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maio 30, 2007
Colagem ativa em tempos líquidos, por Juliana Monachesi
Colagem ativa em tempos líquidos*
JULIANA MONACHESI
Nina Moraes tem uma trajetória marcada pela escolha de um caminho "entre" a fluidez e a imobilidade, o líquido e o sólido, entre os valores da transitoriedade e da permanência, sem contudo ter optado por um único destes partidos. À luz das teorias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a transição de uma modernidade sólida para a "modernidade líquida" na sociedade contemporânea, cabe a pergunta se a artista não se inscreve, por meio de sua obra, também num estado transitório entre estas duas polaridades? Seu trabalho não milita nos princípios modernos da ordenação formal ou da atividade subliminatória da visão, nem tampouco festeja os princípios pós-modernos da diluição autoral ou da vanglória do efêmero (que é em geral falsa, como atestam a compulsão e a quase-histeria do registro nos nossos tempos).
A obra de Nina Moraes se situa justamente "entre" o rigor formal (o diálogo com a tradição pictórica está presente em toda sua produção objetual) e a efemeridade (muitos dos objetos construídos ao longo dos anos 1990 possuem um substrato de mutabilidade, mas as peças mantêm, ainda assim, uma estrutura estável), "entre" uma aposta na potência visual dos trabalhos e na incompletude destes, que dependem muitas vezes do dado prosaico da experiência individual (um material espelhado que integra o espectador na obra, uma imobilidade aparente que convoca o espectador a, fisicamente ou mentalmente, revirar os elementos da obra para enxergá-la em outras configurações possíveis).
Figuras históricas do Nouveau Réalisme, como François Dufrêne, Jacques Villeglé e Mimmo Rotella, foram influência direta para Nina Moraes em seus anos de formação, principalmente durante sua estadia em Paris no início dos anos 1980. O trabalho de Villeglé é tomado como um dos maiores exemplos da arte da era líquido-moderna por Bauman. Não há como não associar os "affiches lacérées" [cartazes lacerados] de Jacques Villeglé aos "morceaux choisis" [pedaços escolhidos] de Nina Moraes. Dando título em francês à intervenção urbana que realizou em 1982 nas ruas de São Paulo, a artista presta tributo à gênese criativa de seus processos artísticos. Logo em seguida, ela apresentaria o projeto ActionC0llage no Sesc Pompéia, 14 noites de performances colando e rasgando cartazes ao som de John Cage.
A presente mostra não deixa de ser um reencontro com essa primeira etapa da produção: uma exposição toda dedicada à colagem. As obras recentes de Nina Moraes lidam com o acúmulo, a transparência e a transitoriedade -assim como objetos pelos quais a artista ficou mais conhecida, como a série de prateleiras, de colunas ou formas encapsuladas-, mas nos últimos anos Nina Moraes retornou à superfície bidimensional, valendo-se de pedaços de papel, adesivos, fragmentos de imagens, padronagens pré-fabricadas colecionadas ao longo de uma vida, que ela reorganiza em uma ação intuitiva sobre uma base plana. Estes vestígios re-trabalhados pela artista falam de uma sociedade de consumo que elimina com velocidade o produto da estação passada e de uma sociedade de informação que sobrepõe e anula os dados do milésimo de segundo anterior com acachapantes novidades que já surgem velhas. Deste jogo voraz da memória tratam as obras da exposição de Nina Moraes ao imporem outro ritmo de retirar e colocar informações no mundo, e, sobretudo, ao alçarem à categoria da permanência da arte fragmentos fadados a desaparecer.
A artista põe na ordem do dia uma ecologia cultural que trata de resguardar e re-significar pequenos atos, pequenas memórias, pequenos guardados. O cunho político de uma tal ação não pode deixar de transparecer, ainda que não constitua o cerne do discurso plástico aqui em questão. No contexto de mudanças contínuas que caracteriza a modernidade líquida, aqueles que não podem acompanhar o fluxo da reciclagem profissional e do avanço tecnológico acelerados e que não se enquadram nos novos moldes de cidadania -em que os direitos civis parecem ter sido distorcidos em potencial de consumir- vivem à margem da sociedade líquida; o indivíduo contemporâneo ganha de Bauman o epíteto de "sitiado". Uma arte do fluxo que o tematiza criticamente adquire, assim, um cunho político, porque questiona este estado de sítio.
As colagens recentes de Nina Moraes são um vagar crítico entre um episódio e outro, uma re-visitação de várias séries de trabalhos, reciclando os fragmentos que sobreviveram, dando sentido ao passado e ao futuro. Ao retomar o "primo impulso" das obras de 25 anos atrás, a artista demonstra que o impulso primeiro não tinha um alvo fixo a ser alcançado por uma trajetória linear e racional; ao contrário, permeado de uma inteligência líquida, visava alicerçar um caminho com refluxos, idas e vindas, incoerências e certezas apenas temporárias, complementaridades. Paisagens e espelhos feitos de pedaços de identidades encontrados na lata do lixo da história, as obras da presente exposição estão entranhadas do espírito de seu tempo e de um encanto assombrado com o devir.
Nina, qual a ligação entre as colagens atuais e seus primeiros trabalhos, da época da exposição "Morceaux Choisis", e qual a relação com os novos realistas ao longo de sua produção?
Quando eu estava fazendo a Faap, já me interessava muito pelo papel; meus trabalhos surgiam dos restos de papéis que as pessoas usavam. Em Paris eu me dei conta de como o xerox em papel colorido já era uma linguagem; comecei também pela língua, palavras estranhas, aqueles pedaços me interessavam como colagem. Eu ficava catando esse material. Era tudo um pouco combinado com desenho, alguns traços sobre a colagem.
Nesta época eu freqüentava o Beaubourg e fiz um workshop com o François Dufrêne, um dos novos realistas, mas que era bastante ligado à poesia sonora. Tinha um festival lá chamado Polyphoniques e a mistura de sons -uma coisa também parecida com o Kurt Schwitters na época, quer dizer, vinha daquela coisa do "Ursonate"- me interessava muito. Eu acabei conhecendo o Pierre Restany, o Dufrêne, o César, acabei trabalhando nos ateliês com eles. E fiquei impressionada na França com o tipo de resultado vindo do muro, dos cartazes, aquela somatória de informação, o letrismo. Muro era um elemento rico visualmente, tinha desenhos, imagens, situações... Os artistas sempre enfrentaram essa situação-muro. E os cartazes rasgados me interessaram muito desde então.
Quando eu voltei, comecei a colher esse tipo de material: outdoor, tanto de impressões tipográficas, bem sujas, quanto com as retículas estouradas, e construí um trabalho em cima desse material. No caso, a pincelada era esse rasgo. Esse rasgo se constituía em procedimento. Nessa época, 1982, aqui era época de eleição e a cidade estava imunda com esses cartazes todos colados. Então eu fiz meu trabalho de graduação pensando nesse recolhimento de fragmentos dos cartazes; o trabalho de conclusão da Faap foi instalar molduras em colagens eleitas como tais nos muros da cidade: eu escolhi alguns pontos e levei molduras pretas para delimitar certas áreas.
Essas áreas te interessavam visualmente, como pintura?
Como composição, como jogos de letras. E, também, desses retalhos construí alguns painéis, fiz algumas outras coisas. Todos tinham algum pedaço em que estava escrito "rua" ou outra palavra. Em um deles tinha um fragmento que eu trouxe lá de Paris que tinha escrito "objet trouvé", sempre tinha alguma mini-frase que aglutinava aquela idéia ali. Eram poucas as palavras que ficavam como palavras no trabalho, era mais a mistura tipográfica mesmo o que me interessava, o que está por cima, o que está por baixo, a colaboração.
Essa experiência com a cidade, de intervenções diretamente nas ruas ou com materiais recolhidos na cidade, tem algum vestígio dela nas colagens de agora?
Eu trabalhei o tempo todo sobre o meio, o meu olhar foi o meio, o que aquilo possibilitava como desdobramento de alguma coisa e num sentido de não ter grandes necessidades; uma atitude de esticar a mão e manipular as coisas que estão à volta, às vezes até um movimento mínimo, ter aquele jogo de cintura, de não ter premissas tão rígidas; eu procurava pegar uma coisa insignificante, olhar essa insignificância e extrair disso formas, situações e argumentos. Então eu não sei como é que disso eu acabei fazendo uma coleta tão grande de coisas de que eu não preciso, já é um paradoxo e eu já derrapo nessa idéia, porque eu vou entulhando, eu não preciso de nada e ao mesmo tempo eu preciso de tudo isso.
Tem também aí uma espécie de consciência ecológica, ao optar por trabalhar com o que está à mão ao invés de encomendar um material, mandar produzir determinada matéria com a qual trabalhar depois...
Eu acho que isso falta e é tão necessário e importante na nossa sociedade, no nosso mundo, que se desenvolveu, que teve acesso à tecnologia etc., mas falta esse outro lado, dessa consciência de que a gente tem que produzir menos, tem que se armar menos, tem que depender menos. Eu sou dessa linha "slow", eu não quero avançar, eu acho que está ótimo, ou daí para menos agora, um movimento para trás. Por que para quê tanto? Para que se encher de tanta informação? Essas coisas começam a se tornar ruídos, então excesso de informação é ruído. E ruído vira ruína.
Então a gente tem que ter essa responsabilidade de produzir e pensar o que a gente faz com tudo isso; como é que você reacomoda de maneira responsável em relação o planeta tudo isso? Parece que eu tenho vontade de fazer esse trabalho de bastidor, sabe? De reorganizar. Não dá: você vai limpar, você tem que jogar em algum outro lugar. E o lugar é aqui mesmo. O tempo inteiro você sente isso; não adianta tirar daqui e pôr na esquina. Você tem que pegar o da esquina e separar, organizar, e nesse sentido me pareceu que a arte era um bom lugar, mas eu já desconfio também disso, porque também já é saturado.
Mas no seu próprio processo de trabalho tem esse movimento de reacomodação interno, no sentido de reaproveitar materiais que fizeram parte de uma obra para a elaboração de uma outra, não tem?
Tem, tem. Já houve toda uma energia depositada. Aquilo ou foi um fazer pensado ou experimentado, mas teve uma intenção forte e eu não consigo me desvencilhar. Eu tenho que trazer uma sementinha daquilo. Aquele detalhe traz uma força, traz um parentesco, é uma herança.
O título da exposição, "Primo Impulso", vem daí?
Eu fui resgatar lá atrás o que foi que me moveu, o que é que me move, aquela primeira sensação, aquele primeiro confronto da minha necessidade, depois contribuição. Você tem que fazer esse olhar retrospectivo para se sentir tendo alguma participação no mundo das idéias, então eu fui buscar lá longe, e nisso vieram essas colagens, essa forma minha bem primitiva de pilhar coisas encontradas. E eu descobri que hoje, com a tecnologia gráfica e os grandes designers, a gente produz infinitos materiais tão bons que já chegam obsoletos, é para uma fração de segundo. Ou então, naquela velha linha, você fica arquivando, arquivando, mas nunca tem tempo de voltar porque já tem algo novo.
Por que você se intitulava "catalóloga" no período da finalização da Faap?
Este é um termo que confere um lado científico a esse fazer de aspecto tão mundano. Era um termo que unia o fazer mundano com uma espécie de exame "científico", que tem um método por trás.
Nos trabalhos da exposição existe uma catalogação de materiais do mundo ou de metodologias -um que tem mais padronagem, outro que incorpora fotografia, um que traz mais a ação de rasgar etc.- que pode ser distinguida em cada um?
Algumas coisas que se sobressaem: esse material vinílico espelhado, primeiro porque ao mesmo tempo em que ele é neutro -ele é o preto e o branco, reúne tudo e esvazia, ele absorve o ambiente, o movimento, a luz, tem essa coisa que fica pulsando- é também algo reflexivo, você se vê, se espelha; mas ele não é como um espelho, em que você tem a noção de si mesmo, é aquilo turvo, não é claro. Eu faço um paralelo disso com os vidros, as transparências.
Os outros materiais que entram, uns vêm por conta do acaso, tem imagens que entram mais como pinceladas do que como imagens, e outras que são usadas com o significado que elas têm e com o que elas podem compor com os outros elementos, o que faz uma certa narrativa, que não é total, ela abre, dá margem para leituras narrativas.
Eu acabo chamando de paisagem porque ao mesmo tempo aglutina uma coisa variada, extensa, que tem uma topografia de interpretação e que também muda, de acordo com o humor...
Quais deles você chama de paisagem?
Os que têm formato horizontal, que se estendem, eu tenho essa tendência a associar à paisagem. Também há muitos que se baseiam ou têm como base, lá no fundo, uma área ou um espaço como céu ou mar, uma extensão, com suas homogeneidades ou suas variações, então esses milhares de aspectos que um determinado olhar chapa, têm uma unidade aparente, e têm as particularidades. Eu gosto dessa situação em que você vê de longe um todo e enxerga, de perto, outra coisa. E a convivência, ou cada vez ou cada pessoa acaba se detendo. São micro-histórias, micro-conversas, eu gosto disso, algumas escapam, algumas não fariam sentido, são umas sujeirinhas, por isso é que eu acho que é pintura: você está pintando e de repente escorre uma cor que acaba fazendo parte, é o acaso.
Na colagem "Chuva" existe uma condensação maior dos elementos, ele é quase de uma tonalidade só; o "Flux e Reflux" é mais espacializado, enquanto este é mais denso, como a chuva mesmo, que também é turva e vem em grande quantidade.
"Flux e Reflux" é mais plano, talvez. "Chuva" tem muitas camadas, tem durex, tem papéis que num certo momento se curvaram e veio outra camada de durex que deu uma aglutinada novamente, ele tem quase mais topografia. O "Flux e Reflux" é mais chapado.
É mais uma calmaria de mar e aquele é mais atribulado, de chuva.
Eu acho que sim.
Os trabalhos "Plano B" e "Constituição" são mais semelhantes entre si também, mas já têm mais cores...
São mais verticais e têm elementos contrastantes. Eles remetem mais àquela idéia de rasgo, sendo que é um rasgo estilizado, recortado como rasgo, é quase uma marchetaria, eu diria, mas em papel e adesivo; uma superfície plana, mas que parece ser montada de fragmentos, parece uma favela.
Os títulos estabelecem uma relação de alteridade, porque, apesar de serem trabalhos parecidos, eles também são completamente diferentes. É como se um pudesse ser considerado o avesso do outro, duas possibilidades de constituição?
Engraçado, esse "Plano B", quando ele surgiu, ele veio tão diferente dos outros. Isso às vezes... você vê, eu uso o mesmo material, eu vou aproveitando, mas se eu quiser fazer uma série em que todos são pequenas partes de um todo, eu não consigo, porque um sai tão diferente do outro, e isso eu acho que tem um fator humor também. Cada dia, um pulsar de uma certa maneira. Um é calmo, um é mais rebelde, outro jorra. Não sei, às vezes eu me esqueço de como eles chegaram naquela situação. Vários se parecem, mas eles se parecem ao longo de um tempo. Se eu quiser fazer dois é para mim muito difícil, então quando eles são assim muito semelhantes eles acabam um díptico. Parece que um precisa do outro. E eles são constituídos dos mesmos elementos, dos mesmos procedimentos. Mas esses procedimentos... tem tantas variantes para se fazer a mesma coisa...
Que é impossível fazer a mesma coisa.
Parece que eles atendem a perfis e carências e necessidades diversas. E eu achei interessante homenagear esse aspecto. Na verdade eu acho que eu nunca fiz uma exposição que fossem dez trabalhos no mesmo formato, sempre tinha coisas variadas. E com isso eu costumo também pensar em não ter assim todos de 2007, todos recentes. À medida que você reolha, avalia e elege aquilo para estar ocupando um lugar, ele é recente, ele foi atualizado de alguma maneira. É uma atenção que já é transformadora. Isso é uma coisa em que eu acredito bastante mesmo.
*Este texto foi escrito originalmente para o catálogo da exposição "Primo Impulso", individual de Nina Moraes na galeria Carminha Macedo, em Belo Horizonte; a entrevista que se segue é inédita e foi realizada durante o processo de realização do texto, em maio de 2007 em São Paulo.
maio 28, 2007
Manet e a paisagem brasileira, por Rubens Pileggi Sá
"Le balcon", de 1868. Pintura de Edouard Manet
Manet e a paisagem brasileira
RUBENS PILEGGI SÁ
Efeito Borboleta
Causa e efeito: pensar a relação entre um fato dado e as conseqüências geradas por tal ato. Ou, o que uma coisa que não tem nada a ver com outra - aparentemente - tem a ver com a coisa? Babel, o filme: um acontecimento aqui que se reflete do outro lado do mundo. Em física moderna chama-se "efeito borboleta", porque o exemplo que foi dado era aquele entre o bater de asas de uma borboleta e uma bomba que acabou estourando.
Da vida e da obra
Eis a chave, então para o que vem a seguir: se a arte criada depende da vida que o artista leva, então tudo o que ele faz e pensa na vida, reflete na arte. Assim como é para todo mundo. A diferença é que o artista transforma suas questões vivenciais em expressão subjetiva. Traumas, afetos, distúrbios, sensações, dúvidas ou paixões: tudo isso é filtrado pela poética do artista que transforma seus sentimentos em objetos, ou obras. O que não os tornam menos "loucos" ou "neuróticos" do que as pessoas "normais", mas ao menos eles se manifestam, ou melhor, se "expressam", falando por nós coisas que, muitas vezes, nem sabíamos que tínhamos ou sentíamos.
Um estudo de caso
Pouca gente sabe que o pintor Edouard Manet (1832-1883) esteve no Brasil, em 1848. Menos ainda que, aos 17 anos, veio como uma espécie de estudante para se tornar marinheiro, talvez comandante de navio, como queriam seus pais. Portanto, ele ainda não tinha começado a pintar do modo ele veio a fazer, depois, mudando a história da pintura, e inaugurando o modernismo, na arte. Tornando-se o guru do Movimento Impressionista. O achatamento que ele inaugurou na imagem, equilibrando, através da luz e da cor, a figura com o fundo do quadro e com isso, levando a pintura no caminho da sua autonomia (bidimensional) em relação à escultura (tridimensional) foi sua grande revolução. E pode tanto ser comprovado no Cubismo - via Picasso e Braque - quanto no Abstracionismo, onde a cor e a forma não significam mais nada, além de ser o que são: cor e forma.
Uma hipótese
Há um livro das cartas viagem do jovem Manet aos trópicos. Lá ele fala de ter sido impedido de descer no porto do Rio de Janeiro, por ter ficado doente. Fala de mulatas. Reclama. Fala da vida no porto, etc. o que pode explicar, em parte - se a teoria de causa e efeito que tento explanar aqui estiver certa - pelo menos, da figuração, em sua obra. Seu mais famoso quadro, o "Dejeneur sur le herbe", de 1863, escandalizou a Paris da época, por apresentar mulheres nuas, profanas, em meio a homens vestidos, em um bosque, nos arredores da cidade. Algo que poderia ter a ver com a própria informalidade da qual aprendeu a ver nos trópicos. Não é difícil ver mulheres mostrando os seios por aqui. Nem o era em 1863.
Mas isso é uma conjectura. Assim como é uma conjectura - já que o próprio Manet, não falou nada sobre isso - que a forte luz tropical e a paisagem carioca tenham grudado nas retinas do menino, que mais tarde traria de volta essas impressões brasileiras às suas telas. Pode ser. Mesmo que inconscientemente.
Só por uma questão de observação, quem vê tais montanhas iluminadas, à distância que uma toma da outra, incrustadas dentro, perto e entre o mar, tem a impressão de uma foto colorida, ou de uma pintura que pode ser arranhada com as unhas. A impressão de espaço é tamanha que parece uma ilusão.
Da obra e da vida
Voltando. Falar de causa e efeito, nesses casos, pode parecer um pouco forçoso, sem contar que há pessoas que pensam que arte se resume a técnica e linguagem, nada tendo a ver com a vida que a pessoa tenha levado ou deixe de levar. Mas não deixa de ser intrigante pensar que a paisagem brasileira possa ter sido, senão o estopim, mas, quem sabe, uma inspiração que mais tarde foi colocada na tela do artista francês. O primeiro dado do imenso tabuleiro de dominó que foi dar na arte contemporânea.
É impossível mensurar tal fato, até porque quem poderia falar sobre isso já não está mais vivo. Mas se uma coisa tem a ver com outra e nada é tão por acaso assim, então a questão se coloca. Até porque temos as obras aí, para análise e (re)interpretação. E, mais uma vez, os trópicos oferecendo ao Velho Mundo o rico tesouro aqui guardado. Dessa vez, pela subjetividade do olhar.
maio 14, 2007
Cidade dormitório, por Rubens Pileggi Sá
Visão parcial do trabalho de Guga Ferraz, em exposição nas paredes externas da Galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro. Foto: Paulo Inocêncio
Cidade dormitório
RUBENS PILEGGI SÁ
Já conhecia algumas coisas que ele tinha feito, como o adesivo para grudar em placas de sinalização nas paradas de ônibus. Sobre o desenho do ônibus, nas placas, era adicionado um outro desenho, de fogo, deixando o ônibus em chamas. Isso bem na época em que começaram a incendiar os ônibus no Rio de Janeiro.
Outro, tão ácido quanto, só que mais irônico: o desenho do Bush impresso sobre panos de chão. Coisa bem popular. Para quem não gosta do presidente dos EUA - cerca de 80% da população do planeta - este é um adereço indispensável para se ter em casa!
Mais um, só para ilustrar o texto. Simulando o desenho de indicação da saída de emergência colado nos vidros de ônibus, ele fez outro em que, no lugar da mão que empurra o vidro, há uma mão segurando uma arma. E, depois, escrito em baixo: "em caso de assalto, não reaja!".
Sabia da sua ligação com o Zona Franca, uma ação coletiva de chamar artistas para mostrar trabalhos experimentais, na Fundição Progresso. E, também, que ele é um dos editores da revista de arte O Ralador. Além de participante da ação de colar cartazes lambe-lambe, do coletivo de arte Atrocidades Maravilhosas.
Por aí já dá para sentir seu engajamento artístico e sua postura de enfrentamento com a realidade. E, até uma das características de seu trabalho, a repetição serial. Seja como impressão, gravura, ou como células que se desenvolvem, se multiplicam. Por exemplo, uma de suas proposições, intitulada "Coluna", em que várias pessoas - uma sobre o ombro da outra - faziam as vezes de sustentação de edifício, pode ser considerado um desses casos.
Visão parcial do trabalho de Guga Ferraz, em exposição nas paredes externas da Galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro. Foto: Kiko Nazareth
Repetição. Uma das portas para entender seu trabalho. Pois é disso que o artista tirou partido para criar seu "Cidade Dormitório", na parede da Galeria Gentil Carioca, na região central do Rio de Janeiro. Lá, em plena integração com a arquitetura do local - exteriormente suja e abandonada - a Praça Tiradentes, hotéis de baixa reputação e o Centro Cultural Hélio Oiticica, Guga crivou um "beliche" de 08 (!) andares.
Oferecendo um equipamento urbano a quem quiser passar algum momento - ou fazer qualquer outro tipo de ocupação - descansando em um dos "cômodos" dessa estrutura de ferro, com grades de madeira e chumbada à parede. E com colchonetes em todos os andares. Algo que lembra o minimalismo - pela pureza e repetição formal - mas zomba da história da arte.
Tal instalação de rua leva a pensar, primeiramente, na questão do déficit habitacional que impera no país, em geral, e, no Rio de Janeiro, em particular. E poderíamos ser induzidos a crer que o trabalho é um protesto do artista contra o estado de indigência que grassa pelo centro da cidade. Pode ser. Qualquer mendigo que quiser se apossar de um dos "quartinhos" pode fazê-lo, pelos próximos quatro meses, que é o prazo para a obra permanecer no local. Pelo menos é essa a intenção: de uso, de ocupação.
Sugere, também, tratar-se de uma mimese de um conjunto habitacional popular qualquer, como esses "ninhos de pombos" que se constroem, cada vez mais, para pessoas que podem pagar cada vez menos. E, já que a questão é tratada pelo viés da arte, aquilo pode ser um prédio qualquer, ou, mesmo, um brinquedo lúdico. Ou mesmo como uma proposta de nomadismo como estilo de vida. Um dia dormir aqui, outro dia lá, e assim por diante.
(Passando por ali, uma noite, dois dias depois da inauguração da exposição, as crianças do bairro e a polícia que vigia o local queriam saber o que era aquilo. E acabaram achando divertida a idéia daquele objeto. Logo as crianças fizeram dali seu brinquedo. E os guardas foram embora.)
O fato é que não há nesse e nem nos outros trabalhos de Guga Ferraz algo tão filantrópico ou lúdico, propriamente, como há nos trabalhos do artista polonês Wodiczko, que faz equipamentos urbanos para indigentes. Ou, no trabalho de Vito Acconci, um artista dos Estados Unidos, que fez um equipamento urbano, dentro do evento Arte Cidade, em São Paulo, colocando sanitários, banheiros e oferecendo um local para os homeless descansarem. A crítica de Guga é mais ácida. É mais irônica. E a ambigüidade entre o funcional e o estético, equipamento urbano e sarcasmo, no mínimo faz qualquer pessoa pensar a respeito daquilo de forma desconfiada. Não perguntamos se o que vemos é arte. Perguntamos sobre aquilo que vemos.
Finalmente, há que se pensar nos riscos desse tipo de trabalho, de embate com a realidade, que não possui a possibilidade de recuo, uma vez colocado em circulação, nem de ser refeito, como uma pintura ou uma escultura. Menos, ainda, de ser escondido no porão de casa, caso não tenha ficado ao gosto do artista. Esse enfrentamento com o suporte "vida" é que o torna instigante, desafiador, pois, ao levar em consideração o contexto onde a obra é exposta, permite uma aproximação com as pessoas, dentro de questões que lhe são pertinentes, e não como arte cujos códigos nem sempre podem ser acessados por um público não especializado. Esse, de fato, o desígnio.
(mais imagens de Guga Ferraz em www.agentilcarioca.com.br)
maio 4, 2007
Dia do Nada sem Efeito Estufa, por Rubens Pileggi Sá
John Cage (1912-1992) descansando: compositor introduziu o silêncio na música
Dia do Nada sem Efeito Estufa
RUBENS PILEGGI SÁ
O paradoxo do ventilador
Todo mundo sabe o que é o Efeito Estufa. E o Aquecimento Global. As causa e os efeitos. O calor. O derretimento das calotas polares. O que parece que as pessoas não perceberam é que, por causa do calor, se usa e se compra mais ar-condicionado, refrigerador, ventilador. E quando mais aumenta o uso desses equipamentos, mais energia se gasta, mais quente fica o planeta. Entra-se em um ciclo vicioso cujo desfecho não parece apontar para bons presságios, pelo menos para a humanidade.
Em física, energia é o resultado da transferência de calor de um corpo a outro e, quanto mais as partículas estiverem em movimento e quanto mais rápida for a velocidade do movimento dessas partículas, mais calor é depreendido dessa transferência. Tendendo à combustão. Ao fogo.
Trabalho e natureza
Seguindo esse raciocínio, toda energia gasta por um corpo para se deslocar de um ponto a outro é chamada de trabalho. Portanto, tudo é trabalho. Tudo dá trabalho. Até ficar parado, contemplando.
Em nossa sociedade, não conseguimos entrar em um ritmo de vida onde o trabalho também tenha a ver com o desfrute, com o prazer, porque, entre outras questões, trabalho quer dizer lucro, dinheiro, mais-valia, exploração. Mas, também, porque não nos vemos como partes integrantes da natureza. E modificamos a matéria, os materiais - da estrutura atômica à remoção de montanhas inteiras - como se não houvesse relação entre causa e efeito. Em outras palavras, porque queremos dominar a natureza. Nos vemos como alguém na paisagem. E não como alguém da paisagem.
Temática do Dia do Nada
Refletindo sobre essa questão paradoxal do ventilador em relação ao calor, estamos propondo para o Dia do Nada deste ano que as pessoas deixem de colaborar para o aumento do Efeito Estufa. Diminuam ou parem de consumir. Gastem menos energia elétrica, menos combustível, mas que aumentem o gasto com energia vital, realizando coisas lúdicas e criativas. Individualmente e coletivamente.
Para quem não sabe ou não conhece, o Dia do Nada é um evento que acontece desde 2002 e tem como princípio pensar e agir sobre a questão do Nada de forma artística, filosófica, religiosa e sociológica. E é realizado com a parceira de artistas, colaboradores, s-ócios e simpatizantes, em geral.
Para o Dia do Nada, tanto quanto para a filosofia oriental e para os indígenas, agir pode ser, também, não-agir. Portanto, desligar o ventilador pode ser uma ação de grande importância dentro do quadro catastrófico em que estamos imersos. Não é uma questão de trocar um aparelho que gasta mais energia, por outro, "politicamente correto", mais "econômico", porque isso demanda aumento de energia e gasto com consumo, ainda. Mas para repensar prioridades e necessidades em nosso mundo.
"Aventura" no mato
Por fim, não basta apenas desligar o ventilador e ficar de braços cruzados (a menos que isso seja uma performance artística), com tédio e raiva de estar passando calor. Podemos, por exemplo, recuperar e inventar formas lúdicas de convivência pacífica com a natureza, como aconteceu, dias atrás, quando, em uma visita ao artista Jarbas Lopes, no sítio Bela Vista, em Marica, Estado do Rio de Janeiro, acabamos indo acampar com as crianças - sobrinhas e filhos dele - e dormindo em redes penduradas em árvores, como uma "grande aventura" cheia de "causos", que foram contados até que elas pegaram no sono. Sem a necessidade de luz elétrica, nem de ventilador, já que a brisa que vinha do mar, aliada à paisagem das montanhas, ao fundo, era tudo e até mais do que precisávamos. Arte sem arte. Agir e não agir. Deixando acontecer, sem interromper o fluxo da vida. Apostando no lúdico e na criatividade, somente.
Depois disso, agora só falta um voluntário para apagar as luzes na mansão do Al Gore. Quem se habilita?
http://nothingday.blogspot.com