagem a ser lida por interessados em Arte é a abordagem histórica. Comigo não foi diferente. Mas tenho um problema com essa abordagem, pelo fato de ser artista plástico. A História da Arte situa os artistas, as obras e os movimentos em períodos históricos bem definidos. Os períodos históricos estão irremediavelmente situados no passado. É como se tudo já tivesse sido feito. No meu trabalho artístico, porém, preciso começar de algum lugar. De algum lugar não: de algum artista, de alguma obra, de algum “estilo”, de alguma técnica. Começo copiando alguém. Aliás, todo mundo faz isso: é uma necessidade. No meu trabalho, portanto, violo o princípio básico da História da Arte, ao trazer para o presente o que estava fossilizado no passado. Uma maneira mórbida de colocar isso (minha preferida) é pensar a História da Arte como um cemitério: é só arrombar o portão e saquear os túmulos. Eu me vejo fazendo isso o tempo todo, e é ótimo. Recomendo. A vantagem de pensar a História da Arte dessa maneira (um cemitério) é que a narrativa temporal é substituída por uma estrutura espacial, onde fica fácil mudar a posição das peças, misturando tudo em função da necessidade criativa. Não deve ser surpresa, então, o fato de eu preferir a análise científica em lugar da abordagem histórica.
Nas Ciências Humanas existem abordagem que poderiam ser vistas como científicas. Um dos marcos iniciais dessa tradição de pensamento é a Línguística. Mais exatamente, o “Curso de Linguística Geral”, de Ferdinand de Saussure (primeira edição, 1916). É um livro póstumo, escrito por seus alunos, que tomaram notas das aulas. O que Saussure estuda é o funcionamento da língua (a linguagem que usamos para nos comunicar, não o músculo). Ele conclui que a língua é um sistema de oposições de signos linguísticos. Signos, por sua vez, são constituídos de significante e significado. Cito um trecho da página 139 da edição brasileira da editora Cultrix: “(...) na língua só existem diferenças. E mais ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema linguístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste sistema. O que haja de idéia ou de matéria fônica num signo importa menos que o que existe ao redor dele nos outros signos. A prova disso é que o valor de um termo pode modificar-se sem que lhe toque quer no sentido quer nos sons, unicamente pelo fato de um termo vizinho ter sofrido uma modificação.”
A Linguística teve vários descendentes teóricos, entre eles a Semiologia e o Estruturalismo. A Semiologia é um termo cunhado pelo próprio Saussure, que previa, em função de seu Positivismo, uma disciplina que “estudaria os signos no meio da vida social” (Teixeira Coelho, “Semiótica, Informação e Comunicação”, Editora Perspectiva, pág. 17). Essa disciplina extrapolaria a Linguística, ao aplicar o método semiológico no estudo de signos de toda espécie. A Semiótica, que teve uma origem independente com Charles S. Pierce, se diferencia pelo uso de relações triádicas entre Signo, Interpretante e Objeto.
O Estruturalismo teve origem na Linguística de Saussure e em autores que desenvolveram essa teoria, como Roman Jakobson. No “Dicionário de Filosofia”, de Nicola Abbagnano (ed. Martins Fontes), há um pequeno resumo sobre o Estruturalismo. Cito trechos: “O Estruturalismo manifestou sua oposição a três frentes: historicismo, idealismo e humanismo. Contra o historicismo, que é (...) uma interpretação da realidade em termos de devir, desenvolvimento e progresso, [o Estruturalismo] afirma o primado da concepção (...) que considera a realidade como um sistema relativamente constante e uniforme de relações (...) considerando as mudanças temporais como transformações nas relações (...). Contra o idealismo, o Estruturalismo afirma a objetividade do sistema de relações (...). Contra o humanismo, o Estruturalismo afirma a prioridade do sistema em relação ao homem.”
Não sou um especialista em Estruturalismo, mas sei que autores como Lévi-Strauss, Michel Foucault, Jacques Lacan, Roland Barthes, Julia Kristeva, Derrida, Bourdieu, Althusser e Jacques Rancière estão relacionados a essa forma de pensar. Nos Estados Unidos, a teoria desenvolvida por estes autores recebe, às vezes, o nome pouco exato de “French theory”. O impacto dessa teoria nos meios acadêmicos norte-americanos foi considerável, principalmente durante os anos 60 e 70. No Brasil, aliás, não foi diferente. Eu mesmo estudei Semiótica na FAUUSP, na disciplina de Design. Na época não entendi muita coisa. Depois, lendo Umberto Eco na coleção da Editora Perspectiva, entendi um pouco mais.
Antes da Semiótica, havia lido “Art and Visual Perception” de Rudolph Arnheim. Gostei da Teoria da Gestalt imediatamente. Na introdução de seu livro, Arnheim explica que “gestalt”, em alemão, significa “forma”. Em 1890, no ensaio “Ueber Gestaltqualitaeten”, o psicólogo vienense Christian von Ehrenfels já havia demonstrado que a percepção de um dado elemento depende de sua relação com o todo. O ponto que Arnheim enfatiza é que para a Teoria da Gestalt, a visão não seria simplesmente um receber mecânico de estímulos visuais, e sim um ato criativo em si; “ver” seria organizar as sensações visuais em um todo estruturado e coerente. Disso decorre que os padrões de estrutura percebidos pelo olho seriam expressivos (a linha horizontal parece estar em repouso, a linha diagonal é dinâmica). Essa abordagem me interessou muito, bem como o estudo do signos e posteriormente o Estruturalismo. O que faltava era um autor que aplicasse isso na Crítica de Arte.
Em 1999, um pouco por acaso, descobri essa autora. Minha orientadora de mestrado, Vera Pallamin, havia trazido alguns livros dos Estados Unidos, entre eles “The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths”, de Rosalind Krauss (The Mit Press, 1986). Nunca havia ouvido falar de Krauss, conhecidíssima nos Estados Unidos. Comecei a ler... e era exatamente isso: uma crítica de arte de tendência estruturalista. Na introdução de seu livro, Krauss explica como entrou em contato com o Estruturalismo, e como essa abordagem entrou em choque com o historicismo de Clement Greenberg. Cito: “Quando, mais de vinte anos atrás, “Art and Culture” apresentou a obra crítica de Clement Greenberg para a geração de artistas e críticos que iria surgir nos anos 60, o que foi apresentado aos seus leitores foi um sistema através do qual o Modernismo artístico podia ser pensado. E este sistema, ou método – frequentemente referido, sem muita exatidão, como formalista – produziu um efeito muito maior do que as particularidades do gosto pessoal de seu autor. Greenberg, e isso é só um exemplo, não endossava o trabalho de Frank Stella, mas a lógica do sistema de Greenberg e a importância dada à planaridade (flatness) enquanto essência pictórica ou norma forneceram o quadro conceitual a partir do qual a primeira década da produção de Stella foi compreendida e aclamada. Profundamente historicista, o método de Greenberg concebe o campo da arte como atemporal e ao mesmo tempo em constante fluxo. Isto significa considerar que certas coisas, como a própria arte, a pintura ou a escultura, ou a obra prima, são formas universais e trans-históricas. Ao mesmo tempo, isso também é acreditar que a vida destas formas depende de uma renovação constante, não muito diferente do que ocorre com o organismo vivo. A lógica histórica desta renovação foi o que ensaios como “Collage” ou “American-Type Painting” tentaram desvendar (...)” (Pág. 1, tradução minha).
Krauss afirma em seguida que “praticamente tudo em “The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths” está em contradição com esta posição [de Greenberg].” Krauss explica que o Estruturalismo rejeita o modelo historicista como meio de se compreender a obra de arte. Universos de investigação como “intenção estética” e “contexto biográfico”, e categorias como “obra de arte”, “autor”, “medium” e “obra do artista”, passam a ser questionadas em sua validade, já que pressupõem uma “unidade do organismo estético” que evolui no tempo.
Inútil dizer que eu me apaixonei imediatamente por esse tipo de abordagem. Mais ou menos na mesma época, comprei “Arte e Cultura”, de Greenberg (Ática, 1996). Resolvi dar a Greenberg o benefício da dúvida, e li com atenção seus conhecidos textos, como “Vanguarda e kitsch” (1939). Neste texto, que abre a coletânea, Greenberg afirma: “Surgem a ‘arte pela arte’ e a ‘poesia pura’, e o tema ou conteúdo torna-se algo a ser evitado como uma praga. (…) Ao desviar sua atenção do tema da experiência comum, o poeta ou artista se volta para o meio de seu próprio ofício. (…) Picasso, Braque, Mondrian, Miró, Kandinsky, Brancusi, até mesmo Klee, Matisse e Cézanne, tiram sua principal inspiração do meio no qual trabalham. A excitação de sua arte parece consistir acima de tudo em sua preocupação pura com a invenção e o arranjo de espaços, superfícies, formas, cores etc., excluindo tudo que não esteja necessariamente implicado nestes fatores.” Esse trecho mostra que Greenberg estava na direção correta, ao ver a Arte Moderna como uma experiência formal; ao mesmo tempo, há uma ênfase no “meio” que não explica completamente a diferença entre os artistas citados. De qualquer forma, li Greenberg com a mesma atenção com que li Krauss, e considero que ela explica melhor alguns episódios da Arte Moderna, com seu método estruturalista. Um desses episódios é de particular interesse para mim, pois envolve Picasso (o túmulo que mais saqueio). Trata-se das colagens cubistas. Greenberg escreveu sobre as colagens, e o texto faz parte da coletânea “Arte e Cultura”. Quando o li, achei-o confuso. É óbvio que Greenberg não entendeu o que estava olhando. Para ele, os diversos recursos empregados na colagem (jornal, papel pintado) seriam personagens de um drama plástico, pois a planaridade do meio estaria ameaçando a figuração cubista. Quando li essa interpretação, desconfiei imediatamente. Ela não faz sentido. Não há nada que indique que Picasso estava lutando contra a planaridade, ou que esta estivesse atrapalhando seus objetivos figurativos. O que Picasso sempre evitou foi a abstração. Realmente, em um momento do cubismo analítico, em 1910, sua pintura ficou praticamente abstrata. Existem motivos para acreditar que por mais “pura” que estivesse a pintura, Picasso estava insatisfeito com esse resultado. A colagem cubista, porém, surge em 1912, quando Picasso retoma a diferenciação figura/fundo que havia abandonado. É o início do cubismo sintético. A colagem não é uma expressão do problema, mas uma parte da solução. É na colagem que Picasso e Braque conseguem retomar a pintura figurativa, agora em novas bases. Pois é através da colagem que esses artistas exploram, com total liberdade, as propriedades do signo visual.
Rosalind Krauss escreveu bastante sobre a colagem cubista. Ela é a maior autoridade sobre o assunto. “The Picasso Papers”, livro de 1998, tem um capítulo sobre as colagens. Em “The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths”, existe um texto sobre Picasso, “In the Name of Picasso”, que foi escrito por ocasião da retrospectiva de Pablo Picasso no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1981. A primeira parte do texto é uma crítica às colocações que explicam a obra de Picasso em função da sua biografia. Na segunda parte, Krauss discorre sobre as colagens. Krauss explica que, para Saussure, o signo linguístico funciona a partir de duas condições básicas: a) a relação arbitrária entre significante e significado, onde o significante é a parte material do signo e o significado é um conceito imaterial; b) a definição da língua como um sistema de diferenças, onde os termos (signos) não tem significado fixo. As colagens cubistas seriam uma exploração sistemática das condições da representação figurativa do signo visual. Analisando a colagem Violino, de 1912, Krauss mostra como o mesmo jornal, com sua textura característica, é utilizado para compor os signos tanto do espaço em profundidade como da superfície opaca do corpo do violino. A diferença de posições dos recortes de jornal, um como parte do desenho do violino e o outro acima, à direita, funcionando como fundo para a figura do violino, faz com que o mesmo elemento significante tenha significados opostos: opacidade e transparência, figura e fundo.
Como artista plástico que sou, identificado com a forma arbitrária como Picasso manipula os elementos de suas colagens, não posso deixar de concordar com Krauss. Sua análise é perfeita, e se aproxima muito do que o próprio Picasso deveria estar pensando ao fazer as colagens. É claro que ele não precisaria conhecer a teoria de Saussure (publicada depois) para chegar nesse resultado; a manipulação dos signos visuais vinha se dando desde o início do cubismo, um pouco sob influência dos poetas, como Mallarmé, que haviam feito experiências semelhantes na Poesia.
No Brasil, há um autor que também escreveu sobre as colagens: Alberto Tassinari. Em “O Espaço Moderno” (Cosac&Naify, 2001), Tassinari tenta compreender a Arte Moderna por meio de uma conceituação do seu espaço: “Uma compreensão por negação do espaço da arte moderna sempre foi possível (…) como sendo não perspectivo. Mas se a destruição do espaço perspectivo pelo Modernismo foi habitual nas reflexões sobre arte moderna, o mesmo não se deu para um conceito positivo do seu espaço, que dissesse mais o que ele é e menos o que não é.” No capítulo “Generalizando a Colagem” Tassinari elabora a noção de “espaço em obra”. O espaço da obra não é reprodução de um outro espaço, como na perspectiva renascentista, mas é um espaço “se fazendo”. E ainda: “Um espaço em obra imita, por meio dos sinais do fazer, o fazer da obra”. A colagem que Tassinari estuda é Guitarra, de 1913 (MoMA).
Na minha discussão amigável com amigos, muitos dos meus impropérios foram dirigidos a esse livro de Tassinari (nada pessoal, é apenas uma discussão conceitual). É um livro peculiar; é uma tese absolutamente original, que não tem precedentes na discussão internacional sobre Arte Moderna, até onde eu sei. O próprio Tassinari indica isso ao mencionar, em nota, que Yve-Alain Bois e Krauss, em “Formless: a User’s Guide”, discordam da abordagem que usa do conceito de “espaço”. Eu realmente não consigo entender como a idéia de “espaço” pode ser utilizada para explicar uma pintura ou uma colagem, que são superfícies planas. Em artistas como Richard Serra, o espaço é parte da obra; até aí eu vou. As tendências abstratas modernas fazem uso de elementos plásticos que incorporam o espaço; isso é um fato. Mas isso não significa que esse conceito possa ser indiscriminadamente utilizado para explicar algo como a “arte moderna” ou a “arte contemporânea”, que abrigam obras diferentes entre si. Para mim, nem a pintura renascentista, nem a moderna, fazem uso do “espaço”. O que elas trabalham é a representação figurativa do espaço, ou então a ausência dessa representação (abstração). Representação (signo) não deve ser confundida com objeto representado (objeto no espaço). Me parece que a teoria de Tassinari tem vida própria e se descola dos fenômenos que ela pretende elucidar. Ou então é um problema de conceituação. Ao escrever “Um espaço em obra imita, por meio dos sinais do fazer, o fazer da obra”, Tassinari parece estar elaborando uma teoria do signo, pois “imitação” e “sinais” fazem referência a um sistema de representação. Espaço, aí, é signo.
Bom, que venham os impropérios.
março 15, 2010
Da memória à memória, ou entre marca e esquecimento por Alessandra Monachesi Ribeiro
Da memória à memória, ou entre marca e esquecimento – divagações a partir da exposição Monumenta 2010 / Personnes de Christian Boltanski no Grand Palais, em Paris.
Lá estou eu, perdida no Grand Palais.
O Grand Palais é uma construção feita para uma feira mundial dos idos de 1900, toda em vidro e ferro retorcido. Muitos franceses acham-na horrorosa, mas não. Para mim, é maravilhosa, monumental, digna da grandeza e da delicadeza arquitetônica dessa cidade.
Os semi-círculos verdes se repetem entre cada coluna que ladeia um imenso hall vazio. Ou nem tanto, já que no verão deve ficar repleto de luz e de azul de uma beleza insuportável que chega até a doer, como eu mesma já pude constatar numa tarde ensolarada de começo de outono. O Grand Palais não é fácil com o que quer que se ponha lá dentro.
Então Christian Boltanski coloca, logo na entrada, uma parede de caixas de ferro numeradas, iluminadas e enferrujadas pelo tempo. A passagem do tempo e essa parede silenciosa a nos lembrar dela de maneira irrevogável. Cada número uma pessoa, uma pessoa que passou por ali mas, por onde ?
A parede impede que o olhar descubra o imenso hall do Grand Palais logo de cara e, quando isso acontece, é um choque. Boltanski adora brincar com o espaço e nos enredar de imediato em seu ambiente. A parede de cores quentes e luz quente e melancólica que ainda nos parecia próxima dá lugar a uma imensidão… de roupas. Roupas espalhadas pelo chão compondo indistintamente quadrados de roupas cercadas por postes de métal e iluminadas por uma luz baixa e fria. Boltanski é esperto : fossem apenas todas as roupas espalhadas pela imensidão do Grand Palais e não haveria quem agüentasse. Quadrados de roupas cercados e seriados por luzes frias… não chega a ser um deleite, mas é uma dor suportável.
As cores se perdem no excesso de cada uma delas e tornam-se uma massaroca pálida e indistinta. Nem o vermelho, nem o laranja, nem o amarelo ajudam. A luz invernal adentrando todo o telhado do Grand Palais e suas colunas esverdeadas e a luz fria seriando cada quadrado de roupas estendidas no chão gelam o ambiente, pesam com o doloroso peso das memórias esse lugar tão leve.
Impossível não lembrar das fotos feitas nos campos de concentração, das montanhas de roupas empilhadas, das pessoas que deixaram de existir e rechear essas roupas. Não se trata de uma referência direta, mas a memória coletiva inundada dessas imagens não consegue evitar a alusão. Ainda mais sendo Boltanski, ainda mais sendo um judeu, ainda mais sendo em Paris, na França, em tempos de recrudescimento de uma xenofobia que não foi enterrada ou esquecida, mas ficou ali de lado, cozinhando e ganhando corpo, até estar a ponto de explodir, como parece ser o caso nos dias atuais. A memória das coisas não nos ensinou nada.
As roupas de Boltanski estendidas no chão são todas de inverno. Casacos, malhas, blusas. Deveria ser tão quentinho e, no entanto…
No fundo do hall uma pilha gigantesca de roupas e um guindaste que, incessantemente, retira algumas roupas da pilha, suspendendo-as bem alto para, em seguida, soltá-las. Na realidade, isso se vê antes ou junto com os quadrados de roupas no chão, logo que o muro de caixinhas numeradas revela a imensidão desolada daquele hall. O guindaste enorme e maquínico que retira e devolve aquelas roupas. Elas vão e voltam a compor aquela massaroca, uma indistinção de cores, de gente, de histórias. Algo sai dali apenas para voltar no instante seguinte. Não vai para algum outro lugar, não se destaca, nunca difere.
Um som de fundo grave como um tambor ecoa por toda a imensidão do Grand Palais e, frente a cada quadrado de roupa estendida, o som de um coração batendo. Sim, o som de um coração batendo como em um ecocardiograma, cada coração batendo de um jeito, em um ritmo, mas muitas batidas de coração. Heartbeat.
Na exposição elles@centrepompidou, a respeito da qual divaguei recentemente noutro texto aqui neste Canal, Nan Goldin fez sua versão de Heartbeat : fotos desfilando como diaporama ao som de Björk cantando Prayer of the heart de John Tavener em uma Clara alusão à sacralidade do amor. Ali, pessoas insignificantes e cotidianas, casais, permitem à lente de Nan Goldin o convívio com suas intimidades. Cenas bannais, gestos, detalhes. Cenas de carinho, de amor, de desejo. A luz quente que destaca cada banalidade como algo extremamente significativo na vida de uma pessoa. O heartbeat de Nan Goldin é quente, cheio de desejo, torna cada sujeito especial em se user mais comum.
Christian Boltanski, em Personnes, é como o oposto de Heartbeat. As pessoas de Boltanski se perdem umas em meio às outras. Elas se dissolvem até não sobrar mais o que as distingue, o que as faça terem existido. Um coração, uma roupa, uma luz, um calor, um amor… tudo se perde na passagem do tempo e na opacidade da memória tão frágil, tão vulnerável, que tudo registra para logo em seguida esquecer. As pessoas de Boltanski não são nada.
Curioso como ele sempre trata disso, da memória frágil frente à passagem do tempo que a carrega consigo. Tente agrupar todas as listas telefônicas do mundo inteiro de um determinado ano, como ele fez na instalação permanente do Musée d’art moderne de la ville de Paris, e logo se vê que esse destaque, esse registro trabalham contra eles mesmos. O que é destacado se desfaz no caldo de seu proprio contorno. Tente juntar todas as roupas de crianças de uma dada referência, ou as fotos de pessoas em determinada situação. Estão todas ali, alguém as guardou, as salvou do esquecimento, as transformou em obra de arte mas, em seguida, em sua profusão é para que ninguém as veja, é para que sejam apenas sua ausência, a inescapabilidade de sua ausência. O tempo passou, elas se foram, as marcas do artista ajudaram a garantir sua desaparição. Boltanski é quase uma encarnação do arquivo de Derrida que trabalha contra e por sua própria extinção. Um jogo contra a morte que a torna presente de um jeito inevitável. Não sua evitação, mas sua presença como ruído de fundo constante, coração que bate de quem já morreu, presença que mostra a ausência. A perpetuação proposta nos trabalhos de Boltanski de tudo o que é banal e comum serve para fazer desaparecer.
Nan Goldin destacou um a um, de um jeito que não há como desaparecer. Como diria Lacan sobre a mulher, que se diz uma a uma. Ou sobra a singularidade do sintoma, o sintoma sendo a singularidade do sujeito. O um a um de Nan Goldin é um em relação ao outro, um para o outro, cada um para alguém que soube que ele existiu, para quem esse alguém fez indelevelmente marca. Será essa a única maneira de não desaparecer ? Será que permanecer depende do outro, de um a um ?
Alessandra Monachesi Ribeiro – psicanalista, doutoranda na área de arte e psicanálise pelo Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ com estágio doutoral no Centre de Recherches en Psychanalyse et Médicine da Université de Paris VII e bolsa de estudos da CAPES.
março 4, 2010
Verdade e blefe na arte contemporânea por Rafael Campos Rocha
Crônica de uma viagem ao Rio
A. é cheia dos mais diversos preconceitos camuflados nas mais diversas formas do argumento liberal pequeno-burguês (uma classe extinta, mas que sobrevive como Espírito). Todos conhecem alguém como A. no mundo da Arte. Ela vem não sabemos de onde, papagueia piratas até o ponto de tornar-se contramestre e, por fim, abre alguma iniciativa de Arte altamente complexa, conceitualmente inextricável, ou simplesmente uma galeria de baixo-calibre e repercussão cultural nula. Foi para conversar com A. que fui ao Rio de Janeiro e, como as pessoas nunca surpreendem, fui incrivelmente embrulhado e colocado na soleira da porta do artista Afonso Tostes, célebre boa-cepa das montanhas mineiras albergado perenemente na Baía de Guanabara. Nesse momento termina minha viagem-blefe e começo a trabalhar. Afinal, todos sabemos que a especialização do crítico é ver o que ninguém vê em um lugar onde todos estão olhando. De preferência um lugar branco, higienizado de gente pobre e feia (e, portanto incapaz de comprar arte). O cubo branco é o cachorro morto querido da arte contemporânea. Como a falsa-consciência da falsa esquerda, todo mundo chuta da boca pra fora para ansiar entre quatro paredes estar dentro de suas quatro paredes. Por isso quando ouço alguém gritar contra a institucionalização da arte escuto: “Papai do Céu, se você me colocar na Bienal de São Paulo prometo parar de urinar no crucifixo, porque o Senhor me disse que era plágio“.
Mas se tem uma coisa que a crítica institucional tem razão é que ela tem razão. Trabalhos no estúdio ganham a alma e a vida que vendem aos curadores (sob a pena de nunca venderem a Carne para ninguém) que naturalmente perdem na higiene do museu e da galeria. O trabalho de Tostes, que é o trabalho de um artesão desempregado num mundo tecnológico tem justamente o desinteresse da artesania em um mundo que não mais necessita dela. Assim, ao polir suas tíbias e sua sensacional caveira com coluna vertebral, Toste atinge as ressonâncias místicas das contas de madeira tibetanas, buriladas infinitamente com o objetivo (objetivo é uma palavra contraditória nessa situação) de elevação da alma do comezinho do mundo, justamente por um mergulho nesse comezinho, assim como Bataille, Genet e Sade transcendem a necessidade material pelo mergulho na necessidade material.
Dessa forma, e ainda que meu argumento seja um pouco old-fashion (ou será que o século XVIII voltou à moda? Preciso me informar) a verdade do trabalho de Tostes vem justamente do seu desinteresse de inserção institucional por meio dos grandes temas político-artísticos em prol de um fazer infinito de uma peça que, ao acabar como objeto, deixa somente o detrito da atividade para o “mundo da arte”. É, cá pra nós, o que o artista lega às exposições é realmente o detrito de sua atividade como artista. A não ser que seja um blefe. Um fazedor de objetos tão reificado quanto os mesmos. Um não-pensador livre, alienado de sua obra e de si mesmo e adestrado pela engrenagem da venda de obras de arte. Como quer A., nossa heroína inicial.
Evidentemente, a donzela daria o argumento que o objeto de arte é sempre desinteressado, porque serve ao olhar contemplativo do burguês esclarecido (outra classe desaparecida que sobrevive como Fantasma). Isso se ele conseguir desviar os olhos do home theater por um segundo e ver as belas alternâncias de cores do pintor M ou S.
Mas o que A não sabe é que o artista autêntico sequer faz as coisas para a contemplação. Ele somente faz. Essa atividade démodé no mundo da delegação digital. E é essa instância artesenal, algo heideggeriana, que habita um artista como Tostes. Não um fazer propriamente manual, mas um fazer cujo objetivo é fazer. Por isso mesmo, uma peça pode manter a arte sendo utilitária, como o sensacional calço de alumínio que Tostes fundiu, usando uma cunha de madeira como modelo. Fundir aqui constitui esse ato desinteressado de experiência intelectual que caracteriza a atividade artística, transformando o calço de tostes (assim como várias peças utilitárias de Duchamp) em uma obra como as infindáveis variações formais da pintura de Sean Sculli não conseguem ser. O genial Gabriel Sierra pode confirmar o que estou dizendo sem abrir a boca, apesar da reificação (não-intencionada, é bem verdade) de sua obra na última Bienal.
Minha visita teve outro momento marcante que gostaria de compartilhar. Ao conhecer o apartamento de um célebre pintor, deparei com sua coleção, que ratifica o que tenho dito: também no ato de colecionar, o artista-intelectual não necessita da chancela do mundo da arte para escolher suas peças. Afinal, um artista renomado poderia alardear seu apoio á outros artistas e, pior ainda, comprar somente peças que ratificariam sua própria obra, como fazem alguns professores de pintura em São Paulo. Mas ali não, pelo contrário. O artista-colecionador parecia nutrir uma curiosidade sincera e indomável pela Diferença, o que mostra, de mais a mais, a sabedoria de quem sabe que o Outro não passa do Si Mesmo. E muitas vezes melhorado. A modéstia do artista-colecionador contrasta com a soberba do colecionador-capitalista, que acredita comprar o artista por meio da obra, para depois armazená-lo em seu arquivo de coisas-pessoas e pessoas-coisas.
Pois bem, naquela coleção vi uma obra notável de um artista que cada vez me agrada mais: Rodrigo Matheus. Suas peças de escritório desfuncionalizadas fazem não somente a crítica à produção como a crítica a efetividade dessa crítica, deixando mesmo pouco espaço para a interpretação a posteriore. A peça em questão era um desses avisos de feltro, protegidos por um vidro, em que se pregam avisos com alfinetes coloridos. O quadro não continha avisos, como para confirmar a teoria de Lorenzo Mammi de que muito a melhor arte contemporânea trata da sua própria impossibilidade de dar significado para os eventos maiores da vida contemporânea. O trabalho de Rodrigo Matheus espantou esse pobre crítico, num primeiro momento, pela sua dessemelhança para com a produção do pintor-colecionador. Ingenuidade minha. Ao apontar a Diferença como mera ideologia, o artista-como-colecionador ensinava mais uma vez uma pessoa a ver e preferir à verdade ao blefe. Ainda que ambos sejam relativos e tenham a vida curta das coisas do homem.
p.s- A. nunca mais foi vista no Brasil. Parece que perambula pelas ruas de Paris perguntando pela “cultura séria” e “profunda” e somente esbarra horrorizada nos sorrisos enormes e na pele negra dos novos donos da cidade. Mas isso são somente boatos de gente maldosa que não consegue espaço em sua agenda imaginária.