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dezembro 17, 2008
Sobre a arte literalista, por Artur Freitas
Sobre a arte literalista
Artur Freitas1
Tenho acompanhado com grande interesse boa parte dos debates que a 28ª Bienal de São Paulo vem suscitando. Em linhas gerais, percebo que via de regra a discussão tem circulado ao redor de um núcleo de questões bem pontuais e nem sempre articuladas entre si, como a crise institucional da Bienal, a mão pesada da curadoria, a intervenção dos pichadores, a prisão de Caroline Pivetta da Mota, a reação do ministro da cultura e o abaixo-assinado em favor da jovem detida2. Não sei realmente onde tudo isso vai dar, mas adianto que não apenas sou favorável à imediata libertação de Caroline, cuja detenção é um absurdo sem precedentes, como inclusive simpatizo com os “ataques” realizados ao pavilhão “vazio” da Bienal. Por outro lado, afirmo de antemão que a minha simpatia não decorre do reconhecimento de um eventual status “artístico” das ações dos pichadores. A questão sem dúvida não é essa. Intervir literalmente no prédio da Bienal, no meu entender, é algo que ganha legitimidade pública na medida em que se apresenta como forma efetiva de reação a uma compreensão equivocada de arte – uma compreensão, é preciso dizer, que ganha lastro institucional em eventos como a atual Bienal de São Paulo.
Em boa parte dos casos, os textos mais importantes sobre a Bienal optaram por comentar o peso das decisões curatoriais. O artigo de Guy Amado, por exemplo, reforça a leviandade com que muitas vezes foi tratada a questão do “vazio”, proposta e executa por Ivo Mesquita3. Paulo Sérgio e Waltércio, por seu lado, divertem-se ao mencionar que o “curadorismo” seria o “último ‘ismo’ do século XX”, chegando a afirmar que depois da “arte pela arte, temos agora a curadoria pela curadoria” 4. Enquanto Ricardo Basbaum, finalmente, celebra “a forte reação negativa” ao evento e considera um mérito que a 28ª Bienal tenha se “assumido plenamente” 5. Partindo de posturas diferentes e chegando a diferentes conclusões, os artigos no entanto concordam quanto a forte presença autoral da curadoria. Adequada a um orçamento minguado, a mostra, que se pretende “Em vivo contato” não sabemos bem com o quê, foi analisada em pormenores por esses e outros artigos, e não pretendo aqui me ater mais uma vez às minúcias das decisões curatoriais. Antes, gostaria de aproveitar a ocasião para defender a idéia de que tais decisões, tanto quanto as reações dos pichadores e a prisão de Caroline, devem ser vistas não como resultados da mera decisão curatorial, mas sim como sintomas de um certo entendimento de arte que, como vejo, tende à hegemonia desde a última Bienal de São Paulo, organizada por Lisette Lagnado, em 2006.
Para resumir, considero uma lástima o que vem ocorrendo. Discordo completamente de Basbaum quando ele afirma que, juntas, as duas últimas edições da Bienal vão “aos poucos recuperando a credibilidade do evento enquanto plataforma de investigação e experimentação” 6. Há aqui uma evidente confusão entre, de um lado, experimentar, e de outro, reiterar o que já foi experimentado. No impacto geral, acho a atual Bienal de São Paulo fraca e opressora, ainda mais problemática que a da Lisette, e não por conta do peso das decisões dos curadores, mas pelo modo com que o circuito de arte institucionaliza uma visão literalista da experiência artística na contemporaneidade.
A realidade apropriada: o grande telos vanguardista
As duas últimas Bienais de São Paulo, assim como a reação dos pichadores à atual edição, trazem à tona a relação entre arte e realidade. O tema, claro, é de grande importância e merece desdobramentos críticos urgentes. O próprio lugar da arte contemporânea, aliás, é em geral compreendido – seja no campo universitário, seja no de arte – com base em aproximações com o mundo da vida. A definição simplista das poéticas contemporâneas em função da superação da autonomia modernista e da conseqüente permeabilidade com o real, por exemplo, já se tornou um clichê para lá de enjoativo. Mas se olharmos com atenção, veremos que não é somente a arte que se aproxima da vida e que afinal se define nos meandros desta aproximação: é também a realidade que se aproxima da arte – o que não deixa de ser, na condição contemporânea, uma provocação permanente aos nossos critérios de interpretação, juízo e discernibilidade. E se simpatizo, como disse, com as ações dos pichadores, é sobretudo em vista dos problemas que elas impõem à própria tradição das vanguardas – e aqui gostaria de me explicar um pouco melhor.
Como talvez pareça, não se trata de entender tais ações como se fossem a mera atualização dos projetos de vanguarda, o que seria compreender as coisas pela metade. Não nego, contudo, que sejam evidentes as semelhanças entre os propósitos de tais intervenções e as estratégias das vanguardas históricas das décadas de 1910 e 20 ou das neovanguardas dos anos 1960 e 70. Afinal, diante da rebeldia anti-institucional dos grupos pichadores, é mesmo difícil não imaginar um caminho que parta de Marcel Duchamp, passe por nomes como Marcel Broodthaers, Daniel Buren ou Hans Haacke e chegue ao presente. Um caminho, enfim, cujo critério político, entendido como a própria fusão entre arte e vida, seria o denominador comum que permitiria colar, numa teleologia possível, eventos tão distintos no tempo e no espaço7.
Contudo, se destaco o que há de comum nisso tudo – de Duchamp à Bienal de São Paulo – é porque percebo aí uma espécie de crença de que a vanguarda possui uma história que se sustenta na aproximação entre a arte e a realidade, mas numa aproximação que vai da arte à realidade. Pois nas vanguardas, percebemos facilmente, é a arte que pretende expandir-se, apropriar-se da vida, do museu e dos espaços da cultura, e não o inverso. É a arte, enfim, que se apresenta como um modelo de intervenção sobre mundo – mas um modelo, também é fácil perceber, que entra em crise no exato momento em que é plenamente enunciado.
Em 1974 – para citar um exemplo forte desta plena enunciação – o sociólogo alemão Peter Bürger publicou o seu hoje clássico livro Teoria da vanguarda8. O texto, escrito num momento de crise dos próprios movimentos de vanguarda, logo se tornou literatura obrigatória sobre o assunto. Pouco afeito à arte do seu próprio tempo, Bürger no entanto teve a sensibilidade e o ímpeto crítico necessários para a compreensão dos contornos gerais das vanguardas históricas dos anos 1910 e 20. Para o autor, em síntese, a idéia de “vanguarda” consistia basicamente num comportamento estético-ideológico voltado à negação da autonomia da arte, à recusa dos mecanismos de autoridade da “instituição-arte” e, mais que tudo, à tentativa de recondução da produção artística à “práxis vital”, ou seja, ao mundo prático da vida9. Em resumo, Peter Bürger acreditava que o conceito de vanguarda consistia não apenas na recusa da idéia de “arte pela arte” e de suas conseqüências autonomistas, mas sobretudo na proposição utópica de certas formas de arte que se mostrassem capazes de intervir literalmente na realidade, burlando assim seus principais condicionantes sociais e mercadológicos. Com tal definição, o sociólogo pensava sobretudo no legado dadaísta e em especial na obra de Marcel Duchamp, mas também nas proposições sócio-estéticas do construtivismo russo, bem como em certa radicalização implícita na fase sintética do cubismo. Bürger, por esse caminho, acabou demonstrando uma importante contradição histórica da arte do século XX – uma contradição, para simplificar, a que eu gostaria de nomear de o impasse das vanguardas. Em linhas gerais, tal impasse pode ser descrito como a consciência da impossibilidade lógica e sociológica de vermos os propósitos históricos das vanguardas plenamente realizados. Vejamos porque.
Para Peter Bürger, a idéia de autonomia modernista consistiu numa espécie de reação histórica necessária, algo como uma afirmação exaustiva dos valores internos da arte em detrimento de uma ordem social externa, injusta e deteriorada. No entanto, ao contrário de Adorno, Bürger não via na posição autonomista uma recusa simplesmente afirmativa. “Uma arte que já não seja erguida sobre a práxis vital” – disse ele – “mas dela se encontre completamente separada, perde com a distância que a separa também a possibilidade de criticá-la” 10. Para o autor, se de um lado a arte autônoma protesta “contra a ordem deteriorada do presente”, de outro ela falha ao propor “uma ordem melhor”, uma vez que esta seria “melhor” apenas “na aparência da ficção” 11. É diante disso, enfim, diante da fragilidade da autonomia modernista, que afinal teria surgido, sempre segundo Bürger, toda a forma de “intervenção vanguardista”, agora compreendida não como a reintegração da arte naquela mesma ordem social deteriorada, mas como a “tentativa de organizar, a partir da arte, uma nova práxis vital”
12. Por outras palavras, o conceito de vanguarda passa a ser visto como o próprio momento de consciência histórica da impotência autonomista – e é a partir deste ponto que podemos começar a compreender em que consiste o tal impasse há pouco mencionado.
Opor-se ao princípio da autonomia, em arte, é em grande parte opor-se ao próprio conceito de “arte”, dado que todas as formas artísticas – assim como as filosóficas ou as científicas – são do domínio da representação, na exata medida em que consistem em formas de mediação do homem com a realidade. Portanto, em relação ao mundo, a arte seria sempre, por definição, um elemento discernível, mesmo que minimamente, e nunca um duplo imediato do real. É nesse registro, por exemplo, que o velho slogan vanguardista da “anti-arte como arte” (ou vice-versa) soa mais como hábito discursivo – aliás bastante comum – que propriamente como fundamentação lógica ou condição de probabilidade. Reconheço, evidentemente, que numa certa perspectiva é mesmo possível sustentar que toda forma de arte é “anti-artística”, uma vez que toda obra, enquanto obra “de arte”, acrescenta um sentido novo ao mundo, e que para fazê-lo precisa recusar alguns dos sentidos “artísticos” já previamente estabelecidos pela cultura. Mas não é disso que estamos falando. O sentido vanguardista de “anti-arte” pressupõe na origem a “reintegração” da arte na vida, ainda que numa “nova” forma de vida, como disse Bürger, e o modelo desse processo é justamente aquele que prevê, nesta mesma origem, um fim cujo telos é sempre o “fim da arte”.
Estou me referindo, é claro, à teleologia histórica de Hegel, com todos os padrões fundamentalmente “modernos” de compreensão do tempo e do homem que lhe correspondem e lhe seguem. Por esse caminho, abrindo mão de sua condição de mediação, a arte tende a tornar-se “vida”, “espírito absoluto”, “sistema socialista” ou o que for, e assim deixa de existir como fenômeno necessário, discernível e autônomo, ainda que isto seja dito de modo relativo. É o tema clássico do “fim da arte”, que no limite consiste na expressão mais bem acabada não da morte da “arte”, como parece evidente, mas sim da morte da “vanguarda”, o que é sem dúvida mais exato. Enfim, o fato é que a aspiração de poder da arte sobre a vida acabou levando a uma contradição lógica e histórica cuja natureza se poderia resumir ao confronto de dois importantes axiomas que me ocorrem. O primeiro consiste no seguinte: quanto mais a arte se dispersa na heteronomia do real, mais ela perde as suas propriedades representacionais e com isso vai deixando de ser arte, ao menos em termos lógicos. Já o segundo axioma, por sua vez, pode ser assim resumido: quanto mais a arte, pelo menos em termos institucionais, se mantém firme como arte, menos ela se assume como vanguarda – o que afinal coloca em xeque a viabilidade efetiva de todo um projeto histórico revolucionário.
Em síntese, é precisamente nisto que consiste o tal impasse das vanguardas – algo que também pode ser descrito como a própria consciência das contradições inerentes à sobreposição daqueles dois axiomas. Assim, se a arte se torna vida, deixa de ser arte; e se se mantém como arte – o que de fato aconteceu, pelo menos enquanto atribuição histórica e institucional – deixa de ser vanguarda. Não espanta, portanto, que daí por diante “tornar-se indiscernível do real, mas sem deixar de ser arte” passe a ser o mais novo slogan do impossível, a chave de um projeto que se torna inviável no exato momento em que pode ser plenamente enunciado. Aliás, quando menciono esse “momento”, refiro-me à conjuntura de difusão internacional dos postulados mais radicais das vanguardas dos anos 1960 e 70, que no meu entender é justamente o contexto em que ocorre o processo de conscientização histórica do impasse das vanguardas. O pensamento de Peter Bürger, por exemplo, é parte ativa deste contexto, assim como também o são a teoria institucional de George Dickie, a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu ou Howard Becker ou mesmo o debate sobre o “mundo da arte” conforme proposto por Arthur Danto. Deste modo, apesar da inegável diversidade de posturas e métodos disciplinares, não há dúvidas que todo esse variado arcabouço teórico tem em comum, além do recorte cronológico, a pretensão de compreender a arte a partir de seus pressupostos institucionais, ou seja, a partir da dinâmica viva do sistema de produção, distribuição e recepção da arte numa certa época e lugar, o que obviamente engloba os museus e as galerias, os ateliês e as coleções, passando pela mídia especializada, as instituições de ensino e a curadoria, só para mencionar os aparelhos culturais mais comuns.
Incapaz de isolar “internamente” o componente “artístico” das obras e ações de vanguarda, a Teoria sessentista passa a interpretar os caminhos da legitimação simbólica da arte a partir da relação com o dado contextual, o que sem dúvida explica algo do fascínio pela “instituição-arte” – para usar outro termo de Bürger –, uma vez que a instituição seria sim o primeiro componente concreto de mediação da “arte” com o “mundo” 13. Não por acaso, tal fascínio é correlato, no tempo e no espaço, à preocupação “contextualista” de boa parte das intervenções artísticas das novas vanguardas dos anos 1960 e 70. O assunto, aliás, é amplamente conhecido, e não há espaço aqui para esmiuçar os diversos modos com que as neovanguardas, sobretudo em sua faceta conceitualista, buscaram explorar a permeabilidade da arte com os contextos movediços da ideologia, do comportamento e da linguagem. De todo modo, talvez caiba apenas mencionar que foi exatamente este o ambiente criativo que possibilitou que o problema genérico da relação entre arte e vida assumisse o contorno mais pontual da relação entre a arte e seus condicionantes institucionais. As questões ontológicas da “obra” e da “instituição”, daqui por diante, tornam-se questões poética e ideologicamente complementares, dado que contestar um sentido “convencional” implica em agir sobre os meios de conservação e difusão das próprias “convenções”, aí incluídos, no caso da arte, os museus, os salões e as galerias. Ou como notou Lorenzo Mammì, há um momento em que a situação da arte se teatraliza a ponto de permitir que “o cubo branco, enquanto espaço exemplar das instituições artísticas” passe “a desempenhar o papel do antagonista, do tirano que deve ser desafiado para que o herói-artista possa exercer sua ação” 14. Batizada de “cubo branco”, a galeria de arte, que agora incorpora todas as vilanias do poder do Estado e da lógica do capital, passa a ser compreendida como um espaço ideológico voltado única e exclusivamente a separar a arte – como distinção social e mercadoria de luxo – de toda a vitalidade de um mundo ainda visto como livre e expressivo15. Tratada como uma forma de comportamento, a arte almeja nada menos que a linguagem do mundo, e para tanto aspira a vitória sobre o único vilão que lhe impede o gozo eterno da vida mundana: o aparelho institucional.
Evidentemente, e aqui chegamos a outra faceta do mesmo impasse, não é preciso ir muito longe para perceber que a retórica “anti-institucional”, radical nas vanguardas sessentistas, não só não derrubou historicamente as paredes dos museus, como não tardou por ser reabilitada pela própria instituição-arte. Por questões lógicas e institucionais, a vanguarda não tomou a vida pela arte e assim não cumpriu seus desígnios históricos, o que também não impediu, já no ambiente neoconceitual dos anos 1990, que alguns de seus propósitos fossem novamente reconsiderados, ainda que em nova chave. O problema, contudo, é que no contexto da pós-vanguarda, talvez em função da consciência histórica do tal impasse, tanto a diluição da arte na vida quanto a superação da vida pela arte deixam de ser uma utopia prospectiva para retornar como um simples recurso retórico. “Tornar-se indiscernível do real, mas sem deixar de ser arte” – a velha angústia das vanguardas – não tem aqui mais o peso de um impasse. Trata-se apenas de um clichê, risonho e bem-nutrido, que segue se alimentando da restauração mais cínica – ou ingênua – da velha teleologia vanguardista. E uma restauração, cumpre ainda dizer, que não raro se apóia nas colunas mais robustas do aparelho institucional dominante.
Pós-vanguarda e arte literalista
Lá se vão mais de dez anos desde que o crítico norte-americano Hal Foster, num livro conhecido, interpretou parte importante da arte contemporânea como uma espécie de “retorno do real” 16. O argumento, bem informado e influente, é também o sintoma evidente de um certo entendimento de arte ou de prática discursiva. Nele, de saída, há tanto uma aposta direta e quase solene na criticidade pós-estruturalista, de Derrida a Julia Kristeva, quanto, digamos, uma curiosa confiança histórica nos expedientes das “vanguardas” – e “curiosa”, note-se, porque enunciada em fins do século XX.
Num mundo como o nosso, de acumulação flexível, simulações midiáticas e choques multiculturais, não admira que o sentido do “real” muitas vezes se confunda com a própria idéia de “cultura”, ela mesma imersa num impulso antropológico totalizante. As práticas, os valores e as mais diversas formas de representação das mais variadas sociedades: tudo é cultura e tem ou deveria ter o mesmo peso, a mesma medida, o mesmo e exato fundamento. Daí por diante, claro, num contexto em que intervir na “cultura” soa como intervir diretamente no “real”, é quase natural que qualquer ação “cultural” ganhe ou arrisque ganhar uma condição de intervenção – e que a sua validade se meça, sem qualquer cerimônia, pelo grau de impacto e eventual transformação da “realidade”. Fluxos comportamentais e toda sorte de intercâmbios sociais podem, enfim, surgir como arte, na mesma medida em que o artista se torna, ao fim e ao cabo, e para usar um termo do próprio Hal Foster, uma espécie de “etnógrafo” da vida cultural17.
Por outro lado, não deixa de ser espantoso que em apenas dez anos o status a princípio contra-hegemônico dessa guinada etnográfica (ethnographic turn) – cujo antepassado ideal remonta às vanguardas sessentistas – pareça ter assumido as proporções colossais do espetáculo institucional, como no caso da última Bienal de São Paulo (2006, Lisette Lagnado), toda ela aberta àquela “arte quase-antropológica” de que falava Foster18. Mas o que espanta mesmo, nesse sentido, é a literalidade com que tantas vezes se trata a proposição da “arte como cultura”, típica do “retorno do real”, como se por acaso fosse possível o seu contrário – como se acaso pudesse existir uma forma de arte que eventualmente não pertencesse à realidade da vida cultural.
A questão, em suma, não consiste ou não deveria mais consistir em enunciar a cada ato uma “arte” dispersa no “real” – o que aliás é uma redundância lógica e ontológica –, mas sim compreender os diferentes modos com que as formas de arte se relacionam com os sentidos estruturados e portanto codificados da cultura. E isso porque se de um lado a arte, por redundância, é parte do real, e com ele partilha os mesmos atributos físicos, lógicos e éticos, de outro, contudo, e por definição, ela é sempre um desvio da norma, uma alteração das convenções e, por isso mesmo, uma invenção de sentidos, quer dizer, uma exceção às regras da cultura – como certa vez definiu Godard. Entretanto, compreender a arte nesses termos implica em compreender que o “retorno do real” da arte recente é antes uma figura de linguagem que um atributo literal, mas uma figura, convenhamos, desgastada pelos próprios pressupostos, dado que a ficção da literalidade é também ela mesma uma forma de ficção. A arte atual, em resumo, não depende mais exclusivamente da abordagem literalista, nem pressupõe, como condição necessária, o cíclico e eterno retorno da realidade. Antes, ela aceita os ventos da realidade cultural – tal como a linguagem, as práticas e os valores da vida – para só então mover seu absurdo moinho, e com ele devolver ao mundo – na verdade “estornar” – uma realidade alterada e, talvez por isso mesmo, basicamente nova.
Sendo assim, num contexto em que a realidade é cultural e que a cultura é em grande parte controlada pelas regras do mercado global e da comunicação política, é até previsível que o “realismo” da arte literalista entre em crise, e que a própria idéia de arte, para se manter como tal, dependa de outras formas de relação com o real. Entre estas, no meu entender, a principal é a discernibilidade, ou seja, a capacidade que as formas de arte possuem não de enunciar mas de efetivamente demonstrar – em obra – certas distinções face aos repertórios franqueados da cultura. Mas relembremos: há quase trinta anos, num ambiente pós-conceitualista, o filósofo Arthur Danto respondeu a essa equação afirmando que dois eventos indiscerníveis na percepção podem sim ser distintos no campo ontológico, e que isso ocorre graças à pressão de dados contextuais como a historicidade ou a capacidade descritiva do intérprete, o que de fato é verdade19. O problema, contudo, é que essa resposta não tem validade indeterminada, e não só pelo anacronismo, mas sobretudo por ser uma resposta teórica, filosófica, e não uma asserção da própria arte. Assim, se defendo agora a discernibilidade da arte face a cultura como um valor possível para a arte de hoje, e se o faço obviamente com todas as limitações de uma proposição teórica, é somente porque acredito que aqui a teoria reflita um aspecto decisivo de parte importante da produção artística atual, e não o contrário
Quando a realidade se apropria da arte
Por esse caminho, quando afirmo que as ações dos pichadores problematizam a tradição das vanguardas, não é no sentido de ver nelas um prolongamento teleológico de uma eventual “linhagem” Duchamp-Broodthaers. A meu ver, já aprendemos com sobras sobre o poder que o mundo da arte tem de legitimar como arte propostas inclusive contrárias às instituições artísticas20. E como afirmou Richard Wollheim, é mais fácil dizer porque algo é uma obra de arte do que dizer porque não é – sobretudo depois de uma eventual consagração “artística” 21. A última fase de Lygia Clark é arte. O porco empalhado do Nelson Leirner no acervo da Pinacoteca também. Assim, o eventual processo de “deslegitimação artística”, se possível, é ainda um mistério sem solução. Depois das vanguardas, enfim, a arte contemporânea ainda é um fenômeno discernível frente à realidade – o que é outro modo de dizer que a arte não só não morreu naufragada na vida, como se esperava, como aliás sobreviveu à morte dos mais diversos pós-modernismos. E mesmo assim, com toda a castração histórica sofrida, a fusão vanguardista entre a arte e a vida ainda segue tendo, na condição contemporânea, um valor social exemplar, tanto na arte quanto na realidade. Pois vejamos.
De um lado, no campo da arte, o “terrorismo estético” das vanguardas heróicas segue alimentando, como ingrediente poético, o grande sopão da arte contemporânea. A realidade torna-se agora um horizonte, ou seja, uma meta inalcançável, inclusive em termos lógicos, como mencionou Arthur Danto22. Na tentativa de aproximar-se do real, a arte, por definição, o reconstrói como discurso, e o jogo recomeça. A arte, claro, pode (e muitas vezes deve) ser ainda imoral, alegoricamente radical, mas nunca literalmente perigosa ou ilegal. Pois no presente, as ficções da arte só são possíveis, autorizadas, se funcionarem sob a forma do legalismo jurídico, e isso é um fato.
Mas de outro lado, já no campo da realidade, é preciso esclarecer que somente o real pode efetivamente dar cabo dos projetos exemplares das vanguardas heróicas – mas dar cabo, falemos logo, como realidade, e não como arte. Assim, em ações como as do ataque ao pavilhão da Bienal, a referência aos procedimentos das vanguardas não deve ser vista como validação de um status “artístico”, ainda que isso eventualmente entre em conflito com o próprio discurso autoral. Nada mais longe da natureza destas ações que compreendê-las como a ponta final, bem sucedida e teleológica de um projeto “de arte” que só agora se completa. Pois não foi a arte que se expandiu a ponto de se confundir com a “práxis vital”, como dizia Peter Bürger, mas sim a realidade que se apropriou das regras da arte para denunciar, politicamente, sua lógica arbitrária. Quando, por exemplo, o italiano Piero Cannata atacou obras de Pollock e Michelangelo nos anos 1990, pondo em prática o ataque aos museus antes apenas proposto pelos futuristas, seus gestos não eram “performances”, como algumas vezes se disse23. Eram gestos políticos, ou mesmo psicóticos, de qualquer forma uma ação da realidade sobre a arte, e não o inverso. Do mesmo modo, mutatis mutandis, a depredação de patrimônio público tombado – tal como foi feita a denúncia – efetuada pelos grupos pichadores acaba convocando para a arena pública os nossos juízos políticos sobre uma postura que decerto transcende o legalismo da arte contemporânea, e aí é preciso posicionar-se mesmo. Pessoalmente, como falei, vejo os casos “Piero Cannata” e “ataque à Bienal” como sintomas do avanço da realidade sobre a arte – uma espécie de política da arte, eu diria – com a diferença que o primeiro é uma estupidez sem tamanho e o segundo uma ação inteligente e eficaz.
16 de dezembro de 2008
Artur Freitas é historiador da arte, professor doutor da Faculdade de Artes do Paraná e professor da Pós-Graduação em História da Arte da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, ambas em Curitiba – arturfreitas@bol.com.br
NOTAS
1Este artigo condensa partes de dois textos anteriores: “Considerações sobre arte e realidade no caso Darko Maver” (2006) e “O estorno do real” (2007).
2Para mais informações sobre os eventos, sugiro: ALBUQUERQUE, Fernanda. As articulações do vazio ou em busca do buraco da Bienal. Fundação Iberê Camargo, 10 dez. 2008; AMADO, Guy. Sobre a 28ª Bienal ou “o buraco é mais em cima”. Canal Contemporâneo, 16 nov. 2008; BASBAUM, Ricardo. Viva o contato, viva a vaia. Revista Trópico, 24 nov. 2008; CYPRIANO, Fabio. 28º Bienal de São Paulo naufraga em seu vazio. Folha de São Paulo, 29 nov. 2008; DUARTE, Paulo Sérgio. Uma Bienal “diet”. Revista Trópico, 24 nov. 2008; GRUPO INVADE a Bienal e picha o segundo andar. Folha On-Line, 26 out. 2008; HERKENHOFF, Paulo. Bienal age de modo cínico e intolerante ao lavar as mãos. Folha de São Paulo, 15 dez. 2008; MUNIZ, Diógenes. “Me identifico com o vazio”, diz jovem presa por pichar Bienal. Folha On-Line, 05 dez. 2008; MUNIZ, Diógenes. Ministro da Cultura pede a Serra libertação de pichadora da Bienal. Folha On-Line, 11 dez. 2008; NAVES, Rodrigo. Carta ao editor do Estado de São Paulo, s.d., [dez. 2008].
3AMADO, Guy. Sobre a 28ª Bienal ou “o buraco é mais em cima”. Canal Contemporâneo, 16 nov. 2008. On-line: http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/001936.html
4DUARTE, Paulo Sérgio. Uma Bienal “diet”. Revista Trópico, 24 nov. 2008. On-line: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3037,1.shl
5BASBAUM, Ricardo. Viva o contato, viva a vaia. Revista Trópico, 24 nov. 2008. On-line: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3038,1.shl
7A propósito, não duvido que a própria história da arte brasileira se beneficiasse com tal critério, dada a força da tradição Clark-Oiticica entre nós. Basta pensar em trabalhos como os Parangolés de Oiticica, a ação Tiradentes de Cildo, o porco empalhado de Leirner, a nudez de Antonio Manuel ou mesmo o Manifesto de Barrio, para ter em mente a previsível legitimação ideológica de uma vanguarda “guerrilheira” surgida em plena ditadura militar. E isso, claro, se o critério “político” já não estiver em curso, sobretudo em exemplos como a 27ª Bienal de São Paulo, de 2006, em que o lema “Como viver junto” de Lisette Lagnado aproximou a produção artística contemporânea das obras de Marcel Broodthaers e Hélio Oiticica.
8BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993 [1974].
13Sobre a presença do tal dado “contextual” na arte sessentista, Paul Wood e Charles Harrison notaram uma espécie de transição entre três diferentes formas de “contexto”. Primeiro, teria havido uma preocupação com o “contexto” fenomenológico da obra, como é o caso da “própria sala da galeria, de modo que uma obra específica podia ser fisicamente moldada nas dimensões de um espaço interior específico”. Em seguida, tal preocupação “expandiu-se até tratar a galeria ou o museu como uma forma de instituição”, com o que se chegou ao “contexto” institucional da arte. O terceiro passo teria sido “estender a preocupação do trabalho artístico para outras instituições e convenções que constituíam o mundo social”, a partir do que o “contexto” estaria próximo das contradições do “capitalismo avançado”. HARRISON, Charles; WOOD, Paul. Modernidade e modernismo reconsiderados. In: WOOD, Paul (et alii). Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 1998 [1993], p. 217.
14MAMMÌ, Lorenzo. À margem. Ars, São Paulo, nº 03, 2004, p. 91.
15Sobre o assunto: O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço de arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1976].
16FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Cambridge: MIT Press, 1996.
19DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005 [1981].
20Sobre o assunto, sugiro: DICKIE, George. “What is art?: an institucional analysis”. In: Art and the aesthetic: an institucional analysis. London: Cornell University Press, 1974.
21WOLLHEIM, Richard. A arte e seus objetos. São Paulo: Martins Fontes, 1993 [1967], p. 143.
22DANTO, Arthur. A obra de arte e meras coisas reais. In: A transfiguração do lugar-comum. Op. cit., sobretudo entre as pp. 55-65.
23Para alguns aspectos contingentes dos ataques de Piero Cannata, cf. GAMBONI, Dario. The destruction of art: iconoclasm and vandalism since the French Revolution. London: Reaktion Books, 1997, p. 204; Vandal mars fresco in Italy, New York Times, 14 out. 1993; KING, Ross. The dirt on the David, New York Times, 15 jul. 2003; Identificado vândalo de monumentos em Veneza. Folha de São Paulo, 30 jun. 2004.
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Teria a maçã de Newton de Lévi-Strauss caído aqui?
Claude Lévi-Strauss contou que antes de aprender a ler ele já era estruturalista, porque quando saía às compras com sua mãe, reconhecia o que havia em comum no bou das placas da boulangerie (padaria) e da boucherie (açougue). A base do estruturalismo é faculdade humana de se reconhecer padrões ou estruturas com maior ou menor grau de semelhança, mesmo quando ocultas sob aparências dessemelhantes: no caso das referidas placas, o componente estrutural podendo ser reconhecível a olho nu até por um pré-escolar. Agora o brasão da Boulangerie Bienal, no Itaim Bibi em São Paulo, requer dessa faculdade um esforço em um grau mais ‘universitário’, para que uma relação com o evento cíclico das artes visuais no Parque do Ibirapuera possa ser estabelecida. Contido no nome do bairro onde se situa a panificadora, está o que aparenta ser um bônus que potencializa as possibilidades de desdobramentos, mas aqui o bi-bi será descartado e não terá o papel chave que o bou-bou teve na formação do menino Claude: bastará a tentativa de se estabelecer uma relação entre a Bienal (pães) e a Bienal (mega-evento dedicado às artes visuais ano-sim, ano-não).
Já se ouviu muito falar que o tatuzão desconstrutivista ‘parece’ ter ‘aparentemente’ esbarrado no fundamento do Edifício Estruturalista, fazendo com que esse perigosamente pendesse para o lado, obrigando os ocupantes do ‘é difícil’ pôr em prática o compulsório plano emergencial do corre-corre. Mas uma vez passado o susto, puderam as neuro-ciências cognitivas experimentais – aquelas de laboratório, com avental e instrumentos sofisticados – demonstrar que a resiliência da construção permite que essa ainda possa, nos dias de hoje, com segurança abrigar a faculdade – que tem 1001 utilidades e é acessível a quem possa interessar.
O fato de Lévi-Strauss ter passado uma fase tão fundamental de sua vida no Brasil – e tendo morado e lecionado site-specifically em São Paulo – talvez justifique a tentativa, ainda que diletante, do uso mais ou menos sistemático de uma metodologia menos recém-transplantada e mais enraizada. Faz parte do código da ‘contemporaneidade’ das artes visuais um estado geral de karaokê que valoriza o amadorismo, talvez por via da legitimação que termos como ‘apropriação’ ou sampling conferem à certas práticas artísticas. Como já dizia Cole Porter:
Good authors too who once knew better words,
Now only use four letter words
Writing prose,
Anything goes.
Um templo? Uma igreja? Não, um prediozinho residencial ao lado da Esfiharia Efendi numa travessa da São Caetano, a rua das noivas desnudadas pelos celibatários seguidores do culto que se criou em volta do milagreiro duchampiano-piano-se-va-lontano, padroeiro dos apropriadores do conceito da idéia do pronto-para-vestir, até.
Como resposta à pergunta sobre origem e razão do nome do estabelecimento, recebi a informação que os atuais donos compraram a padaria há cerca de quatro anos, mas que ela já existe há quase quarenta; além disso, existem outras nove padarias em diversos bairros de São Paulo com o mesmo nome, sem que façam parte de uma rede: motivo e razão da escolha do nome se revelam aqui insondáveis, perdidos na espessa neblina de um passado nada remoto. Minha embarcação estruturalista colide com o iceberg da indiferença dos meus informantes, naufraga em plena maiden voyage.
Em situações assim é difícil resistir ao apelo que uma outra faculdade humana oferece, a de se buscar sentido, de se querer atribuir significados para aquilo que per se somente descreve um fenômeno cósmico, em tempo e espaço: um ponto fixo na elipse que o planeta Terra percorre em volta do sol, isso tudo multiplicado por dois. Dá-se obrigatoriamente de encontro com o aborrecido paradoxo semântico, que instiga raciocínios toscos do tipo “considerando-se que qualquer padaria com um mínimo de auto-estima quer sempre deixar bem claro que ‘pão quente a toda hora’ é de rigueur, por que então?...” ou “na Boulangerie Bienal vê-se claramente um caso de desacoplamento de significante e significado de seu estado bruto, etimologicamente correto (...) é familiar entre nós brasileiros o que bi, tri, tetra ou penta querem dizer; numa vertente paralela, bi, tri, quadri e qüinque não provocam tanta emoção: seria isso sinal de que anda em baixa a nossa tão apregoada latinidad, visto que quando competem entre si as partes da herança greco-romana, pulsa a veia helenística mais animadamente?”.
Tendo adquirido um estabelecimento com tradição, reputação e clientela, os novos donos não viram necessário colocar em questão a viabilidade do nome, muito menos investigar a sua validade trinta e seis anos após a sua fundação. A “bienal” do brasão vira emblema que não quer contradizer o frescor do pão da hora, anunciando “pão quente a cada dois anos”: como tantos outros nomes de estabelecimentos, edifícios, marcas e modelos de bens de consumo (assim como títulos de obras de arte), ele evoca, ‘aponta para’ ou ‘remete a’, sem ter que representar factualmente qualquer relação entre duas coisas. A evocação pode evocar meramente uma imagem ou sensação sem nenhum significado, ou seja, ela pode evocar um significado vazio de significado. Para ilustrar: o escritório de despachante chamado “documenta” é menos só evocativo e exemplo de auto-referencialidade funcional.
Obra assinada pela dupla Amador & Severo, de inspiração visivelmente franklloydwrightiana, o Museu Aberto de São Paulo foi imediatamente interditado pela prefeitura após a sua inauguração, ocasião atendida por alguns milhares de visitantes que presenciaram as performances “Despindo-Armani-Prada: descendo a rampa até a calçada” e “Vestindo blusa preta, dormindo na sarjeta” da top Lisa de Garment. Apelidado pela população paulistana de ‘cubo branco’ e pela crítica especializada de ‘rectum’, a controvertida obra aguarda o parecer da comissão que investiga irregularidades estruturais na construção que radicaliza o conceito de transparência e permeabilidade nas instituições públicas. Setores da sociedade representantes do neo-liberalismo, críticos da política de reserva de mercado que incentiva a produção do ‘similar nacional’, fazem uso freqüente dessa obra como metáfora ‘quando querendo explicar exatamente aquilo o que eles estão querendo dizer’.
Um contexto que possibilite que se enxergue a Bienal e a Bienal em perspectiva - e a partir daí eventualmente de se estabelecer um link - pede um reconhecimento da topografia e um mapeamento em escala maior da situação geográfica encontrada: ambas a padaria e a instituição se situam dentro do perímetro urbano da cidade de São Paulo, que como tantas outras pelo mundo afora, toma diariamente um banho de imersão em seus caldos de fabrico próprio, vindos esses tanto ‘direto da fábrica’ quanto ‘direto da roça’ e compostos dos lugares-comuns, estereótipos e clicheés que povoam as suas mitologias.
Estando delineados os contornos do macro, parte-se em seguida em busca do micro, zoomando-se agora em direção ao Parque do Ibirapuera: aqui se encontra de forma exemplar o que se denomina de oposições dentro de um sistema constituído de partes simétricas que identificam a estrutura do mito, um must em qualquer investigação estruturalista: a representação da oposição feminino-masculino, ou seja, a Oca e a Bienal do Oco – mas, de novo, isso seria apelar para o impulso de se fazer trocadilho fácil e explorar uma ‘sacadinha’, algo incompatível com o fetiche que eu mantenho com a noção de rigor metodológico e nada condizente com o pastiche de artista conceptuelle com postura críptica, dentro do qual a minha persona pública insiste em me aprisionar.
“Abordada a questão de inflamabilidade, fez-se o uso subversivo da ação hidratante sobre a combustão, com a finalidade de enfatizar as profundas ramificações contidas na prática de extinguí-la”. Nossa cultura, artística e linguística, passa por um momento de auto-emulação, com o fim de serem reexaminados seus conteúdos já exauridos de rótulos. A estrutura que serve de invólocro aparentemante resiste a toda sorte de abalos e encontra-se assim na privilegiada posição de poder conservar intacta a sua fachada.
Nunca me interessei pelos convites (sejam esses publicados como anúncios no jornal, distribuidos na forma de folderzinhos ou ainda pintados em letras grandes diretamente no local onde o motivo do convite se encontra em exposição) que me sugerem, em tom afirmativo: “visite apto. decorado”. Se sinto curiosidade em ver como os outros moram, de espiar para dentro das casas, não tenho particular interesse pela encenação da moradia modelo; prefiro visitar o “apto. não decorado” e caso sentir necessidade, “dar asas à imaginação” ou também não imaginar a nada, seguir com os olhos o percurso rasteiro do rodapé, até que esse, abrupto, colida com o batente. Não sei bem a que ou a quem se refere o termo horrore vacuum, mas seja o que for, ao menos tipograficamente sinto-me apto a dizer que não me inspira pavor (ha!).
Foi com essa inclinação natural, ou seja, de simpatizante, que visitei a 28ª Bienal e, sem querer entrar em detalhes ou acionar de novo o interruptor liga/desliga dos jogos semânticos, achei o projeto um acerto em cheio, literalmente.
Há no entanto um detalhe que exige o olhar mais atento: o segundo andar, com sua escala monumental e concepção fundamentada no austero rigor do serialismo (que aqui categoricamente não faz concessões ao ornamento), nunca deixa de causar forte primeira impressão; já numa segunda visita, despontam o que me parecem ser inconsistências na realização do projeto: enquanto as duas fileiras centrais de colunas, que percorrem a extensão longitudinal do andar, não poderiam de forma melhor expressar a sua função de pilares de sustentação, as outras duas fileiras, alinhadas paralelas entre as centrais e as fachadas, demonstram, após mais atenta inspeção, terem sido ditadas pelo impulso maneirista; enquanto a duplicação enfatiza com veemência o rigor serial, ela simultaneamente renega, com igual veemência, esse mesmo procedimento: com a intenção de representar o enunciado less is more, acaba inadvertidamente balbuciando “pão pão, queijo queijo”; e visto que, quase integradas na fachada, encontram-se, discretas, colunas menores, deveriam ser essas justamente as que, se maiores, compartilhariam a sustentação da estrutura, podendo dessa forma manterem-se fiéis ao princípio que guiou o projeto, por via do ato de abster-se da necessidade de causar estardalhaço. O genuíno exercício da abstinência engendraria o equivalente do efeito que, sabidamente, a prática do jejum voluntário consigo traz.
Pois desabaria a estrutura sob seu próprio peso com outra distribuição dos alicerces, deixando em seu rastro, uma vez baixada a poeira, a montanha de escombros que pomposamente jazeria sobre a sua própria fundação? O similar nacional do ground zero? O chão agraciado com o alvará de permissão do uso do termo de appellation contrôlée, já que haveria de ser o segundo mais antigo do mundo?
Então não seria hora também de se reinterpretar o significado do MASP, de se tentar dar novas leituras a essa que é expressão máxima do vão livre? São questões que valem ser debatidas: mas quem garante que o resultado de tanto debate não seja uma 29ª que atulhe de novo o pavilhão até a borda com quadros, estátuas, televisores e instalações em geral?
Localizadas em meio a um oásis de tranqüilidade, envoltas por bosques, lagos, alamedas arborizadas e ciclovias, as icônicas edificações podem ser rapidamente acessadas desde o Aeroporto de Congonhas pela via expressa que tangencia o complexo. Os bairros vizinhos de Villa Nova Conceição, Moema e Villa Mariana oferecem inúmeras opções nas compras, na gastronomia aventureira e cultura ‘white-trash’. Contando com vagas para mil e tal automóveis, o complexo atrai semanalmente milhares de visitantes que aqui encontram o ar puro, lazer e ambiente relaxante que a vasta expansão verdejante propicia. Enquanto isso, o isolamento acústico de última geração do esguio pavilhão (à esq. na foto) permite que os debates e controvérsias que ocorrem no seu interior possam se desenrolar acirradamente e atingir os altos níveis de decibel condignos do teor passional daquilo de que se trata, do que é objeto ou matéria de consideração, atenção e interesse.
O papai noel da contemporaneidade trocou o trenó eurocentrista pelo conceito de caminhãozinho globalizado com o fim de ressaltar os deslocamentos causados pela prática da delivery em sites pré-especificados, onde o encontro-confronto com o público promove a interação e participação.
O que salta aos olhos, tanto na vernissage da Bienal quanto na da anual SParte, realizada no mesmo pavilhão, é o efeito do massivo boicote convocado por certos membros da nossa sociedade em relação a esses eventos: os descendentes dos africanos que, escravizados no continente, foram atraídos para essas margens pelo aceno sedutor da tão almejada Carta de Alforria, o ilusório green card do Brasil colonial, o elusivo green card do Brasil Imperial; a morosidade do aparato burocrático dos respectivos poderes vigentes acabou por transformar a promessa em armadilha fatal, e é compreensível que permaneça algum resquício de ressentimento por parte dos descendentes; mas perde-se novamente a chance de um diálogo com a sociedade como um todo, e disso resulta um quadro geral de vernissage desprovido de qualquer contraste, já que é ocupado na totalidade da sua metragem quadrada pela cor branca, fenômeno que não se poderá corrigir com uma simples ‘photoshopada’, clicando-se consternadamente no sub-menu ‘ajustes’ do menu “imagem”: as três funções semelhantes, com diferentes graus de complexidade que estão à disposição do usuário no sub-menu - “brilho/contraste” (opção adequada aos iniciantes), “níveis” (para iniciados) ou “curvas” (a favorecida pelos usuários advanced) – não poderão remediar a ausência do preto (e nem tampouco de quaisquer tons pardos) que fariam do quadro geral mais “representação nacional” e menos um mero reflexo de seu auto-retrato falado.
Não obstante causar impressão de estar um tanto gasta, a manifestação de autonomia ortográfica característica da era pós-colonial encontra seu paralelo no fim das arcaicas representações nacionais, que impuseram o seu ‘diktakt’ nas primeiras 26 edições da mostra. Segundo declaração de Severino O’Connor, porteiro do Oropa, exerceu o cálculo papel mais relevante do que considerações ortográficas quando do planejamento da edificação, que se mantém erguida graças à sólida fundação do projeto que não previu a necessidade de garagem, sinalizando falta de visão por parte dos empreiteiros (cegueira pela qual os atuais moradores pagam um preço alto).
Em recente entrevista comemorativa do centenário de seu nascimento à revista “Applause” (a edição brasileira da “Wishful Thinking”, conhecida como o órgão de imprensa high-brow par excellence do mundo anglo-saxão - a versão nacional sendo mais hi-gloss, e por razões desconhecidas chegando às bancas desprovida do famoso centerfold) Claude Lèvi-Strauss (que é membro do tradicional clã que continua detendo majoritariamente as ações do império que controla a griffe de denim que simbolizou a revolução dos costumes a partir da década de 60 do século XX) demonstrando ter conservado intacta a pose do franco-atirador condecorado, afirmou que ainda sente saudades do Brasil e se mantém antenado em relação a tudo quanto é assunto referente a essa grand nation (sic). Num desvio (a calmaria fazendo com que o bate-papo fosse - por se encontrar à deriva - parar no assunto ‘28ª’), Lèvi-Strauss declarou, com sua notória acidez, que “abriu-se mão da datada bienal encenação da grandiosa ópera buffa “La Biennalle” - o ‘dramalhão épico’ do inesquecível Cicillo Matarazzo - invariavelmente realizada com o esplendor dos cenários e figurinos das mais aclamadas griffes, para que no fin de siècle (com pequeno atraso), cedesse-se a vez ao neo-existencialismo, na forma da tragédie lyrique “Tudo o que você queria saber sobre a Bienal mas nunca teve coragem de perguntar”, o work-in-progress emaranhado em espinhoso processo de soul-searching. Mas um erro tipográfico marginal na tradução do libreto levou ao palco, ao invés disso, a clássica dobradinha de matinée dominical, as operetas “Cavaleria rusticana” e “Pagliacci” (essa com enfoque mais direcionado ao público infanto-juvenil), ambas vocalizadas com o alto teor do ardor que efetivamente causa o espalhafato que mantém a audiência longe da tentação do cochilo restaurador. E quem esperava, como eu, uma leitura contemporânea dos ‘topo de linha’ “Tristan und Isolde” ou “La Bohème”, um “Il Guarany” ou “Porgy and Bess”, ou ainda uma versão enxuta do melodrama gay “Moses und Aaron”, deve ter ficado (como eu), um tanto atônito. E o sentimento de validação, que a garantia do retorno do dinheiro do ingresso conferiria ao público pagão, não poderá jamé ser realizado, visto que hoje em dia a entrada é pela Franca”.
Continuando, o mestre ancião, agora visivelmente empolgado, com viço nos olhos e fala pontuada pelos rrrrrrrrrrr de seu staccatto metralhante, disparou que “a cabeçada que o Zidane deu no Matarazzi foi o ato mais heróico que testemunhei nos últimos cem anos: ele abriu mão de tudo, da copa, da glória, só para defender a honra da irmã. É um prato cheio para qualquer libretista.
Em recente entrevista comemorativa do centenário de seu nascimento a um canal de televisão espanhol, respondendo à pergunta “como decifrar signos, sin ser sábio competente?”, Lévi-Strauss disse que “creo que sea lo mismo que volver a los 17, después de vivir um siglo”. O que soa aos nossos ouvidos como declaração imbuída de sabedoria poética se revela, após rigorosa análise acústica, como forma elegante que o mestre encontrou para evadir a pergunta.
Enquanto isso, da padaria recebo um telefonema me avisando que eles não pretendem abaixar o preço do pão durante a 28ª, porque “pão não é artigo de promoção”. Andei pensando em encomendar da Bienal um bolo todo coberto de velinhas ‘Guarany’ para a festinha de aniversário de 100 anos de Claude Lévi-Strauss, que ainda sente saudades do chorinho, da batucada, do futebol, da boa pinga e da cerveja estupidamente gelada que ele consumia em grandes quantidades nas animadas baladinhas da FUVEST que ele ajudou a fundar nos anos 30; não fiz a encomenda ainda, porque acho que por enquanto ainda vou andar pensando, a pé, de condução, de táxi.
Na minha última andança, refletindo sobre a prática contemporânea de se atribuir a motéis e estabelecimentos gastronômicos um punhado de estrelas, pensei na idéia de aplicar eu mesmo esse sistema de categorização às exposições temporárias, e tendo em mente a 28ª, comecei a contar um por um os dedos das minhas mãos; perplexo diante das cifras astronômicas que a contabilidade pré-aritmética fez com que girassem ao redor de minha cabeça, corri afoito ao karaokê para cantar “Anything goes”; num lapso inexplicável, em completo descompasso com o chorinho que saia dos auto-falantes, bradei retumbantemã:
“eu te darei o céu meu bem...”
“Ponto: sem linha nem plano”, intervenção do artista franco-capixaba Viktor
Khasbulatov. Realizada em São Paulo, a ação resgata a tradição
bandeirante de se espetar no chão um pau descascado para demarcar
trilhas de leito carroçável no interior do Brasil. Distribuídos aleatoriamente
pela cidade e encontrados facilmente através de consulta no mapa cedido
gratuitamente pela instituição que financiou o projeto, pode-se também
ligar os pontos impressos no plano com lápis ou caneta: os que o fizerem
encontrarão as 26 letras do alfabeto, que serviram de inspiração para o
projeto de distribuição dos ‘pontos: sem linha nem plano’ pela metrópole
paulista.
Modern Times, Modern Art: onde ontem se lia “Boulangerie Bienal”, lê-se
hoje “La Écriture du Pain Contemporain”. Convidado a opinar sobre esse
tópico - nos dias de hoje tão em pauta - o autor dos guias “Tristes Trópicos”
e “O cru e o cozido” (sempre entre os ‘top ten’ nos rankings do turista ‘ecopremium’
e do gourmet natureba), respondeu, visiblement irritado: “Tão
querendo jogar farinha pra cima de moi?” E continuando, em tom
professoral: “deixa eu te explicar uma coisa, e presta bem atenção: a
estrutura do edifício da civilização judeo-cristã repousa unicamente sobre o
fundamento de pedra mó na qual uma gangue de manos profetas pixou o
seguinte dito: ’no pain, no gain’. Para evitar que o mal-entendido se repita,
lê-se hoje em dia na placa do lado de fora do edifício: ‘aviso aos srs.
pixadores...bláblá...entidade...fundação...doação...pintura...dinheiro...etc’”.
Já sem saco para ‘bolar’ nova legenda, apropriei-me de frase pronta do texto acima: a imagem fica menos só evocativa e serve como exemplo de auto-referencialidade funcional: a era do fac-símile cede a vez à era do spam.