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julho 23, 2009
Art money ou Topografia suada de Londres por Lourival Cuquinha Batista
Relato de Lourival Cuquinha Batista sobre residência artística no programa Artists Links, em Londres, entre junho e dezembro de 2009. Este é o primeiro de uma série de textos que o artista publicará para compartilhar experiências ao longo dos meses de trabalho com o público brasileiro.
São cinco da manhã e acabei de chegar em casa do trabalho, do Rickshaw. Abri uma cerveja e estou fazendo uma massa. O assunto desta minha residência aqui no Reino Unido é dinheiro, money of the Queen as well. Acho que este vai ser o primeiro texto de uma série que vou fazer para o site do Artist Links, para o Canal Contemporâneo e para o Portal Dois Pontos durante esta estadia aqui em Londres. Ano passado eu morei neste país com minha mulher e nossos dois respectivos, filha e filho. Não foi muito fácil tendo em vista que a libra era quase quatro reais e eu não tinha muitas oportunidades para mostrar as idéias que saem da minha cabeça e fico chamando de arte. Trabalhei no Costa Coffee, uma multinacional italiana como um Starbucks da vida. Aprendi a fazer capuccino e um monte de cafés e ganhava o salário mínimo que aqui é por hora (£5,52/hour). O pior trabalho que já fiz na vida como vocês podem ver nos vídeos [1 e 2] que fiz sob encomenda para o Dois Pontos na época.
É um vídeo chatão e demorado como meu emprego era, mas se a pessoa tiver paciência, às vezes ele é engraçado. But go ahead. Neste emprego, eu li num jornal bem safado e conhecido daqui, o The Sun, que 80% dos ingleses não notariam se sumissem mil libras de suas contas bancárias. Meu colega de trabalho me disse que notaria. Então, lembrei a ele que ele era italiano e que eu, sendo brasileiro, notaria mais ainda. Aliás, não trabalhavam ingleses naquele café. Isto foi há pouco mais de um ano. Talvez hoje os ingleses já notem depois desta “crise global”, the credit crunch. Bem, fiquei com isto na cabeça. Passei um tempo neste trabalho, mas acabei me demitindo, pois achava que deveria ter tempo para criar e investir no meu trabalho artístico. Bullshit, auto-desculpa pra sair de um lugar que já não agüentava mais.
Passei então quase seis meses mandando projetos não aceitos em lugar algum destas terras da rainha. Me endividei. Devia a minha mulher e a minha mãe muito dinheiro. Dinheiro era no que pensava o tempo inteiro, filhos, aluguel de 975 libras etc... No meio das idéias destes projetos recusados pensei na notícia do jornal e quis fazer uma bandeira da Inglaterra com mil libras. Seria perfeito, trabalharia com dinheiro e minha dedução lógica era esta: quando fiz o Varal trabalhei com roupas e ganhei muitas roupas (até hoje uso algumas delas), agora trabalharei com dinheiro e ganharei muito dinheiro. Raciocínio símio, mas que era a única intuição à qual eu podia me apegar naquele momento de fiasco financeiro. E de certa forma não deixou de ser verdade.
De todo jeito achava a idéia plasticamente instigante. Eu teria que calcular geometricamente com notas existentes em mil libras o desenho da bandeira da Inglaterra. Não a do Reino Unido que é mais conhecida, mas a da Inglaterra, pois Escoceses, Irlandeses e Galeses notam a inexistência de £1000 nas suas contas. Pra saber a relação destes países com a bandeira mando uma imagem sobre isto.
Este desenho foi feito e me senti feliz quando consegui ajustar as variáveis: vermelho, branco, cruz, proporção, notas de £10 e de £5. Mas “O” problema principal continuava: the money. Mil libras livres eram muito pra mim. Teria que conseguir 39 notas de £10 e 122 notas de £5. Até vi um edital daqui cujo valor era exatamente este, mas eles não viram qualidade artística na idéia e não me selecionaram (eheheh).
O tempo passou, eu fiz uns bicos de entregar panfletos, fiz um curso de customer service para desempregados e as dividas se acumulando. É verdade que fui ao Brasil três vezes para participar de cinco projetos de arte e fiz alguns trabalhos aqui para serem vistos lá. O problema é que a libra não deixava meus cachês em Real valerem nada. Um dia Tatiana, minha linda mulher, lembrou de um trabalho que eu sempre achei que seria massa, mas não tinha corrido atrás: Rickshaw. Nos organizamos, fiz dois dias de treinamento e comecei. O Rickhaw é uma bicicleta táxi que rola aqui e foi inventado na China ou no Japão. Sem fitness foi danado, mas lá ia eu para as ruas de Londres, sem conhecer os lugares e falando um inglês ruim e tímido. Aliás, ainda falo um inglês ruim, mas não sou mais tímido linguisticamente, a não ser quando estou na presença de Guy Brett. Fico um pouco nervoso e nada sai fluente.
Primeiro foi difícil, mas chegou o dia em que peguei a manha e comecei a ganhar dinheiro, bem mais que no Costa Coffee ou nos panfletos. Trabalhei então pra pagar as dívidas antigas e não contrair novas. A bandeira rondava a mente, mas mil libras livres ainda eram um sonho para quem devia mais de quatro mil.
Um dia peguei todo o nosso dinheiro do aluguel com mais 25 libras e colei na parede com blutack para poder ver a bandeira. Vi. Não era costurada como queria, para se poder ver a frente e o verso, mas já dava pra sentir. Que bom e que ruim ter que desfazê-la pra pagar o aluguel. Relutei até o último dia, mas descolei tudo e paguei.
Foi aí que minha mulher teve uma brilhante idéia: vender ações da bandeira! Os acionistas seriam pessoas que investissem acreditando no projeto e no meu futuro artístico/comercial/financeiro. Metade da bandeira seria confeccionada com dinheiro do meu trabalho no Rickshaw e a outra metade com dinheiro das pessoas que se interessassem em investir. Quem quisesse investir poderia doar uma nota de cinco ou dez libras para ser costurada na bandeira. Além de escolher o lugar no qual sua nota ficaria, o investidor, evidentemente, receberia uma ação certificando a compra.
Um grande negócio! Pois, quando eu vender a bandeira em leilão por no mínimo 5 mil libras, o investidor poderá trocar a ação comigo por 5 vezes o valor gasto. E caso ela seja vendida por mais dinheiro, o investidor ganhará proporcionalmente, ou seja, se eu vender a bandeira por 10 mil e ele investiu 10 libras então sua ação valerá 100 libras.
Minha esposa Tatiana é muito inteligente. Com isto este trabalho toca nos dois pilares da economia inglesa: trabalho imigrante e especulação financeira. Pois indústria eles não têm aqui. Claro que é muito mais barato montar uma industria na China, na Índia ou no Brasil e pagar o salário mínimo e os encargos sociais destes paises do que os daqui. Então, a prestação de serviços aqui, feita por imigrantes, e a venda de dinheiro, no que, diga-se de passagem, eles são competentíssimos, são o que mais movimenta a economia da ilha da rainha. E que posição estratégica esta ilha tem, a meio caminho entre Tókio e New York, como diz Tati, “é a botija do mundo”.
Agora tudo ficara mais fácil. Eu só teria que ter 505 libras para minha parte da bandeira, que é um pouco mais da metade, posto que eu deveria ser o acionista majoritário, e, assim, poderia vender os outros lotes dela até completar as £495.
Dito e feito. A bandeira foi feita desta maneira. Antes do fim do ano passado consegui todo o dinheiro. O nome do trabalho é Jack Pound Financial Art Project e conta com 43 investidores de 10 países diferentes. Eles têm perfis variados, do estudante de dança Fernando Lopes Silva ao artista plástico Cildo Meireles, da crítica de arte Glória Ferreira ao Rickshaw Rider Botond Laczko-Szentmiklosi da Transilvânia. Passando pela alfabetizadora de adultos Eunice Silva de Araújo e pelo colecionador português Antônio Branco, todos têm sua cota. Tirei fotos com os investidores no momento da compra e cada um de nós tem uma cópia da ação certificando a compra. Terminei de costurá-la há duas semanas.
Claro que durante o processo tive outras idéias relativas ao dinheiro do Reino Unido, a Libra, a moeda mais forte do mundo e a minha condição neste país. Falarei sobre elas mais tarde em outros textos. Estas idéias fazem parte da residência que estou fazendo neste momento na Inglaterra, agora patrocinado pelo British Council e Arts Council England dentro do programa Artist Links. São projetos que trabalham com a concepção do que é este país na ótica de quem não nasceu aqui e que também levam em conta uma das coisas que mais influência este olhar: money como matéria. Trabalhos relacionados à geografia da cidade como Rickshaw, courrier e distribuição de panfletos e o dinheiro que se ganha neles como substrato para materializar as idéias. Uma Topografia Suada de Londres feita por um estrangeiro/migrante financiado pela rainha em época de crise financeira. God save the Queen!
PS: já são 7h30 e hoje foi meu primeiro dia de Rickshaw neste ano depois de seis meses trabalhando com arte no Brasil. Foi um péssimo dia em termos de grana. Só fiz £35 libras num sábado ensolarado. Em sábados como este já cheguei a fazer £250, será que a bolsa que me “melhora” como artista, me “piora” como Rickshaw?...