|
novembro 26, 2009
A mediação como compartilhamento por Diogo de Moraes
Jacques Rancière - A partilha do sensível
do “seu” lugar, o espaço doméstico do trabalho, e lhe dá o “tempo” de estar no
espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante.”
Ao receber o convite para escrever este artigo, me pus a pensar nos diversos contextos, situações e circunstâncias em que a mediação pode ser realizada. Em princípio, o convite trazia como sugestão o desenvolvimento de uma abordagem pelo viés da arte-educação, designação representativa das práticas educativas acerca da produção e fruição das artes visuais. No entanto, certo de sua abrangência e versatilidade, optei por considerar a prática mediadora em uma perspectiva ampliada, evitando concentrá-la em um campo ou exemplo específico.
Neste sentido, dedicarei minhas ponderações à tentativa de indicar algumas direções a este tipo de atuação, na medida em que se mostrem (ou não) substanciais. Já de saída, destaco a seguinte pressuposição: levando em conta determinados aspectos da contemporaneidade – globalização, fluxos migratórios, circulação ininterrupta de informações e bens de consumo, conflitos civis e militares, multiplicação dos meios de comunicação, fragmentação da família e super-povoação das cidades – a figura do mediador surge como elemento chave nos processos de intercâmbio cultural e compartilhamento de saberes, contribuindo para a dinamização e incremento das interações sociais.
A opção por espraiar a reflexão revela uma indisposição em tratar a mediação como disciplina do saber, associada a um gênero artístico, como é o caso da arte-educação. Parece-me mais produtivo considerá-la como não-disciplina, sem lugar discursivo definido, desprovida de “caixa de ferramentas” teórico-prática e/ ou repertório próprio, justamente por ela, enquanto procedimento interativo volúvel e influenciável, de negociação permanente, posicionar-se e desenvolver-se em zonas intermediárias, de traçado impreciso: entre as coisas, os saberes e as pessoas. Talvez esta identidade difusa, circunstancial, seja justamente o seu principal trunfo.
Ademais, este desvio em relação à sua afirmação como ramo do conhecimento tende a potencializar e ampliar a performance mediadora naquilo que ela tem como proposta: intervir para promover relações significativas entre sujeitos e entre sujeitos e objetos, o que não corresponde a uma suposta anulação de conflitos, incomunicabilidades, desinteresses, antipatias e insucessos. Ao abdicar de estratégias pré-concebidas, o mediador, antes de mais nada, tem de assumir e cultivar uma atitude perscrutadora, de escuta, sustentando as dúvidas em lugar de rechaçá-las, buscando perceber os indivíduos e elementos do processo no meio do qual ele se coloca e atua, como agenciador, para aí sim proceder sua abordagem.
A plataforma (momentânea) em que o mediador atua, por não estar definida de antemão, é formada em tempo real, com os elementos presentes e suas respectivas contribuições, durante a interação com os sujeitos e os objetos em questão. Sua composição, para evocarmos um exemplo, assemelha-se muito mais a um círculo à altura do chão, formado pela posição dos corpos e dos objetos, do que a uma edificação elevada, alicerçada por estruturas e metodologias. Assim, corresponde muito mais a um agrupamento de pessoas do que a uma aula no sentido tradicional do termo, cujo formato costuma condicionar a (não)participação dos pseudo-interlocutores. A plataforma rasteira (na melhor acepção da palavra) e efêmera da mediação, ao agregar e dinamizar os interesses e vozes das partes envolvidas, tem o potencial de funcionar como lugar de encontro.
É neste lugar temporário que o mediador, consciente de sua posição medianeira e distante de qualquer neutralidade, busca estimular e articular os anseios, repertórios, códigos e inquietações dos sujeitos em suas relações entre si e em suas interações com os objetos. Atento aos equívocos provocados pelo apriorismo das fórmulas e pelas generalizações, o mediador procura “trazer para a roda” as linguagens, desejos e visões de mundo dos indivíduos que, necessariamente, pertencem a grupos sociais, gerações, culturas, camadas sócio-econômicas, regiões geográficas, credos e gêneros específicos, assim como ele. Portanto, os recursos que compõem a plataforma mencionada irão, inevitavelmente, surgindo aos poucos, ao longo da conversa, produzindo tanto entrelaçamentos como entrechoques.
Quanto aos ‘objetos’, trata-se de uma categoria abrangente, podendo incluir conjuntos como: saberes, manifestações culturais, produções artísticas, tradições, fenômenos sociais e naturais, coisas, vocabulários, locais, elementos da natureza, ou seja, tudo aquilo que faz parte dos universos material e imaterial, histórico e conceitual, passível de análise, interpretação e rearranjo. O mediador transita por este incomensurável cosmos de referências, exercitando sua capacidade de estabelecer recortes e verticalizações em campos e temas do seu interesse, desenvolvendo, a cada plataforma de mediação vivenciada, formas de aproximação e diálogo entre os indivíduos e entre estes e os objetos. Evidente que se mostrará mais apto para realizar mediações acerca de determinados assuntos em detrimento de outros, que não façam parte da sua gama de interesses. Mas o que importa, neste caso, é ressaltar que o mediador aqui delineado não é um especialista neste ou naquele assunto. Mesmo quando se dedica às filigranas de alguma área do conhecimento ou fenômeno, nunca perde de vista as zonas de fronteira e intersecção entre os saberes. Aliás, como já foi dito, é lá que ele costuma atuar. É lá que agencia os lugares de encontro, a tal plataforma em círculo.
Alinhavando estes modos de perceber os sujeitos e os objetos com os quais interage, o mediador é um atento observador das dinâmicas interpessoais, e também um propositor neste terreno. Por este motivo, as noções de identidade/alteridade, reciprocidade, negociação, deslocamento, recombinação, flexibilidade, plasticidade, reconhecimento (em vez de tolerância) e ressignificação lhe são muito caras, visto que contribuem para o agenciamento de experiências coletivas constituídas pelos meios disponibilizados pelo próprio grupo e pelas características dos objetos. Desta forma, o mediador privilegia o instante da interação, o compartilhamento ali em jogo.
Permeada por diálogos, opiniões, olhares, discordâncias, análises, movimentos dos corpos, réplicas, ruídos, dúvidas, tonalidades das vozes, descobertas, interpretações, nebulosidades, acordos e divergências, esta experiência adquire um valor em si, distanciando-se da perspectiva utilitarista e instrumental, que tenderia a subjugá-la à condição de simples meio de transmissão e aquisição de informações e explicações.
Norteado pelo que podemos chamar de ética da compartilha, o mediador procura deflagrar situações em que os indivíduos envolvidos tomem parte como representantes de si e porta vozes de seus pontos de vista, participando de maneira efetiva e particular das discussões em pauta, de modo a expor e cotejar suas opiniões. Com isso, não sobraria espaço para uma indesejável monopolização (e hierarquização) da fala que, em lugar disso, passaria a projetar-se e repercutir de maneira distribuída, no plural. Os movimentos de distribuição e deslocamento dão o tom da dinâmica que, entre outras coisas, proporciona momentos de alternância entre os interlocutores, convidando-os a se escutar, deslocando-se de seus lugares, saindo um pouco de si, para considerar e buscar compreender o outro e interpretar os objetos.
Para finalizar, sugiro que o leitor assista (se já não o fez) ao recente filme Entre os muros da escola, dirigido pelo francês Laurent Cantet. Pode ser produtiva a confrontação das idéias levantadas no presente texto com as situações apresentadas pelo filme.
Sobre Diogo de Moraes
Diogo de Moraes é mediador, artista visual e, atualmente, técnico de programação cultural no SESC Santo André. Licenciado em Artes Visuais pelo Unicentro Belas Artes de São Paulo.
Instituições culturais em que atuou como mediador de exposições: Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu Lasar Segall, Itaú Cultural e Paço das Artes.
Instituições culturais e galerias onde já expôs sua produção artística: Centro Cultural São Paulo, Funarte Rio de Janeiro, Museu Murillo La Greca, Museu Victor Meirelles. Museu de Arte de Ribeirão Preto, Galeria Vermelho, Galeria Virgilio, entre outras.
Leia tembém o texto: O que esperar de um educador, por Leandro Ferre Caetano
novembro 17, 2009
Auto-Referência em Abismo por Ricardo Perufo Mello
Uma reflexão sobre alguns trabalhos da mostra Projetáveis
Ele costumava fazer longos passeios a pé na cidade à noite. Aquele fragmento latente de idéia parecia escapar toda vez. Algo tinha a intenção de ser concebido, mas não se anunciava de maneira óbvia ou fácil.
Idéias pedem para se tornar projetos ou esboços. Matrizes mentais são (mas, é importante dizer, não somente elas) responsáveis pela constituição final a que temos acesso em trabalhos de artes. Constituição que, na exposição aqui considerada, raramente é física, uma vez que prima por imagens e sons intangíveis.
Com efeito, os trabalhos que encontramos na mostra Projetáveis da 7ª Bienal do Mercosul incitam de modo mais enfático essas condições particulares de constituição. Aqui expressa pelas palavras projeto e projeção, circunscritas pelo curador Roberto Jacoby para determinar o conceito curatorial dessa mostra. Nesse sentido podemos considerar igualmente a noção de matriz, para aproximarmo-nos do que parece representar a semântica de tais palavras para os artistas participantes dessa exposição – e, por conseqüência, quais as implicações que isto determinou para alguns dos trabalhos que hoje lá estão.
Uma matriz na técnica de xilogravura representa o trabalho resultante do esforço pessoal e direto do artista sobre um pedaço de madeira e possibilita a reprodução da imagem ali escavada numa série limitada e numerada. Uma matriz é algo como o projeto de uma ou mais séries de impressões entintadas em papel. Uma matriz é o resultado do acúmulo de idéias mais as ações que o artista elabora numa etapa anterior, num estágio de pré-finalização do trabalho. Uma etapa matricial.
Essa idéia ampliada de matriz que estamos procurando aqui traçar se assemelha às questões processuais que Marcel Duchamp pondera no texto intitulado “O Ato Criador”:
No ato criador, o artista passa da intenção à realização, através de uma cadeia de reações totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é uma série de esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões que também não podem e não devem ser totalmente conscientes, pelo menos no plano estético.
O resultado deste conflito é uma diferença entre a intenção e a sua realização, uma diferença de que o artista não tem consciência. (2004, p.73)
A noção da existência, e mais ainda, da importância, do que aqui chamamos de etapa matricial pode ser reveladora do direcionamento seguido (e evidenciado) por esses artistas. Os trabalhos da mostra Projetáveis pressupõem – ou intencionam – um menor distanciamento entre as suas matrizes (suas etapas matriciais) e o que poderíamos comumente esperar em relação às apresentações acabadas dos meios em que se inserem 1 . Em especial os trabalhos comentados abaixo.
Os trabalhos intitulados Moonwalk e Virtual Redundandy (de Martin Kohout e Paul Matosic respectivamente) exemplificam isto quase que literalmente. Uma barra de marcação do tempo transcorrido em um determinado vídeo, oriunda do site de vídeos on-line You Tube, marca o tempo de outra barra, que por sua vez marca o tempo de outra, e assim por diante constituindo uma sequência ao infinito. O sistema refere-se continua e permanentemente a si mesmo. Uma grande placa de vidro negro reflete a imagem dessa projeção e multiplica essa auto-referência em abismo.
De maneira similar, no trabalho de Matosic, encontramos peças e pedaços de computadores desmontados (esses ao longo do tempo da exposição continuamente substituídos e repostos por outros), e ao lado – na projeção – vemos o próprio artista desmontando computadores e periféricos no vídeo que é projetado no chão. O artista admite em seus trabalhos uma relação com o fascínio infantil existente em relação ao mecanismo e construção das coisas, ele age ali de maneira similar a uma criança que, ao desmontar um brinquedo, busca conhecer mais intimamente o mundo que a ela se apresenta.
Past Participle de Shirin Sabahi projeta na parede slides fotográficos com imagens oriundas de um arquivo de fotos que data da década de 30. Sua escolha de usar esse meio específico de projeção compactua-se com o anacronismo inerente às imagens (anacronismo que aqui é intensificado pelas mídias empregadas nos outros trabalhos da mostra). Trata-se de uma proposta que busca explorar um caminho oposto ao fluxo midiático no qual estamos imersos, que constitui um “universo da sobreexposição e da obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao extremo” (Peixoto, 1988: 361). Os aspectos de simplicidade e quietude contidos na montagem do trabalho reverberam igualmente naquilo que é visto nas três projeções: um transeunte francês cuja única ação é a de caminhar gradualmente em direção à câmera. A montagem também promove um processo de auto-referência uma vez que a altura em que as projeções foram dispostas coincide fisicamente com o ato de caminhar do próprio espectador da mostra.
Além de Past Participle, o trabalho intitulado drawing for Filó de Oto Hudec resgata também uma técnica muito simples – quase naif, apesar de lançar mão de duas projeções digitais. Numa delas, Hudec desenha e pinta as experiências de vida que são relatadas simultaneamente em uma entrevista com Filó na outra projeção. Filó é uma mulher de origem angolana que vive agora em Porto, Portugal. Suas lembranças de anos atrás são tão maleáveis e livres em relação à realidade quanto a pintura executada de modo bastante gestual pelo artista. A fotografia, comumente considerada como a reprodução perfeita daquilo que experenciamos anteriormente, sempre foi um veículo insuficiente para a memória, que não corresponde à precisão do meio fotográfico. Alison Gingeras afirma que “a imagem pintada, com sua sensibilidade material, tatibilidade e possibilidades atmosféricas, corresponde melhor à imprecisão das funções mnemônicas do cérebro humano” 2 (Gingeras, 2009).
Já o trabalho do Coletivo C.D.M. (Centro de Desintoxicação Midiática), que se constitui de uma série de vinhetas sonoras que podemos escutar nas duas escadarias do prédio do Santander Cultural, recorre igualmente a um anacronismo, uma vez que remete às antigas rádios AM. Um locutor fala algumas frases (em português e espanhol) retiradas dos diários (Cage, 1985) do artista, músico e compositor americano John Cage, enquanto sua voz é acompanhada por músicas populares do Brasil e de diversos países da América Latina. Novamente, a projeção (nesse caso, sonora) se auto-referencia, pois o que é lido é da autoria de outrem, e as músicas instauram uma situação radiofônica que é na verdade particular a uma ferramenta de comunicação de abrangência popular (a rádio AM).
Assim, os trabalhos do recorte aqui analisado empreendem uma manipulação de determinadas linguagens das quais se utilizam na via contrária da que usualmente é seguida nos meios de comunicação e informação. Os artistas aqui citados fazem com que os sistemas das ferramentas com que trabalham retornem a si mesmas, seja através de uma auto-referência direta e/ou através de apropriações de fragmentos que instauram diálogos nas diferentes projeções com situações que os colocam em um contraponto mútuo semântico constante.
________________
1 Uma obra de arte que deixa aparente – das mais diversas formas possíveis – o seu próprio fazer é uma situação que, segundo o teórico Alberto Tassinari no livro “O Espaço Moderno”, começou a ser trazida a tona pelos artistas num processo que teve início no movimento do Impressionismo e que culminou no que em história da arte se convencionou chamar de Modernismo. Ou, como atesta Tassinari: “o espaço moderno, mais que um espaço de colagem ou um espaço manuseável, é um espaço em obra, assim como é dito de uma casa em construção que ela está em obras.” (2001, p. 48)
2 Livre tradução do autor.
Referências Bibliográficas
CAGE, JOHN. John Cage: De segunda a um ano. Introdução e revisão da tradução de Rogério
Duprat, São Paulo: Hucitec,1985.
DUCHAMP, Marcel. “O Ato Criador” In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
GINGERAS, Alison M. “The mnemonic function of the painted image”, salvo de
http://www.saatchi-gallery.co.uk/current/essays.htm
Último acesso em 01/11/2009.
PEIXOTO, Nelson Brissac. “O olhar do estrangeiro”. In: NOVAES, Adauto
(Org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
TASSINARI, Alberto. O Espaço Moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Sobre Ricardo Perufo Mello
Ricardo Perufo Mello é doutorando em Artes Visuais / Poéticas Visuais pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do IA/UFRGS, orientado pela Prof.ª Drª. Icléia Cattani. Atua como docente de terceiro grau, na área de pintura, no Instituto de Arte e Design da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Foi selecionado pelo programa Rumos Artes Visuais 2008/2009 do Instituto Itaú Cultural e ganhou uma Menção Especial no 59º Salão Paranaense do MAC/PR em dezembro de 2002.
Serviço:
Mostra Projetáveis - 7ª Bienal do Mercosul
Santander Cultural
Rua Sete de Setembro, 1028, Praça da Alfândega, Porto Alegre - RS
51-3287.5718 ou imprensa@bienalmercosul.art.br
www.santandercultural.com.br
Terça a domingo, das 9h às 21h
Entrada franca
novembro 11, 2009
7ª Bienal do Mercosul: a minha escuta por Cecília Bedê
7ª Bienal do Mercosul: a minha escuta
Biografias Coletivas / Texto Público / Radiovisual
Especial para o Canal Contemporâneo
Continuo meu relato de visita à 7ª Bienal do Mercosul – Grito e Escuta pelo armazém A5 do Cais do Porto. Nele estão apresentadas as exposições Biografias Coletivas, Texto Público e a sala de transmissão da Radiovisual. A grandiosidade do armazém impossibilita a separação dessas três “exposições” e após longas horas caminhando lá dentro, percebo que essa dissolução está implícita já nos nomes dados a elas.
As propostas dessa Bienal e principalmente dessas duas exposições e da Radiovisual, me fazem lembrar de outras duas propostas: “Como Viver Junto” e “Em Vivo Contato”, temas da 27ª e 28ª Bienal de São Paulo, respectivamente. Falar sobre os problemas vividos na contemporaneidade diante de todos os aspectos, políticos, artísticos e cotidianos da “convivência com o outro” e refletir sobre o sistema da arte como um todo, estando dentro dele, parece ser a grande motivação, e a palavra de lei é: relação.
Biografias Coletivas
A exposição Biografias Coletivas foi organizada por um dos curadores gerais da Bienal, o artista chileno Camilo Yánez. Desta exposição fazem parte os artistas que defrontaram sua própria biografia, através de conceitos e produção com a biografia de outros. A idéia é transformar, através de formas poéticas, contextos pré-estabelecidos, sendo eles políticos, históricos, sociais, culturais ou cotidianos.
Cada armazém da Bienal oferece duas portas de entrada. A porta pela qual entrei no A5 me proporcionou o embate com o trabalho do francês Nicolas Floc’h, artista que participa dessa Bienal como residente. O projeto desenvolvido por Floc’h chama-se A grande troca – um projeto para desejos coletivos e foi realizado juntamente com três comunidades de Porto Alegre, a Comunidade Autônoma Utopia e Luta, Morro da Cruz e Lami.
O desejo se configura no momento em que algo está ausente, você deseja coisas que ainda não tem, seja a curto ou longo prazo. Ao entrar nessas comunidades, o artista buscou descobrir esses desejos e a partir daí teve seu ponto de partida. Um time de futebol, uma banda, a pintura nova de um prédio antigo, o transporte. Para tornar esses desejos reais, foram necessários processos de construção: do imaginário para a representação; da representação para o real.
O artista e a comunidade trabalharam primeiramente na construção desses objetos de desejo, como formas de representação, com materiais reciclados e reaproveitados e sob o viés de obra de arte, estão expostos na Bienal. No próximo momento de transformação, da representação para o real, é necessário a participação e o interesse do espectador. Os objetos produzidos podem ser adquiridos, porém, não existe pagamento em moeda, mas sim uma troca da peça pelo objeto real. Uma bola de madeira por uma bola de couro, por exemplo.
A grande troca – um projeto para desejos coletivos, ocupa um grande espaço do armazém e confunde. Não existe uma delimitação de espaço visível, os objetos se espalham e podem parecer sem conexão alguma. É esse desconectar e essa indefinição, que possibilita o contato e a convivência entre artistas, público, comunidades, obras e quando pensamos estar olhando para um simples objeto, estamos antes disso envolvidos em realidades outras.
Texto Público
A exposição Texto Público tem a curadoria do artista brasileiro Artur Lescher e ocupa, além do espaço do cais, a cidade. Dessa proposta fazem parte, artistas que trabalham o espaço urbano, re-significando e intervindo, transformando-o assim, em um texto público.
A curadoria traçou três propostas de investigação: Iluminação, onde os trabalhos devem dar visibilidade a pontos estratégicos da cidade; Transitório Ambulante, trabalhos que investiguem as dinâmicas do espaço urbano; Pontos no Mapa, trabalhos que articulam o espaço da Bienal em relação ao espaço da cidade e Irradiação, que reúne os trabalhos sonoros que serão transmitidos para toda a cidade através da Radiovisual.
No espaço do armazém é difícil descobrir o ponto de interseção entre as exposições, penso que na verdade não existe interseção, mas sim passagens. Durante todo meu percurso, percebi que um som era constante, alto e em alguns momentos incômodo e foi esse barulho que me trouxe a idéia da passagem ao me deparar com o seu ponto de partida. O som vinha de Microfônico I e II, do grupo Chelpa Ferro, instalação que indica a forte presença das intervenções sonoras na Bienal e na cidade.
Performances, intervenções e instalações públicas marcam a presença da Bienal em Porto Alegre. Um prédio antigo do centro transborda de formas orgânicas produzidas pelos tapumes do brasileiro Henrique Oliveira. A artista mexicana Marcela Armas, literalmente se transformou em um carro e transitou pelas ruas buzinando e seguindo as sinalizações e regras de trânsito. Através da Radiovisual, artistas transmitem idéias, provocam a imaginação e levam a Bienal aos ouvidos de todos que se encontram na cidade. Recomendo que escutem vocês mesmos.
Os espaços transbordam para além de suas convenções e se aqui existe um grito, ele é percebido não pelo estranhamento ou incômodo, mas sim pela relação. O grito da Bienal não chama para o novo ou para o espetacular, mas sim para a presença, do outro.
7ª Bienal do Mercosul: a minha escuta - Uma introdução / “A Árvore Magnética”, por Cecília Bedê
novembro 3, 2009
Comunicações Científicas em 27 de outubro, mesa relatada por Marília Sales
III Simpósio internacional de arte contemporânea do Paço das Artes
Comunicações Científicas em 27 de outubro
Relato realizado por Marília Sales
A mesa estava composta por Daniela Maura Ribeiro (Mestre em Artes, na linha de pesquisa História da Arte pela ECA/USP), por Santiago Rueda Fajardo (Doutor em História, Teoria e Crítica das Artes pela Universidade de Barcelona), Rubiane Vanessa Maia da Silva (Mestranda em Psicologia Institucional na UFES) e a mediação foi feita por Angela Santos (Paço das Artes). Na apresentação das pesquisas foi discutida a influência do contexto social contemporâneo na produção artística em diferentes meios e contextos.
A mesa inicia com a apresentação da pesquisa de Daniela Maura Ribeiro intitulada A ficção na imagem contemporânea (o retrato e o auto-retrato) que parte de idéias sobre o auto-retrato como gênero para pensar a questão da ficção na imagem contemporânea. A partir do auto-retrato pintado por Jacques-Louis David, em 1794, traz idéias sobre a produção de artistas contemporâneos como: Albano Afonso (2001), Helga S tein (2005) e do retrato realizado pelo artista norte-americano Keith Cottingham (1993) em analogia ao realizado por German Lorca (1958), fotógrafo.
Suas questões partem do ensaio Grotesco David com a bochecha inchada: um ensaio sobre o auto-retrato do teórico T.J. C lark sobre a prática do auto-retrato na pintura ocidental, como gênero de características específicas e o aumento do interesse no século XVIII pela subjetividade e a valorização da identidade.
Ribeiro acredita que nos séculos XX e XXI há uma perda de identidade na produção dos auto-retratos. À luz dessas idéias apresenta os trabalhos de auto-retrato dos artistas contemporâneos citados através do uso da fotografia e suas possibilidades de manipulação para realizar os auto-retratos. Ela acredita que a fotografia, mais que uma categoria com características próprias, dialoga com outras possibilidades artísticas, e agrega novas significações – transforma a noção de real e a realidade e a ficção ganham novas idéias.
Em seguida, Santiago Rueda Fajardo apresenta Los Mártires, os problemas das drogas na sociedade colombiana têm crescido nas últimas três décadas – humanos, ambientais, econômicos, políticos, militares e sociais. Ele acredita que o tema tenha aparecido pela primeira vez na fotografia ”Entierro de un colega” publicada por la Revista Ilustrada em 1900, e posteriormente em fotografias de Ernst Rothlisberger, Erwin Schottlaender e nas artes gráficas de Luis B. Ramos por conseqüência da força política no país.
Para Fajardo, apesar do aumento do consumo e da degradação humana pelas drogas, o interesse na imagem de denúncia e testemunho da tragédia tem diminuído. Embora cite alguns artistas que trabalham com essa problemática, ele acredita que a miséria e a doença da droga tem sido pouco discutido nas artes, em comparação aos problemas da corrupção política. E finaliza com a questão: Que coletividade, que desejos e que força representa o indigente? – usuários de drogas e moradores de ruas.
Rubiane Vanessa Maia da Silva apresenta sua pesquisa Encontros Partilhados que traz considerações sobre a contaminação entre Arte e Vida, um modo de pensar e produzir favorável à linhas de resistência de um mundo-crise. Para ilustrar sua fala, ela analisa o Studio Butterfly, de Virgínia de Medeiros apresentado em 2006 na 27° Bienal de São Paulo. A escolha partiu pela forma de criação em processo que lida com um universo temporal-espacial , e principalmente afetivo. Acredita que na arte essas misturas são mais intensas, arte e vida se diluem e torna um fluxo contínuo – artista, o público e o trabalho.
Silva apresenta o panorama da vida contemporânea e a tendência comum de aproximação aos trabalhos que tem como estratégias a alteridade e a referência à paisagens psicossociais da contemporaneidade. Para ela, novos tempos são construídos e oferecidos como dispositivos de relações. Acredita que o trabalho de Vírginia de Medeiros articula uma diálogo ético-político-estético que convoca novas corporeidades, uma forma de repensar uma política da vida que se afirme na potência da existir.
Comunicações Científicas em 26 de outubro, mesa relatada por Marília Sales
III Simpósio internacional de arte contemporânea do Paço das Artes
Comunicações Científicas em 26 de outubro
Relato realizado por Marília Sales
A mesa estava composta por Julia Buenaventura V. de Cayses (Mestre em História da Arte e da Arquitetura na Universidade Nacional da Colômbia), por Agnus Valente (artista multimídia, Doutor e Mestre em Artes pela Escola de Comunicações e Artes ECA/USP) e a mediação foi feita por Rejane Cintrão (Paço das Artes). Na apresentação das pesquisas foi discutida a relação simbólica de valores da arte no mercado: consumo e fruição.
Julia Buenaventura apresenta sua $194.500 que trata do panorama do mercado da arte latino-americana no contexto da última crise econômica mundial com destaque ao relacionamento de uma produção artística ligada à ações políticas de busca da autonomia de seu território. Cita os leilões de Christie´s e Sohteby´s acontecidos no segundo semestre de 2008, e especificamente a venda da obra Coração Faquir (1999) de Cildo Meireles, cuja estimativa estava entre $100.000 e $150.000 e saltou para $194.500 – situação que intitula sua pesquisa.
Segundo Buenaventura, a última crise econômica mundial não afetou de forma dramática o mercado da arte latino- americana na medida em que leilões como Christie´s e Sohteby´s conseguiram preços acima das expectativas. Cita Alberto Barral (ArtNexus,No. 72, Volumen 8, Año 2009. p. 96.), que diz que essas vendas confirmam a estabilidade de um mercado que mantém seu caráter tradicional, pois, os compradores ainda são colecionadores e não fundos internacionais.
Buenaventura apresenta a recente história do mercado da arte latino-americana. E exemplifica a situação de mercado de Cildo Meireles, um dos artistas contemporâneos mais cotizados em Nova Iorque, que desde bem cedo propôs obras destinadas a questionar o dinheiro e, com o dinheiro novamente ao poder – Eppur si Mouve, trabalho que consiste num tipo de ação alquímica ao inverso, pois não se trata de converter o ferro em ouro, mas converter o ouro em nada e que paradoxalmente ganha o valor de mercado da arte, voltando a ser ‘ouro’.
Agnus Valente apresenta seu projeto VENDOGRATUITAMENTE.COM, composto por obras do próprio autor e de um grupo de artistas convidados por suas atuações em intervenções urbanas e afinidades ideológicas: Antoní Muntadas, Carmela Gross, Julio Plaza, Nardo Germano e Regina Silveira. Valente apresenta seu percurso reflexivo, as articulações e agenciamentos que propiciaram a efetivação dessa intervenção artística.
O projeto de Valente trata-se de uma intervenção e-urbana em espaço público que elege a Internet, esta como um “campo expandido” de ação. O título é um jogo de palavras “ver” e “vender” numa ação de invasão aos mecanismos de busca no contexto do e-commerce. É um projeto de “site-specific” on-line que usa o mecanismo do e-commerce. A proposta é proporcionar uma pausa na voracidade do sistema capitalista .
Valente analisa que este projeto interessa a associação com a urbanística. Os termos “endereço”, “portal”, “site”, “home” sugere um possível “mapeamento” da rede e conduz a uma percepção da Internet como “espaço”. Desse modo, relaciona a Arte Pública a este espaço “disponível” e inscreve o projeto de intervenção numa dimensão ética, estética e política. Focalizando a Internet como “campo expandido” – cita aqui Rosalind Krauss – da urbe, com estratégias de ação da Arte Pública, Valente considera a “cobertura”, a “disponibilidade”, a “interação”, o “acesso” e a “freqüência” de usuários em trânsito na web.
Explica que cada uma das obras foi inserida no mecanismo de busca, passou pelo que denominou de “Pequenas Traduções Intersemióticas” que correspondem aos ads que são impressos no resultado da busca. Agnus relata que a intervenção e-urbana, que está em curso desde dezembro de 2006 – Brasil, já ultrapassou 500.000 impressões de seu ad artístico, até o momento desta publicação.
Debate
Ao abrir o debate, Rejane Cintrão expõe sua curiosidade em relação à continuação dos contatos entre tantos visitantes e o VENDOGRATUITAMENTE.COM. Ela pergunta se houve algum retorno na comunicação. Agnus Valente explica que optou pelo distanciamento. Alguns retornos ele desconfia que são de artistas, pela linguagem e pela informação nos e-mails. Ele diz que o interesse é a vivencia, a fruição como fato acidental da vida – se o visitante não tivesse clicado não teria visto – é para ser um momento de pensar arte viva dinâmica e o estimulo de sair do pensamento seco, e ir para o dinâmico.
Julia Buenaventura V. de Cayses reflete que as obras dão volta ao sistema. “Precisamos aproveitar os encontros, escrever a história através dos encontros em leilões e em departamentos de arte… A Tarsila do Amaral, por exemplo, ainda nos tem muito a falar. Um mercado pode ser nosso, o encontro do mercado e a infiltração, da arte não-mercadoria, dribla o capitalismo.”
Imagens Contemporâneas e Imagens da Arte Contemporânea, mesa relatada por Ana Elisa Carramaschi
III Simpósio internacional de arte contemporânea do Paço das Artes
Imagens Contemporâneas e Imagens da Arte Contemporânea
Relato realizado por Ana Elisa Carramaschi
A mesa Imagens Contemporâneas e Imagens da Arte Contemporânea foi composta por Lucia Santaella (pesquisadora, professora da PUC-SP), André Parente (artista, professor da UFRJ), pelo mediador Gilbertto Prado (artista, professor da ECA-USP) e pelo debatedor Lucas Bambozzi (artista e curador). A mesa discutiu sobre a produção de imagens de visualizações científicas, sobre os conceitos de rede e questionou os conceitos de arte e tecnologia.
Lucia Santaella apresenta um trabalho embrionário, que pretende destacar o potencial estético que as visualizações científicas oferecem. Sua fala parte da constatação de que o volume desmedido de dados trocados na rede implica na necessidade de criar sistemas de visualização (a google processa, por dia, 20 petabytes/1 petabyte=1024 terabytes).
Afirma que, apesar de muitas vezes as imagens geradas como sistema de visualização não sejam criadas com intencionalidade artística, é possível julgá-las enquanto potencial sensório. Em outras palavras, essas imagens são criadas com a finalidade de filtrar a grande quantidade de informação para se criar “diagramas organizacionais, mapas mentais ou visuais”, afim de tornar possível o acesso à grande quantidade de informações e orientar os usuários da rede, respondendo às constantes mudanças conforme os dados se modificam na vida real. Para Santaella, “sendo a internet um gigantesco sistema de arquivamento e recuperação, arquivos e bases de dados tornaram-se uma forma essencial de organização e memória cultural na medida em que podem ser, de alguma forma, visualizados”.
Santaella cita Cristiane Paul para afirmar que as tecnologias digitais introduziram modelos dinâmicos de visualização para a experimentação e pesquisa nos mais variados campos das ciências. A pesquisadora ressalta o quanto a partir dessa perspectiva, os limiares da estética se encontram expandidos, em objetos não necessariamente artísticos e que não precisam dos locais de circulação de arte.
A palestrante afirma que desde a publicação de um ensaio sobre a obra de Wagner Garcia (“Sky and Life, Sky and Body, Sky and Mind”) já apontava para convergência que se propicia entre a abstração da matemática elevada e a sensorialidade visual e sinestésica nas telas dos monitores. Atenta, portanto para a junção inédita entre a abstração do inteligível, no nível mais abstrato da realidade e a resolução de visualização que se dá no computador. Citando Martín-Barbero, Santaella fala que ao hibridizar a densidade simbólica da abstração numérica com a sensorialidade perceptiva, partes opostas do cérebro se reencontram, e é desse encontro que surge as imagens resultantes da visualização de dados.
André Parente assume a fala da mesa introduzindo o conceito de rede, a princípio, localizando no pensamento de Michel Serres a distinção de dois tipos de ciência, que tem como modelo a geometria e a geografia, para pensar então, sobre dois tipos de visualização de realidade, uma a partir de sistemas, modelos (geometria), outra a partir de imagens, descrição (geografia).
O palestrante cita Bruno Latour, para quem a rede é o conceito que não separa modelo e imagem como duas realidades estanques. Parente contextualiza esse pensador para contestar a visão de outros teóricos, como Edmond Couchot, que vêem nas imagens de síntese uma ruptura radical com os modelos de representação da realidade pertencentes à tradição ocidental.
Segundo Parente, Edmond Couchot divide de um lado a produção de imagens realizadas a partir de modelos óticos como a perspectiva clássica, a fotografia e o cinema, e do outro, modelos numéricos e digitais. Parente critica a conclusão de que as imagens digitais produzidas a partir de programas de simulação são auto-referentes e rompem com a tradição ocidental na afirmativa de que não representam uma realidade física pré-existente como tem sido a produção de imagens há 2000 anos.
Parente defende que a simulação é o principal instrumento do nosso tempo para tratar de temas complexos, então que jamais haveria sentido em simular, por exemplo, a modelagem de objetos de design, se estes não pudessem existir fisicamente. Conclui com isso, que por mais que certas imagens possam não representar uma realidade do ponto de vista da visão, como são as imagens de síntese, não significa que elas não representem uma realidade. Elas representam uma experiência possível e que muitas vezes, se substitui aos fenômenos e as experiências reais.
O palestrante cita novamente Latour e propõe imaginar a situação de observar, num museu de história natural, pombos de vários lugares do mundo, e fazer uma comparação da diversidade de pombos que existe. Quando olhamos uma vitrine, temos uma visão global que implica num processo de redução muito grande, pois cada um foi retirado de um habitat natural. Porém, ao observarmos os pombos, extraídos do seu habit e colocados lado a lado, conseguimos capitalizar o que acontece. Mesmo afastados do fenômeno, estamos próximos de uma rede de informações que extrai dessa realidade possível, algum saber. Essa rede de informações resolve, então, a contradição entre a presença e a ausência. Parente conclui que a simulação da realidade, quer seja computacional ou dentro de um museu de história natural, é o acesso a uma rede de informações que nos mantém ao mesmo tempo afastados e interligados aos fenômenos.
Com essa argumentação, Parente defende que sendo a rede uma forma de relacionar informações que foram transformadas das mais diversas formas pelo homem, não necessariamente a rede é um termo que se reduz ao contexto tecnológico. Ele exemplifica com “Inserção em Circuitos Ideológicos” de Cildo Meireles, um trabalho de rede que nada tem de tecnológico. E reflete como a ciência, a arte e a religião são redes de mobilização, sendo a última a de maior poder de influência no contexto brasileiro. Passa a se questionar então, porque a arte é um meio de mobilização tão fraco, sendo o artista aquele que melhor entende sobre a criação de desejo, e sendo a arte nos dias de hoje, em que não existem mais cânones, dependente do discurso que convence a todos e seduz.
Parente chega a conclusão que discursos de arte e tecnologia são quase greenberguianos, pois têm a necessidade de voltar a falar de uma especificidade da arte, com defesas puristas que têm a tecnologia em primeiro plano, sem falar de realidade alguma para além dela. Pergunta-se então, se um discurso como o de Couchot, que afirma que a imagem de síntese rompe com 2000 anos de tradição, não re-atualiza anacronicamente um discurso de autoreferência modernista, que tem por finalidade, fetichizar mais ainda a arte?
Aponta que no momento em que se discute a dissolução do objeto, num corpo do lado de cá que reconhece a arte em algum lugar da experiência, não no objeto, mas naquilo que o ultrapassa, falar sobre a tecnologia é falar de um instrumento como outro qualquer. Uma vez que pó, vento, vapor, qualquer material é material expressivo para a arte contemporânea, qual o sentido em dar ênfase à técnica? Enfatiza que não há nada de novo na relação arte/tecnologia, afirmado que ela existe desde que se faz uso, por exemplo, de lentes para construir uma câmera escura. A partir do século 17 deixa-se de falar em técnica e fala-se de tecnologia, portanto ela é extensão do corpo e é utilizada nos mais diversos meios de atuação do homem. Explica que esse corpo cheio de extensão foi sendo produzido como uma espécie de óculos que nos permite olhar o mundo de determinada maneira.
Por fim, Parente pergunta se a arte não é um objeto, que rede é essa (ou que óculos, ou que nó) que nos permite olhar para alguma coisa e dizer que é arte?
O debate é então aberto e Lucas Bambozzi reflete como, por vezes, num trabalho de arte nem existe a criação de imagens, mas sim a articulação de dados e textos que localizam a pessoa no espaço-tempo dentro da rede. A pergunta que ecooa na mesa é: Que estética estaria então envolvida nessa criação de redes? Que estética é essa se por vezes elas nem envolvem um elemento de apreciação típica da arte?
Redes Sociais, arquivo e acesso, mesa relatada por Ananda Carvalho
III Simpósio internacional de arte contemporânea do Paço das Artes
Redes Sociais, arquivo e acesso
Relato realizado por Ananda Carvalho
A mesa Redes Sociais, arquivo e acesso foi composta pelos palestrantes Rogério da Costa (PUC-SP) e Alberto López Cuenca (pesquisador de redes sociais/autorais, Espanha), pelo mediador Felipe Fonseca (pesquisador de mídia independente e software livre) e pelo debatedor Eugenio Valdes Figueroa (diretor de arte e educação da Casa Daros, RJ). O debate enfocou a produção de conhecimento considerando as configurações da contemporaneidade em relação às redes sociais, a autoria e a propriedade intelectual. Trouxe questões sobre o acesso aos bens culturais e a educação e a configuração geopolítica da rede.
Felipe Fonseca inicia a mesa chamando a atenção para a reconfiguração da questão do acesso, que deve considerar tanto o acesso aos bens culturais como a toda cultura de forma ampla. Comenta também a apropriação rápida, e até anárquica, das rede sociais pelos brasileiros.
A palavra é passada para Alberto López Cuenca, que apresenta os conceitos de sujeito e conhecimento na filosofia para discutir questões da autoria e propriedade intelectual suscitadas pelo advento da internet. Ressalta que a crítica pós-moderna (Roland Barthes, Michel Foucault, Jean-François Lyotard) “não pode se desfazer nem do sujeito excepcional nem do conhecimento original porque levou a cabo apenas seu desmonte teórico”. Dessas teorias surgiram previsões como as de Vilém Flusser, que nos levavam a pensar que a internet parecia oferecer condições para a superação da lógica autoral e original impostas pelo texto.
As novas possibilidades de produção de conhecimento e subjetividade, entretanto, esbarram nas leis de propriedade intelectual e patentes. Para Cuenca, essas leis garantem que o conhecimento e a inovação sejam explorados financeiramente. O palestrante questiona a quem os direitos de autor realmente protegem. E afirma que o preocupante das propostas de reformas para essas leis é que elas atendem apenas a prioridades de uma das partes, sem incluir os interesses dos criadores, dos usuários e do estado. Desse modo, limita-se, a partir de justificativas econômicas, o uso das tecnologias digitais para produção de conhecimento.
Por outro lado, Cuenca afirma que as redes sociais de colaboração evidenciam a condição coletiva do conhecimento. O pesquisador apresenta, também, práticas de colaboração que não aparecem apenas na internet, mas também em outros espaços que privilegiam o intercâmbio, como o Paço das Artes, a Can Xalant e o Centro Cultural da Espanha. Ressalta que os modos de operação dessas instituições não estão definidos apenas por sua estrutura interna, mas também pelas redes de cooperação em que estão inseridas.
Por fim, cita o conceito de organized networks a partir de Ned Rossiter. Refere-se também a Ronaldo Lemos para voltar à questão da propriedade intelectual e defender novas formas institucionais e possibilidades de trabalho em rede que beneficiem a sociedade como um todo. Para Cuenca, é necessária uma visão integral dos direitos de autor e também negociá-los como acesso à cultura.
Rogério da Costa discute o conceito de arquivo de acordo com o contexto da expansão da internet. Segundo o palestrante, não foi apenas a organização das informações que mudou, mas a grande diferença está no “fato de que a ação de cada indivíduo sobre cada informação passou a ser incluída na própria informação, passou a ser ela própria uma metainformação”.
Costa relaciona também como a produção de informação se reconfigura com o advento das redes sociais. O estudo das redes sociais está associado à forma como os indivíduos se interligam. Para isso, cita os conceitos de laços fracos (baseados em relações esporádicas) e fortes (baseados em relacionamentos próximos) de Mark Granovetter. Costa sugere a importância dos laços fracos para o compartilhamento das informações, já que, como não temos contato com estas pessoas, elas podem permitir acesso a informações que desconhecemos.
Neste sentido, o palestrante aponta a transformação das comunidades virtuais em redes sociais. E ressalta que a revolução das novas ferramentas, como Orkut e Facebook, caracteriza que o importante são as pessoas em contato, e não apenas os assuntos. A partir dessa configuração da rede em laços fracos, emerge a possibilidade não só de receber informações, mas principalmente de disseminá-las.
Por fim, Costa apresenta o conceito de sociedade de conhecimento – troca de ideias, cooperação e colaboração – em oposição à sociedade da informação. E comenta que a economia instiga a cooperação e a colaboração na medida em que essas atividades impulsionam a mais valia.
Felipe Fonseca comenta que participou de um encontro de organized networks promovido por Geert Lovink na Holanda. O encontro evidenciou que cada rede se configura de maneira específica e sua forma de organização não pode ser apropriada por outra rede. Assim, por um lado existe a institucionalidade da rede, e, por outro, toda uma informalidade. Fonseca apresenta uma visão crítica sobre as possibilidades alternativas à questão do direito de propriedade intelectual. Cita a polêmica do Creative Commons, que, para ele, trata da obra acabada e sua distribuição e não considera o processo criativo de colaboração como acontece na criação de softwares livres.
Eugenio Valdes Figueroa abre o debate questionado os mapas políticos e a questão da formação a partir do conceito de analfabetos funcionais. Em sua resposta, Alberto López Cuenca comenta que nossa legislação continua sendo moderna e burguesa. Para ele, essa questão se reflete nas redes sociais que exigem uma reforma estrutural da legislação, mas não têm acesso a essa reforma.
Rogério da Costa cita a diferenciação da política e das técnicas de governança proposta por Foucault. Em relação ao analfabetismo funcional, Costa afirma que, a maioria das vezes, as instituições tentam consolidar os seus sentidos em populações que não compartilham das mesmas formas de viver. E pergunta-se como dar voz a uma construção de conhecimento que possa imergir com os elementos dispostos em uma determinada camada da sociedade.
Figueroa reflete sobre o excesso de informação: a internet traz a ideia de informação, o que não necessariamente produz conhecimento. E questiona qual seria a diferença entre informação e conhecimento e o que devemos buscar? Costa diferencia o conceito de informação e de conhecimento a partir de Spinoza e Varela. Mas defende que prefere se preocupar com como as pessoas constroem relacionamentos.
Figueroa questiona o acesso a informação e ao conhecimento e afirma que a internet não conseguiu mudar a situação. O debatedor pergunta: quem continua monopolizando a escritura da historia? Nesse sentido, como nos aproximar da cena artística latinoamericana? Retoma a palestra de Roberto Gomez de la Iglesia para perguntar como as redes socioculturais podem trazer definições à relação centro-periferia.
Cuenca comenta a geopolítica da produção coletiva de conhecimento a partir do exemplo da Wikipédia em espanhol. Segundo a própria Wikipédia, seu conteúdo é produzido 90% na Espanha e 10% na America Latina; já a proporção de recepção desse mesmo conteúdo é a inversa. E enfatiza que o atual âmbito legal não viabiliza que a internet amenize as diferenças geopolíticas.
Por fim, uma pessoa do público faz um depoimento que problematiza as redes sociais e as novas organizações. Defende a necessidade de encontros presenciais para a construção da confiança. E afirma que quem se beneficia da situação econômica proveniente das redes e da colaboração não é quem está produzindo as soluções.