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janeiro 5, 2009

Vazio e Calmaria, por Juliana Moreira da Silva

bienal01.JPG

Vazio e Calmaria

JULIANA MOREIRA DA SILVA

Pensar sobre a exposição Calmaria, recente individual de Thiago Rocha Pitta, na galeria Millan, pode servir ao leitor também para que entenda melhor a 28a Bienal de São Paulo. Com curadoria de Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen e batizada de Bienal do Vazio, esta última edição deixou vazio o segundo andar do Pavilhão do Ibirapuera, prédio projetado por equipe dos arquitetos modernistas Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa e sede da mostra desde sua quarta edição, em 1957. Pensar que a 28a Bienal, que propôs uma atitude reflexiva, não se estabelece como categórica e pertinentemente política, por não ter apresentado trabalhos de teor explicitamente político, é com certeza um engano.

A exposição Calmaria se fez, por exemplo, de apenas quatro obras, entre elas três abstratas, mais os restos da branda performance que aconteceu no pátio da galeria durante sua abertura. Nada na exposição prenunciava qualquer palavra contestatória; e, todavia, ao formar um ambiente sensível e diferente de tudo à volta, onde a experiência só existiria se o visitante de fato saísse de seu corriqueiro automatismo, ela ia contra o sistema em marcha pela cidade. Rocha Pitta não explicita nenhuma retórica, mas sua obra pressupõe um espectador atento, em outras palavras, que saiba olhar, desenvolver e propor idéias, e isso é político.

O número de bienais internacionais de artes plásticas cresceu de poucas dezenas no início dos anos 1990, como as de Istambul, Sidney, Lyon e Havana, para mais de 200 atualmente. O formato da bienal mostra-se assim uma fórmula compatível, e condizente, com a atualidade globalizada, sendo adotada tanto por países em desenvolvimento e potências emergentes, como por cidades ricas. Uma bienal possibilita que regiões periféricas entrem em passo com a produção artística em evidência no mundo, apresentem-se ao circuito de transações e driblem, temporariamente, uma deficiência histórica no estabelecimento de instituições como museus.

No caso de cidades como Berlim ou, nos Estados Unidos, Santa Fé, que são centros fornecedores de arte e com um sistema de arte já difundido, ou seja, a tripartida de uma comunidade artística influente, público amplo e interessado, e variedade de colecionadores, o evento de uma bienal veio servir principalmente para dinamizar esta estrutura e atrair a visitação, ou o turismo qualificado.

A Bienal de São Paulo, como a primeira a reproduzir o molde expositivo originado com a Bienal de Veneza, em 1895, estabeleceu-se como a segunda mais importante por muitas décadas, o que sem dúvida muito serviu para o enriquecimento da cultura local e das vias de sua inserção no mercado estrangeiro. Essa importância, no entanto, não é mais uma garantia, ou necessariamente verdadeira.

O evento no Brasil se equilibra entre as duas situações; apesar da tradição decorrente e da crescente visibilidade que artistas nacionais recebem fora, ainda se forma aqui um contexto principalmente de assimilação. É quase que unicamente através das edições da bienal que o público brasileiro vê de perto o trabalho de artistas estrangeiros contemporâneos, e também de períodos anteriores, interligados ao de artistas brasileiros. Em países centrais, tal acontece antes de tudo a partir de contínuos programas de exposições, aquisições e manutenção de acervos, feitos por museus expressivos e centros de arte. A relevância política da Bienal do Vazio se dá exatamente em deixar evidente como ainda é deficitário no país semelhante estrutura de tripartida, ao mesmo tempo em que não colabora para que esse contexto de assimilação se forme, procurando opções, mesmo se a guisa do fracasso, como a de uma bolha de sabão protecionista, seja uma delas.

Apresentar um andar vazio veio em parte como alternativa que não mascarasse o orçamento baixo disponibilizado pela Fundação Bienal de São Paulo, que sofre suspeita de irregularidades administrativas e longa crise de gestão. Fica claro, por tanto, a urgência de leis de incentivo compatíveis e colecionadores e profissionais do meio comprometidos, seja em investir e manter fortes organizações de arte, como a Fundação Bienal, seja em, efetiva e genuinamente, compor o conselho ou acompanhar de perto o desempenho delas.

Impõe-se como absolutamente necessário que se abandone a ênfase dada ao espetacular e ao grandioso, "onde a arte se constitui como um mundo-do-faz-de-conta, um reino de fantasias sem realidade própria... [que] apenas reforçava o estereótipo da imaginação como operação volúvel e maleável...", como escreve historiador Rodrigo Naves ao tratar o direcionamento que o evento toma a partir da era Edemar Cid Ferreira à frente da Fundação. A Bienal passa a abrigar expectativas e critérios de julgamento mais condizentes com o cotidiano do mercado, que privilegia o que tem aparência rica, poderosa e divertida, anulando-se em muito a principal virtude complicadora e humanista da arte, "de ampliação de significados e experiências".

Como fazer com que o evento cative o grande público e seja transformador, ao exigir dele a dispensa de energia intelectual e sensível, é um desafio que não deve ser esquecido. Um imenso andar vazio também significa impedir que a bienal ainda se configure como um grande panorama, entregando essa função, mesmo que isso pareça ousado, aos museus e centros de arte da cidade em atividade contínua. A Bienal de São Paulo nunca dará conta de abarcar a produção artística em curso, além de hoje haver veículos de atualização mais eficazes. O que ela pode é se apoderar de sua base histórica e prestígio para, por meio de recortes menores, talvez temáticos, todavia diversos, a priori estudados e relevantes, formar um público de arte mais consistente e rigoroso.

Grandes panoramas, de aspecto como que univalente, algo não menos desinteressante aos profissionais em destaque no mundo que vêem assim se repetir tantas das bienais, acabam apenas por perpetuar o automatismo inerte do espectador então diante de uma longa procissão a ser consumida e assimilada. Ele jamais terá tempo para travar elos, que é em suma o posicionamento crítico, e se apossar intimamente, vá ele acatar ou refutar, jogo este do prazer da experiência estética, do que lhe é apresentado.

De volta a Thiago Rocha Pitta. Sua obra Calmaria, que deu nome à individual e tomava grande parte do espaço expositivo, é uma tela de lona cor branco cru, previamente assada, de 11m de comprimento e 5m de largura. Alçada a uma calha presa ao teto, a tela descia do mezanino da galeria e arrastava-se pelo chão do andar térreo, como se fosse uma longa cortina, um véu, ou mesmo uma cachoeira. Uma nuvem de cristais de sal no alto da tela tendia a absorver a umidade do ar, e a água gasosa assim aderida aos poucos se precipitou, escorreu pelo comprimento do tecido opaco e nele configurou novas impressões de sal. Ao comentar a obra, Rocha Pitta diz: "...o barato do sal é o seguinte: o sal retarda o tempo das coisas. A gente precisa de sal para não evaporar, para não desidratar. Sem sal você perde a umidade. O sal vem da erosão das montanhas. Há milhões de anos o mar não era tão salgado quanto hoje, o mar era mais agressivo, evaporava mais rápido. Chovia mais rápido. Eram processos mais rápidos. A tendência é ficar cada vez mais salgado, por isso uma chuva retardada".

Perto dessa grande tela, havia apenas um outro trabalho, também à primeira vista abstrato, mas menor, e que, posto a sua frente, formava um espelho de significados. Tratava-se de um papel levemente queimado na borda inferior emoldurado dentro de uma caixa de madeira e vidro, onde manchas densas de sal recobriam a parte superior do vidro e projetavam sombras, como nuvens, sobre o papel. Se Calmaria servia de pano de fundo para que se desse o movimento de transformação dos estados da matéria, esse outro trabalho, que era estático, parecia evocar uma paisagem aberta de terra seca e céu de nuvens, potencialmente levando a mente a reconstruir a experiência do ciclo da chuva.

Pode ser dito que a individual de Rocha Pitta, ao problematizar a percepção dentro do espaço expositivo utilizando-se de poucos elementos, de uma dimensão física deixada às claras, e ao não se dar a ilustrar o mundo externo, ainda que aludisse a ele, mas a entender primeiro a matéria em seu estado puro, configurava, em parte, uma vertente contemporânea do minimalismo. Assim dito, é possível supor que se tratava de uma exposição hermética, de difícil compreensão ao visitante simples e, portanto, de cunho elitista, que apenas os bem formados conseguiriam acessar, assim como ainda em muito se pensa do movimento minimalista por ter imposto, antes de tudo, uma plataforma reflexiva. Esse, no entanto, parece ser o receio, ou discurso, da classe intermediária, todavia pequena na pirâmide achatada da sociedade brasileira. Classe também feita pelos formadores de opinião, diga-se, por uma parcela dos jornalistas que, apesar de um diploma e permanência na mídia, não são necessariamente pessoas que contam com estudo sólido e que conseguem articular conteúdo, o que se impõe como necessário quando tratamos de ampliar os horizontes das artes plásticas no país. Assim, nem mesmo informação de fato se processa já que muitos desses profissionais, sem compromisso com o conhecimento ou com a pesquisa, acabam por repetir uma mesma velha anedota.

Diante do ato estranho da recente Bienal de deixar um andar inteiro do pavilhão vazio, quais não foram os jornalistas que, de óbvio aturdidos, instintivamente avessos e contrariados, apenas atacaram a recente edição sem jamais se aproveitar da bela Deixa dada para que, na falta de tantos artistas e obras, pudessem exatamente falar dos membros do conselho da Fundação, do perfil e desempenho desconhecido de cada um, ou finalmente traçar paralelos e trazer à tona paradigmas interessantes da arte, como a pertinência para o mundo atual de questões apontadas pelo minimalismo quatro décadas atrás, ainda difíceis e então como se revisitadas pela atual edição?

Não, os jornalistas e outros profissionais do meio esperavam o espetáculo à moda antiga; eles mesmos assimiladores, não conseguiram se valer do inaudito. Silêncio não dá notícia, e a população ficou desinformada do endereço desse Vazio. A recente bienal, que tão pouco se proveu de anúncios, uma boa assessoria de imprensa ou estratégia de marketing, foi taxada de elitista principalmente por não ter pautado o evento em linhas chamativas, e assim nem sua grade de eventos e palestras foram para os jornais, revistas ou rádio. Não se evidencia outra faceta da dificuldade de articulação do circuito de arte do país que tanto depende do evento, mas que de novo manteve-se omisso e distante? Tivessem ido, o que teriam sentido e dito o mecânico de garagem, a enfermeira, o pedreiro, a funcionária pública, ou o engenheiro, o publicitário, a médica, o industrial, o advogado, ao caminhar por esse vazio sem nada para ver? Qual seria o testemunho deles, e daqui um ano, uma década? Seria uma memória triste e negativa, talvez a imagem do interior de um prédio dos limites modernistas com apenas suas tantas cem colunas pintadas de branco, ou se lembrariam dos pensamentos quase aleatórios que na ocasião tiveram? Voltariam em dois anos? A sensibilidade se aguçaria, mesmo para quando subissem ao terceiro andar e vissem o que estava lá sem alarde? Poderiam vislumbrar um pouco do porquê - se alguém vier lhes anunciar - que é a Mira Schendel uma das artistas brasileiras mais importantes da contemporaneidade?

Os acadêmicos e críticos de arte, por sua vez, raramente se apresentam; preferem a liberdade sóbria de uma cristaleira ao redemoinho violento da comunicação de massa?

Cinema Fóssil é o titulo dado a performance-instalação que Rocha Pitta apresentou na noite de abertura de sua individual. Um buraco retangular foi cavado no quintal da galeria e preenchido com carvão, então aceso na ocasião, enquanto uma tela de aço polido inclinada em 45º refletia a agitação do fogo. Configurou-se a experiência de estar em frente a uma fogueira trazida para o meandro estilizado e crítico que é o contexto de uma exposição de arte; ou seja, as pessoas que ali se demoraram ao prazer insólito que é o de fitar o fogo devem, em contrapartida, ter se perguntado qual era o motivo por trás daquilo tudo. O artista também denomina o trabalho de cinema arcaico, pois o efeito hipnótico do fogo em chama e brasa prende a atenção do visitante à tela refletora de aço polido, como se num cinema, sem que venha ao caso o recurso de uma narrativa ou de um montante de imagens. Ao contrário, parece que se buscava deixar emergir um sentido não processado, de um repertório primordial.

Mais ou menos na mesma época, como parte do programa da 28a Bienal, a artista norte-americana Joan Jonas, 72, fazia duas apresentações de sua performance A Forma, O Aroma, A Sensação das Coisas, no térreo do pavilhão. De aspecto mais complexo que aquela de Rocha Pitta, pois abrigava diferentes projeções, atores, vários objetos e piano tocado ao vivo, a performance de Jonas por fim igualmente construía uma experiência que não aderia ao sentido corrente das coisas. Sua lógica frustrava a expectativa por uma narrativa, passava ao largo indo atiçar partes dormentes da mente. Como Rocha Pitta, Jonas se munia de um delicado ideário ancestral. Via-se na melancólica poética de sua performance alusões à cultura do índio nativo do centro-oeste norte-americano, tanto pelas paisagens de deserto, e figuras do coiote e mesmo de uma jovem em eterna espera, como pelas passagens do diário de um intelectual italiano e paciente em um hospício na Suíça.

Ao reportar a performance, pouco se falou da pesquisa artística de Jonas relacionada à obra, o que é fundamental como serviço que instrumente o público para a arte, e que lhe dê motivos para querer ir ver o trabalho. Nada foi perguntado à artista sobre o que achava da 28a Bienal e se podia traçar paralelos, bem possíveis e evidentes, entre o evento e sua performance. Preferiu-se, em casos, restringir tudo à então recente eleição presidencial de seu país, como se não fosse óbvia a predileção de Jonas por um governo do partido democrático, ou que a pertinência de seu trabalho não passasse disso, nem exatamente negasse um discurso em breve panfletário.

O vídeo Proto-tide de Rocha Pitta, exposto sozinho no mezanino da galeria, de onde caía para o térreo a longa tela Calmaria, também recriava um ciclo natural contínuo, o da maré (ou tide, em inglês). Via-se no vídeo, num cenário noturno, a água da maré em alta avançar sobre um braseiro posto na areia da praia à beira do mar. As chamas, de talo laranja e pico rosa forte, levantadas pelo vento e refletidas na água escura, eram primeiro atiçadas, avivadas pelo mar que agita o braseiro, e ouve-se o estalar do fogo, para, aos poucos, sucumbirem sob a ação crescente da maré. O véu branco de vapor criado pela brasa molhada se logo dissipava, e o que ficou foi a lúgubre monotonia do carvão preto sobre o fluido escuro. O esperado desfecho pareceu-me, no entanto, ganhar um tom de desolação maior que o previsto, algo como uma contida e insólita apocalipse, de um ambiente então sumariamente inorgânico.

Isso me lembrou as instalações de Joseph Beuys, talvez por que eu já viesse mesmo pensando na obra do mestre. Beuys, incansável ativista do humanismo e da ecologia, desbravou arquétipos essenciais e persistentes no ideário do homem, e com freqüência se voltou a matrizes da natureza. Pensava sobre sua participação na Documenta de Kassel 7, em 1982, quando implementou o projeto de plantar 700 mudas de carvalho na cidade de Kassel, um ato também em memória da memória. Antes em 1972, convidado da Documenta 5, estabeleceu ali uma sala de aula aberta aos visitantes onde ministrou discussões, palestras e atividades contínuas durante os 100 dias que durou o evento. A Bienal do Vazio pareceu timidamente apontar nessa direção, mesmo que tenha tropeçado nas cordas do mastro de um circo montado. O espaço deixado vazio, como um desfalecimento monótono ou de um contido apocalipse frente ao montante incomensurável da produção globalizada, abria precedentes para que o esquálido fantasma da memória fosse visitado e encorpasse.

A agenda de seminários promovidos pela 28a Bienal, embora pouco freqüentados, formaram fóruns bastante ricos de discussão sincera e aprendizado não conclusivo. Esperemos que numa próxima ocasião estudantes, universitários, acadêmicos, profissionais do meio, artistas, colecionadores e interessados sejam realmente estimulados a participar, e achem seu caminho.

Juliana Moreira da Silva é crítica de arte. Outros ensaios de sua autoria publicados no Canal Contemporâneo podem ser lidos no arteemcirculação de 2006 e, na mesma seção, em 2007.

Posted by Juliana Monachesi at 6:38 PM