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outubro 19, 2007
Obras decorando obras?, por Guy Amado
Obras decorando obras?
GUY AMADO
Há menos de dois meses [agosto/setembro de 2007], houve um evento artístico de curta duração, em São Paulo, denominado Homens trabalhando. Tratava-se de um projeto coordenado pela nova galeria FlorenceAntonio, cujo perfil de atuação passa por não ter uma sede ou espaço "físico". Assim, a proposta é trabalhar seus artistas em exposições de formatos menos usuais, investindo em iniciativas "virtuais" e projetos em espaços "não-institucionais". É - ou era - o caso da proposta em questão, que transcorreu no que era [ou é] um edifício ainda em construção - este, por sua vez, um projeto do grupo de arquitetos Triptyque, que teria como diferencial a valorização e aproveitamento das características locais buscando ainda incorporar as "circunstâncias climáticas" e a natureza a suas produções.
A premissa era interessante: apesar da semelhança com inúmeras empreitadas em outros "espaços alternativos", "não-lugares" e similares, o próprio fato de ser num prédio ainda em obras já indicava um diferencial potencialmente estimulante no que tange ao aproveitamento do contexto. A iniciativa se pauta num "diálogo entre o refinamento das obras de arte [sic] com a estética crua de um prédio ainda inacabado", segundo o site da mostra, que ainda aposta que o projeto "certamente vai suscitar novas análises, analogias, reflexões e revelações sobre arte e arquitetura". Muito bem. A questão da "memória do lugar" - afetiva, simbólica, física -, o tal genius loci, tão explorada em outras "ocupações artísticas" [da qual os ArteCidade são o exemplo mais emblemático], não estava em jogo; nem poderia, uma vez que tratava-se mais do "vir-a-ser", das promessas de bem-estar que povoam o imaginário da classe-média tão características de projetos arquitetônicos desta natureza.
Ana Luisa Dias Batista
Ora, se o canteiro de obras é "um local instigante, que proporciona novas emoções e impressões sobre a arquitetura", como tb se lê no mesmo texto de apresentação, a impressão é a de que isso deve acontecer em outros contextos similares, mas não ali. Digo, o dado "instigante" não se realizou, até onde pude ver, no que se refere ao aproveitamento e exploração da situação pelas propostas artísticas apresentadas, ou de sua relação com aquele entorno. À exceção de alguns casos, que claramente levaram em conta o contexto - notadamente a "intervenção instalativa" de Ana Luisa Dias Batista, que conjuminava um tensionamento de aspectos locais com rigor na realização; também as propostas de Celina Yamauchi, Reginaldo Pereira e Andres Sandoval tinham interesse, pelo viés contextual e plástico -, a maioria dos trabalhos parecia relativamente alheia ao ambiente, em alguns casos tornando-se mesmo "obras decorando obras" - o que se verifica mais acintosamente nas peças de Luciana Martins e nas imagens fotográficas de Miro, francamente descontextualizadas, bem como nas pinturas de Ana Elisa Egreja e nos capacetes "personalizados" pelos artistas [transformados assim em "obras de arte" posteriormente à venda, pelo que soube para fins beneficentes].
Luciana Martins
Ressalto que a questão principal não está, a meu ver, em classificar os trabalhos como "bons" ou 'ruins" em si, a priori - embora houvessem obras francamente fracas, como as peças da já citada Luciana e as de Miro, bem como outras de similar vocação tão-somente ornamental -, mas de como [não] estavam pensados e realizados dentro do que me parece um dado intrínseco à proposta original: pensar as articulações, conexões ou mesmo comentários instigantes que aquele contexto propiciava, ou mesmo impunha.
A experiência de frustração se intensificou na única das 3 mesas-redondas promovidas pela galeria [para discutir questões em torno do projeto - arquitetura, arte, mercado, etc.] a que assisti. Compunham a mesma os publicitários Gabriel Zellmeister e Ana Carmen Longobardi [tb colecionadores de arte], o arquiteto Marcio Kogan e o artista Albano Afonso, com mediação de Juliana Monachesi.
Ana Egreja
Digo "frustrante" porque, mesmo sem esperar debates encarniçados a partir de um evento que articulou um pouco como uma empreitada mais "simpática" que qualquer coisa, ainda assim surpreendeu a dinâmica anódina das falas. Provocou constrangimento [a mim, pelo menos] a presença de Kogan na mesa, visivelmente deslocado e quase gabando-se de não ter nada a dizer - o que a platéia pareceu achar divertido. Mas o que realmente chamou minha atenção - ressaltando que foi a única mesa a que assisti - foi o total silêncio sobre os trabalhos expostos. Falou-se, em termos vagos, sobre o espírito da coisa, das relações de aproximação da arte e da arquitetura, do estatuto atual das instituições de arte, mas nada de se comentar ou problematizar as obras expostas [digo, além da "obra" em si] e sua relação com aquele entorno. No único momento em que pareceu surgir essa possibilidade, após um aparte de Albano que permitia que se levantasse esse ponto, a galerista, Florence, rapidamente decretou o fim do evento.
A impressão final é a de que se desperdiçou uma boa oportunidade de se discutir, mesmo informalmente, uma série de questões que aquele formato expositivo propiciava - apesar ou a partir dos problemas que as obras despertavam, da natureza daquele lugar, etc. É pena, dada a singularidade do formato da iniciativa...
outubro 11, 2007
Congresso AICA/ABCA: Relato de uma experiência... "curiosa", por Blissett
Congresso AICA/ABCA: Relato de uma experiência... "curiosa"
BLISSETT
Durante a primeira semana de outubro se realizou, na USP, o 41° Congresso Internacional de Crítica de Arte. Organizado pela AICA [Associação Internacional de Crítica de Arte] via ABCA [Associação Brasileira de Crítica de Arte, que já viveu tempos mais gloriosos], uma subsidiária sua, o evento teve uma programação agitada, com 4 dias repletos de mesas de debates e painéis de comunicações com temas diversos mas convergindo em termos como "globalização", "mercado" e "crítica". O mote oficial propunha "discutir o papel da crítica de arte no processo de institucionalização da arte contemporânea", e o formato de participação era dividido entre convidados pela organização [brasileiros e estrangeiros] e textos "selecionados" [idem].
Havia uma taxa de inscrição a ser paga - e não era baixa, cerca de R$ 200 - mas a organização também disponibilizou uma cota generosa para participantes isentos da taxa, beneficiado pela qual me dispus a conferir a coisa. Não sem alguma hesitação, é bom dizer: afinal, a atual reputação da ABCA não preza exatamente pela sintonia com tendências estético-filosófico-teóricas da contemporaneidade. Parece ter se tornado uma entidade estagnada no tempo, vivendo de uma glória incerta de dias em que a arte era "menos complicada". Isso se reflete - e se constata facilmente - no time de associados: é quase impossível reconhecer algum nome de real visibilidade e/ou atuação de destaque no meio artístico na atual relação de membros [Felipe Chaimovich é uma semi-solitária exceção]. A impressão geral é a de que é uma entidade que outrora já teve real relevância [talvez até a época de Mário Pedrosa] mas que em algum momento parou no tempo, tornando-se anacrônica e ensimesmada, gravitando numa espécie de universo à parte [em relação ao grande circuito de arte contemporânea].
Mas enfim, dos dois dias que me dispus a testemunhar, digo, tive oportunidade de acompanhar o evento [3° e 4°] não pude ter impressão mais deprimente. Apesar de haver um ou outro nome interessante, como o francês Jacques Leenhardt, o grande Nestor Canclini [a melhor fala de todas que vi, o que não surpreende - e que é sintomático de como correram as coisas: afinal tratava-se de um filósofo/antropólogo, e não exatamente de um nome atuante na crítica de artes visuais] e o já citado Chaimovich [cuja fala não pude assistir] o nível geral das falas, apresentações e intervenções era espantosamente fraco. O clima vigente é o de uma "ação entre amigos", mas num sentido que tende a ser o de compactuar e retroalimentar a dinâmica mediocremente confortável de suas sessões. Pouco ou nada se falou efetivamente da crítica de arte - pelo menos nos dois dias avaliados -, seu estatuto hoje e seu [não] espaço de atuação, questões que não podem ser ignoradas num evento realizado por uma entidade [supostamente] representativa em escala mundial essa classe. Uma exceção curiosa se deu na fala de Afonso Luz, convidado para o congresso na qualidade de representante do Ministério da Cultura. Afonso escrevia sobre arte antes de se tornar assessor especial do MINC, fato que mencionou de saída para em seguida reafirmar que ali estava não como crítico, mas como um representante do governo, especificamente para falar de economia e mercado de arte [do ponto de vista do Estado]. À parte a temática pouco atraente, sobretudo num evento com este perfil, sua apresentação foi das melhores, cativando a todos com sua tradicional retórica envolvente. Mas o que chamou a atenção foi constatar que, já ao término da sessão, em pleno "debate" público, Afonso permitiu-se já não falar apenas como um burocrata, comentando a dinâmica do mainstream artístico e analisando a função, lugar e os papéis possíveis para a crítica de arte hoje. Fato que não deixa de ser tristemente emblemático da dinâmica em que transcorreu o evento: um enviado político, essencialmente em "missão burocrática", termina por ser a melhor fala do dia num "congresso de crítica de arte" - e com isso não estou desmerecendo a intervenção de Luz, muito pelo contrário.
Poucas vezes me senti tão constrangido de estar na platéia de um evento quanto nas sessões de perguntas/debates deste congresso. Ao término de várias falas que não acrescentavam absolutamente nada ou se atinham ao senso comum, sendo por vezes mesmo desconexas, pessoas na platéia, sempre com extensas titularidades que faziam questão de reiterar*, pediam o microfone invariavelmente para agradecer, elogiar e cumprimentar os correligionários. Não vi nenhuma intervenção que problematizasse ou desenvolvesse algum aspecto na exposição dos palestrantes - e não faltaram oportunidades, posso garantir. Me surpreendeu também a menção, mais de uma vez [por vários palestrantes brasileiros, não sei se todos filiados à ABCA] às funções de crítico e de curador como se referindo a um mesmo tipo de atuação[!]. Isto não pode ser encarado apenas como um deslize, no contexto de um evento deste perfil e deste porte.
Por outro lado, avaliando a situação com mais distanciamento, talvez o problema - ou o que eu tenha visto como um problema - esteja no modo de encarar as coisas. Talvez a perspectiva por mim adotada, acreditando em alguma medida se tratar de uma oportunidade concreta para ver e ouvir pessoas interessadas em discutir tópicos candentes da contemporaneidade tenha potencializado este, digamos, conflito de expectativas. Talvez seja o caso de reconhecer se tratar de fato de um microcosmo com seus códigos estéticos, comportamentais e teóricos próprios e relativamente alheios ao que acontece grande circuito da arte contemporânea. Isso resolveria, ou ao menos amorteceria a sensação de deslocamento que tomou quem lá esteve em busca de interlocução estimulante ou aprofundamento nos debates em torno da crítica de arte na atualidade.
Seja como for, não deixa de ser frustrante perceber o descompasso existente entre o modelo de pensamento [retrógrado? conservador? medíocre?] praticado - ou defendido - por uma entidade que, à falta de outras, termina por ainda ser a mais representativa da "classe" da crítica de arte no país e as questões que efetivamente assolam o grande circuito da arte contemporânea.
Outubro de 2007
outubro 3, 2007
Arte à capela, por Juliana Monachesi
Arte à capela
JULIANA MONACHESI
Tem lugares escondidos da cidade onde acontecem importantes experiências de arte das quais a gente por pouco não fica sabendo. Fui hoje visitar o 38º Chapel Art Show, na Chácara Flora, uma exposição com 80 artistas e uma artista homenageada da maior envergadura possível em se tratando de homenagem por serviços prestados à constante reinvenção da arte contemporânea: Regina Silveira. A mostra tem curadoria de Katia Canton e acontece por iniciativa da Chapel School, que há 38 anos realiza uma semana de artes na escola para que os alunos tomem contato com a produção contemporânea brasileira e que assume como missão educar o olhar dos alunos, das famílias, e da comunidade americana e latina que freqüenta a escola. Todas as obras ficam à venda durante a semana em que acontece o Chapel Art Show e a comissão de 25% sobre a venda dos trabalhos é revertida para obras assistenciais que a escola mantém com orfanatos e lares de idosos.
Nada mau, hein? Quando eu fiz colegial, o máximo que chegou a ser apresentado em sala de aula -e ainda como um adendo das aulas de literatura brasileira- foram os artistas da Semana de 22; a depender do ensino formal, minha visão de arte brasileria se resumiria a Portinari, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e olhe lá. A situação não parece ter melhorado muito em 15 anos porque uma artista recentemente me contou que foi obrigada a tirar os filhos da escola -não vou sitar nomes, mas trata-se de uma das maiores referências de ensino aqui em São Paulo- quando soube que, nas aulas de arte, os professores estavam ensinando arte contemporânea brasileira apresentando como exemplos fundamentais nomes como Gustavo Rosa e Aldemir Martins... Nada contra Aldemir Martins -jamais houve artista que soubesse retratar humores felinos tão bem quanto ele (quem tem gato há de concordar comigo)-, mas utilizar esses artistas como referências máximas da arte contemporânea é no mínimo constrangedor. Daí a minha empolgação em ver uma sala inteira dedicada à obra de Regina Silveira no 38º Chapel Art Show e tantos outros exemplos de produção inquieta e densa exibidos na exposição.
O trabalho reproduzido no início deste texto, por exemplo, é uma fotografia da artista Marcela Tiboni, que tem discutido em sua produção a herança da história da pintura sem nunca utilizar o suporte pictórico; são trabalhos em vídeo ou fotografia, alguns deles com forte elemento performático. Nas obras apresentadas na Chapel Art, Para Mondrian (acima) e duas imagens da série Pintura de paisagem (logo aí abaixo), a artista segue em sua pesquisa e demonstra um crescente e coerente amadurecimento. Mondrian se torna, nas mãos de Marcela Tiboni, pura organicidade, o exato oposto do purismo presente nas telas de estilo neoplástico do artista holandês. Ao se voltar ao gênero da paisagem, a artista subverte a "pintura de paisagem" substituindo a representação pela ação direta de colorir os próprios elementos paisagísticos (Marcela, querida, uma pergunta ecológica: você lavou as plantinhas para elas poderem voltar a respirar depois de fazer as fotos, né?).
Muitos dos trabalhos exibidos na mostra ou são inéditos ou são daqueles pertencentes a uma família de obras -ou a uma faceta do artista- menos conhecida, a começar pela própria sala de Regina Silveira, a primeira com que se depara o visitante. Acostumados que estamos, em anos recentes, a ver as intervenções públicas ou projetos de grande escala da artista, trata-se de uma bela oportunidade para conferir seus trabalhos mais intimistas -se é que se pode chamá-los assim-, projetos em menor escala e de tom rebaixado, no sentido musical mesmo da expressão. Esse conjunto de obras agrupadas no Chapel Art Show nos dão a sensação de que mergulhamos em uma apresentação "à capela" de Regina Silveira. As canções, quando cantadas à capela, são como a alma da música; e o artista, ao fazer essa espécie de "solo vocal", não apenas apresenta uma faceta mais intimista de seu processo de criação, como oferece também uma amostra da força e da eventual fragilidade que servem de base ou mesmo constituem a essência daquilo que, na apresentação acompanhada por instrumentos, sintetizadores e recursos técnicos de todo tipo, fica camuflado, compartilhado com os sons de guitarra, baixo, bateria e contaminado pela estrutura geral do espetáculo.
Mesa com cadeiras 2 (1990), carpete sobre eucatex; Escova - série "Dilatáveis" (1999), serigrafia sobre recorte de madeira pintada; Vestígio (2003), serigrafia sobre alumínio; Desenho preparatório para "Escada curva" (1999); Escada curva (1999), acrílica sobre poliestireno
A partir do alto, à esquerda, em sentido horário: Brasil (2005), impressão digital sobre vinil adesivo sobre EVA; Nightmare (2000), madeira, acrílico, vinil adesivo e ovo de avestruz; Fio (2005), gravura do álbum "Série Eclipse"; Mesa com cadeiras 1 (1990), carpete sobre eucatex; Botão - série "Armarinhos" (2003), porcelana com sobrevidrado
Adorei, na exposição, ver novos trabalhos da Adriana Guivo, por exemplo, sobretudo por serem colagens/reciclagens culturais, essa área de pesquisa que me é especialmente cara há alguns anos. Parece um caminho "natural", ou uma investigação "coerente", este de partir dos retalhos de tecido com os quais a artista construía suas pinturas, passar por uma espécie de "impasse" com o trabalho apresentado na Anual da FAAP do ano passado (se não me falha a memória) -uma grelha atravessada no espaço com flores artificiais encaixadas e um recipiente com mais flores de papel para que as pessoas interferissem na composição-, e chegar a uma solução mais "econômica", em suporte fotográfico, que de certa maneira sintetiza os dois momentos anteriores: a padronagem floral está presente, assim como a artificialidade das flores -um tanto quanto "estrangeiras" ao ambiente-, em estado de suspensão sob um "plano de fundo" que remete à estrutura da grelha.
Colagens, desenhos e gravuras foram as obras que mais me encantaram nessa exposição (talvez porque no trabalho sobre papel se condense algo dessa "essência" que estou denominando aqui "arte à capela"): Georgia Patricia Vilela e Thais Albuquerque com o acúmulo caótico de elementos gráficos, desenho e colagem, tudo muito colorido e muito rock'n'roll; gravuras em grande escala de Azeite de Leos e Fabrício Lopez; um trabalho de gravação sobre mármore de Alzira Fragoso, uma artista que vim a conhecer no Chapel Art Show (ela assim como outros tantos, mérito da prática investigativa que marca o trabalho curatorial de Katia Canton); desenhos super delicados da Ana Teixeira e do Fabio Tremonte; uma série poderosíssima da Renata Pedrosa -conjunto de doze desenhos acompanhado de uma animação à William Kentridge-; e até -para surpresa geral, imagino- obras feitas com folhas de ouro e prata e nanquim por Gal Oppido. Ele mesmo, o fotógrafo, de quem vimos recentemente imagens da série Alegorias bíblicas na galeria Oeste.
Foi nesse ponto que eu me convenci de que a tal "arte à capela" -chamemo-la assim- da Regina Silveira poderia ser uma "conceito" aplicável, por diferentes vieses, a vários outros trabalhos apresentados na coletiva. Será que o fato de estarem expondo em um espaço "protegido" onde a crítica não chega (a escola fica na Chácara Flora, bem longe do circuito de arte paulistano, e não "passa", afinal de contas, de uma escola...), um espaço mais informal, teria determinado, ou ao menos possibilitado, que os artistas também se soltassem e se dessem uma certa liberdade de exibir essa faceta mais escondida de sua obra e de si? Digam lá o que for, o fato é que expor em uma galeria conceituada ou em um museu de grande visibilidade costuma predispor o artista a (tentar) não cometer "erros", seja isso consciente ou não. Onde é que eles se arriscam mais? Onde, afinal, fazem suas experiências, seus balões de ensaio? Onde é que eles expõem "a alma", a faceta intimista de seu processo de criação, aquela pequena amostra de força e de fragilidade que constituem a "gênese" do que teima em ficar camuflado sob a estrutura geral do espetáculo?
(...) Ainda sobre os desenhos, tive boas surpresas ao tomar contato pela primeira vez com trabalhos de artistas como Antonio Melloneto -que exibe uma série de obras (imagem do alto) que mais parecem fotogramas obtidos com pin-hole, mas na verdade são desenhos feitos com lápis aquarelável sobre papel- e Gabriela Piernikaz, cujo trabalho (imagem acima), bastante delicado e quase "invisível", são perfurações feitas diretamente no papel que resultam em composições semelhantes a imagens de satélite mostrando solos acidentados ou de constelações caóticas. As obras da Josely Carvalho foram também uma grata surpresa: duas imagens -gravuras, provavelmente- representando corpos fragilizados, em estado de suspensão ou então em plena queda livre em um abismo existencialista; os corpos surgem sempre nas beiradas do papel, fragmentados, e desenhados (ou gravados) em tons de preto e cinza; por cima deles, frases em vermelho com pouquíssima legibilidade; e esses papéis que a artista utiliza são (ou estão -infelizmente as etiquetas de identificação destes trabalhos não trazem as respectivas datas em que foram realizados-, ou foram deliberadamente) envelhecidos, de modo a sugerir que estamos diante de registros antigos, arcaicos, de alguma época de guerra e dor...
Boa parte dos objetos e esculturas expostos no Chapel Art Show comungavam desse "quê" arcaico ou arcaizante -penso que isso pode ter a ver com um estado de coisas na produção contemporânea, algo como se, em um mundo simbólico ao extremo e habitado mais por imagens do que por objetos (ou, para soar menos catastrofista, um mundo envolto numa profusão imagética da qual é difícil escapar), artistas trabalhando com objetos e/ou matéria resistente, sejam estes novos ou apropriados, esculpidos a partir de uma massa bruta ou simplesmente encontrados, fossem mais do que artistas, ou antes que artistas, arqueólogos de uma cultura material em franco e acelerado processo de extinção. Esses arqueólogos, como não poderia deixar de ser, são muito poucos -tomando aqui a exposição como parâmetro, mas nada que não possa ser rebatido e comprovável na arte contemporânea em geral. Além da própria Regina Silveira, de certo modo, são eles (na exposição): Aline van Langendonck, Arnaldo Battaglini, Cristina Mutarelli, Dan Fialdini, Florian Raiss, Iza Figueiredo, Olga Nardi e Sandra Romano (há também três "pintores objetuais" que talvez pudessem ser incluídos nesse rol: Marcus Vinícius, Mendes Faria e Nina Moraes).
(continua...)