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março 29, 2007
Paisagem inútil, por Rubens Pileggi Sá
"Campo de trigos com corvos" (1890), de Van Gogh: paisagem desesperada em sua última pintura
Paisagem inútil
RUBENS PILEGGI SÁ
"História: Aqui está um homem / Aqui está um cadáver / Aqui está uma estátua."
Joan Brossa
Depois de passadas tantas crises. Depois de tanto tempo esperando. Depois de ter conseguido domar a fera da revolta e da indignação que habitava seu peito, descobriu que não tinha mais nada a oferecer, então. Sua terra estava devastada. Aliás, perdera o direito a ela. Tinha sido expulso do Paraíso. Perdera sua Bela Vista. Agora só restava a paisagem desértica.
Mas o deserto não se resumia a um só lugar. Mas às idéias. E aos seus ideais, pelos quais um dia lutou. Apesar de tudo não podia desistir da vida, como fizera van Gogh depois de pintar "Campo de trigo com corvos", mas a imagem era similar. Não porque tinha vontade de continuar resistindo, mas porque lembrou-se de seu pai que dizia que "o problema é aonde cair vivo, não aonde cair morto". Riu, incomodado com o pensamento. Mas tinha medo da morte, também. Em caso de suicídio, sempre pensava, levaria mais uns vinte para o inferno, juntos com ele. E escolhidos a dedo. Na paisagem em que deveria colocar sua assinatura, havia ratos e não corvos. "Ratos não se transformam em humanos, mas, cada vez mais, humanos se transformam em ratos", tentou filosofar.
Em seu delírio, ainda balbuciou algo assim compreendido: "dominado pelas leis de mercado. Encurralado pelo discurso do progresso. Preso à histeria do consumo. Hipnotizado pela idéia fixa de que o trabalho é sagrado. De que a produtividade é redentora. E de que a tecnologia irá nos libertar para a exploração de outros Novos Mundos, a única coisa que o dito 'cidadão civilizado' quer, de fato, é vender ratoeiras e queijos". E mais: "esses ratos que não são ratos não se contentam apenas em vender. Querem controlar. Controlar para lucrar. Eis aí a utilidade do poder! Eis aí a consciência suprema que pode um rato-não-rato atingir!"
Era improvável, de qualquer modo, a busca por alguma inspiração mais altruísta. Já não podia e nem queria pintar outra coisa senão aquela cena catastrófica. Sentia-se como o andarilho que caminha sozinho, errante pelo mundo, despertando desconfiança por onde quer que passe. Um homem que questiona muito pode revelar algum aspecto podre, que ele traz dentro de si, nos outros. E isso pode gerar uma entropia perturbadora. O caos passa a ser ele, ao invés da situação.
Desistir não podia.
Talvez a tarde trouxesse alguma brisa, para aliviar o calor. Talvez tivesse forças para inventar uma paisagem encomendada para uma ocasião menos grave, embora o pêlo de seus pincéis, ressequidos pela tinta de tonalidades cinzas, denunciassem um abandono definitivo da idéia de pintar. E o que restava era apenas um quadro onde ratos pareciam se sentir à vontade com aquela paisagem inútil.
março 26, 2007
Fui ver e realmente não gostei, por Ricardo Resende
Fui ver e realmente não gostei
RICARDO RESENDE
E não é porque não gostei da exposição Itaú Contemporâneo que aceitarei de me taxarem como um "jeca" ou "interiorano", como se referiu a artista plástica Maria Bonomi em entrevista no jornal a Folha de São Paulo na coluna de Mônica Bergamo, de sexta-feira, dia 23, ao se referir sobre os artistas que viram suas obras tiradas das paredes e colocadas literalmente no chão. Não gostaram e com razão. Não foram consultados. E isto deveria ser de praxe de uma curadoria que pensa fazer um uso diferenciado ou "inovador" do trabalho. O que gerou uma forte polêmica na cidade nesta semana que passou.
Não há nada de inovação naquele gesto. Não há nada de homenagem aos artistas como quis se justificar a cenógrafa Bia Lessa, mais conhecida no meio sério das artes plásticas pela maneira desrespeitosa com que trata obras de arte. A cenografia que se vê no Itaú Cultural, esta sim, tem sotaque caipira com suas cortininhas que separam os espaços que lembram as que se usava nas casas caipiras do interior de São Paulo e Minas Gerais. De novo aquele discurso de interatividade sensorial com o público.
Mas para ser mais preciso, e não ficar apenas na superficialidade das coisas, começo pela coleção do Itaú Cultural que vem sendo constituída sem uma política de aquisições, é o que se percebe ali apesar do esforço do curador Teixeira Coelho. Parece uma daquelas listas dos artistas mais importantes que se deve ter para ser "in". Não se percebe critérios nas escolhas que formam a coleção. São pinceladas aleatórias e claro isso se reflete na fraca curadoria da mostra que é polvilhada com alguns trabalhos bons como o de Regina Silveira e a vídeo-instalação de Eder Santos. Mas a montagem e não se pode falar que aquilo se trata de museografia, é completamente equivocada. A começar pela apresentação do próprio Eder Santos no vão da escadaria. Outro é Julio Plaza, quase impossível de ser visto sem recuo no mesmo local. Exceto o andar que gerou a polêmica, os demais são convencionais e resultam em uma apresentação que não privilegia nada. Na verdade "mata" pinturas como a de Leda Catunda colocada ao lado da escultura de parede de Raul Mourão apenas pelas duas lidarem com a mesma matéria e humor.
Obviamente que o espaço da instituição não ajuda. É um dos piores com a finalidade de espaço cultural que se conhece na cidade. Não há adaptação nos moldes cenográficos que a instituição insiste em apresentar-se com o discurso de que o espetaculoso atrai o público, que dê certo ali. Ora são cenógrafos de teatro e iluminadores das novelas da Globo, ora são decoradores que se revezam ali na tentativa de "costurar" ambientes para a degustação de arte que seja palatável. E pior fica, como agora é comprovado, ao se propor a apresentar a arte contemporânea com cenografia e música ambiental com sons da natureza que ficaria melhor em um museu de história natural.
A incapacidade de Bia Lessa de lidar com arte fica evidente nos vários andares da exposição. Apenas em um ela tenta ser "inovadora" quando tira obras que originalmente foram pensadas para serem vistas na parede e as coloca no chão. Não estamos falando aqui de um Pollock, este sim inovou a pintura nos anos 50, que pintou literalmente com a tela estendida no chão e que depois a levou para a parede. Estamos falando de pinturas de um Paulo Pasta, um Daniel Senise, um Barsotti que foram pensadas na sua verticalidade e frontalidade. Mas se o gesto fosse tão simples assim, por quê então criar rampas e teto espelhado com o discurso de melhor visualizar as obras? Não bastaria apenas colocá-las no chão? Por que então a luz não vem do teto ao invés de vir na lateral lavando e refletindo nas camadas pictóricas a ponto de não se enxergar as cores das telas? Por quê criar um teto espelhado para segundo os responsáveis permitir um outro ângulo de visualização, na sua totalidade? Erro crasso de quem está mais habituado a iluminar cenários da Globo com suas cópias medonhas de pinturas encomendadas para serem apenas cenário. É a arte de mentirinha. É a arte maquiada. É a arte com desejo de apenas seduzir o público que infelizmente não sabe muito bem o que veio ver no Itaú Cultural. Que de contemporâneo não tem nada, infelizmente. Apenas uma maneira "espetaculosa" de apresentar arte que é na verdade elitista, embora se proponha o contrário. Ela esconde um preconceito nesta aparente generosidade que quer dizer "já que vocês não conseguem ver arte pela arte, vamos lhe apresentá-la como espetáculo teatral ou cenográfico de forma a diverti-lo". Nada mais é do que uma estratégia que distancia o espectador de um verdadeiro embate com a obra de arte.
O Itaú Cultural, para falar mais um pouco desta instituição, perdeu por exemplo, com todo o dinheiro que eles têm, a coleção de Adolpho Leirner para uma instituição norte americana séria. Esta coleção sim, poderia ficar muito bem ali naquele espaço com pé direito inadequados para o que chamam de arte contemporânea. Mas como disse, poderia, desde que não resolvessem chamar outra bacana para encenar a arte concreta brasileira para quem não entende nada do que está tentando falar.
Ricardo Resende
Coordenador do Projeto Leonilson
Coordenador de exposições independente
março 19, 2007
As cores e os lugares em Hélio Oiticica: uma leitura depois de Houston, por Luiz Camillo Osorio
As cores e os lugares em Hélio Oiticica: uma leitura depois de Houston
LUIZ CAMILLO OSORIO
A obra de Hélio Oiticica vem ganhando nos últimos anos uma visibilidade internacional surpreendente. Depois da consagração, inicia-se agora uma nova etapa: de pesquisa, catalogação e estudo dos vários momentos de sua trajetória, procurando explorar tanto os deslocamentos criativos como a coerência interna de sua poética. O Museu de Belas-Artes de Houston, através de sua curadora Mari Carmen Ramírez e do Centro Internacional de Arte das Américas (ICAA), em uma parceria com o Projeto Hélio Oiticica, realiza até abril uma primeira de duas grandes exposições do artista e dá o pontapé inicial para o catálogo raisonné, previsto em sete volumes. Oiticica ganhará outra envergadura a partir de Houston - com as pesquisas, as restaurações e as publicações.
Esta primeira exposição - Hio Oiticica: The Body of Color - que irá em Junho para a Tate Modern, foca nos anos 1955-1965, ou seja, das primeiras pinturas do grupo Frente até os parangolés. Como a cor é uma constante no seu percurso poético, são também apresentados alguns projetos da década seguinte: uma série dos topological ready-made landscapes e duas maquetes da invenção da cor, magic square Nº1 e Nº3 (esta última realizada no Museu do Açude do Rio de Janeiro).
Uma vez que a obra de Oiticica está definitivamente inserida no museu e na história da arte, é fundamental avaliarmos sua força e singularidade na cena contemporânea. Sua poética tem luz própria. Por um lado, há um dialogo intenso e riquíssimo com seus pares de geração apropriando-se da herança moderna e contaminando-a com uma energia popular de modo a pô-la em contato (e tensão) com a vida. Seria o caso de se repensar, por exemplo, os elos e as diferenças entre o neoconcretismo, a pop e o minimalismo; entre o "não-objeto", o "objeto-específico" e a "anti-forma". São características destas poéticas, a precarização da forma, a potencialização do corpo e a apropriação de uma multi-sensorialidade extraída da dança, do cinema, da poesia, além do samba, do rock e das drogas. Neste diálogo aberto, virão à tona diferenças extraídas de contextos culturais específicos e assim a rediscussão do Brasil na obra de Oiticica. Não poderei abordar aqui todas estas questões, gostaria de concentrar no que mais me tocou depois de visitar a atual exposição americana: o desenvolvimento da cor em sua obra, a partir do legado e dos deslocamentos da tradição moderna, e a invenção/descoberta de certa brasilidade, feita ao longo deste trajeto, por mais complicada (e perigosa) que seja esta discussão.
O Museu de Houston é um projeto de Mies van der Rohe. Suas galerias monumentais deram respiração singular à pulsação cromática da virada dos anos 50 para os 60, dos Bilaterais ao Grande Núcleo. É impressionante o frescor destas peças, que vibram ensolaradas com uma energia sempre renovada. Muitas obras foram restauradas pelos técnicos do museu texano e chegam a público pela primeira vez. Logo depois dos já conhecidos metaesquemas há uma sala magnífica com as pinturas e bilaterais brancos. Jamais vistos nesta quantidade, esta série branca mostra o diálogo aberto de Oiticica com Malevich, em que a projeção do plano e a sensibilidade tátil do branco como cor-luz-matéria se integram e se fortalecem. A materialidade da pintura e sua energia cromática não se excluem. A cor é matéria, ela vibra com as pinceladas, e ela é pulsação luminosa, criando um campo de ação que se expande no espaço. Esta dimensão de matéria da cor, sua densidade pigmentar e seus matizes de luz surgem pelo movimento e espessura das pinceladas. Sobressai assim uma vontade desidealizante de trazer a cor e a forma geométrica para sua dimensão tátil.
A passagem dos relevos espaciais, para as invenções, os bólides e o grande núcleo, culminando nos parangolés, dá toda a envergadura experimental da cor na obra de Oiticica. Entre os anos 1958 e 1964 sua poética sintetizou toda a experiência moderna da cor e a deslocou através da apropriação de novos materiais. Se em Rauschenberg podemos ver uma fusão peculiar da potência plástica de Picasso com a derrisão de Duchamp, em Oiticica, mais ou menos na mesma época, juntam-se a ambição construtiva de Mondrian com a materialidade caótica de Kurt Schwitters. Sem perda de rigor, e distante do contexto utópico do neoplasticismo, ele trouxe o ideário construtivo para o chão precário da realidade brasileira. O deslocamento em direção à informalidade aponta para a difícil questão de uma identidade cultural forjada fora dos parâmetros nacionalistas. Não se trata de reduzir Oiticica à questão da identidade ou da brasilidade, isso seria lamentável, mas de perceber até que ponto o atravessamento de uma realidade específica produziu um desvio singular em sua poética. Não há um abandono do diálogo "universalista", com toda uma tradição moderna indispensável, mas um reposicionamento da sua energia visual/sensorial pela contaminação de um corpo (do artista e da obra) tocado por uma situação específica de improvisação e precariedade. A equação vanguarda e subdesenvolvimento, tão cara à época, encontrou em Oiticica uma energia experimental dilacerante e radical, capaz de precarizar a forma para abri-la à processualidade e ao contato com o outro. O chão de brita do Grande Núcleo reverbera o diálogo tenso das invenções e dos bólides.
Um dado que sobressai vendo de perto o desenvolvimento da sua obra é como ela combina a mais extrema racionalidade com uma inacreditável capacidade de nos surpreender. De dentro dos meta-esquemas vemos germinar os bilaterais e até os penetráveis; entretanto, em cada etapa de sua obra irrompe uma qualidade que reinventa seus antecedentes e seus desdobramentos. Em momento algum de seu diálogo com a tradição moderna vem à tona qualquer sinal, por menor que seja, de angústia diante das influências. O passado é apropriado e se transforma em algo novo e singular. A justaposição de pinceladas de cor de Seurat, se mistura ao intenso movimento cromático de Delaunay, criando uma cor que é, em Oiticica, estrutura e tempo. Como salientou a curadora Mari Carmen Ramírez em seu ensaio no catálogo da exposição, a cor em Oiticica cruza todo o arco moderno que vai do "sentido de duração silenciosa viabilizada pela concretude física da Série Branca, até a temporalidade metafísica que se estrutura em torno dos Relevos espaciais e do Núcleo, chegando, finalmente, ao tempo-real revelado pela cor-em-ação dos Parangolés"1. Da concretude à ação, passando pela metafísica, a cor em Oiticica "resplandece como pele de fera", revelando uma consciência interiorizada da história da pintura que se desdobra nos mais diferentes meios e suportes, oferecendo-se integralmente ao espectador.
Para se entender o caminho experimental da cor em Oiticica, ultrapassando a relação do plano com a opticalidade, que começa nos bólides, passa pelos parangolés e chega aos trabalhos finais, é importante ir além da tentação (freqüente em uma certa leitura crítica) de vê-la como mera dissolução da forma que refletiria uma relação passiva e dócil com o mundo. Para isso, há que se repensar as formas de recepção e a temporalidade da obra no desafio de dar corpo à cor diante do risco de domesticação institucional. A rediscussão da temporalidade nos leva a reavaliar o nosso próprio tempo histórico em sua sintonia e singularidade frente à modernidade central2. Como já dito, não se trata de isolar a obra dentro de um enquadramento culturalista, fazendo da identidade cultural um obstáculo à inserção ampliada no concerto das nações modernas. Ao contrário, é justamente pela nuança de um acento particular que se pode contribuir para o alargamento das formas de vida e de subjetividade contemporâneas.
Em um texto emblemático, o artista Nuno Ramos (apesar de discordar da sua leitura devo reconhecer seu brilhantismo e agudeza) observa que "H.O. quase sempre utiliza tons e matizes, e não cores puras. Há nesta escolha, desde logo, um amor pelo intermediário, pelo que é provisório, que serve de ponto de partida, intensificando-se até o absoluto. Este assalto à idealidade pelo que é passageiro e banal - e as asperezas das madeiras de compensado são testemunhas disso - é decisivo em seu trabalho. O amor aos matizes e tons, à gradação de cores intermediárias, certamente provém daí". Um pouco mais à frente, concluindo este longo parágrafo, ele acrescenta que "há uma passividade nesta expansão controlada e sem sobressaltos, uma monotonia nesta passagem das imperfeições do material ou da característica intermediária da cor à sua duração, cercando o espectador por todos os lados, que vão oferecer um solo comum nos próximos trabalhos. Nasce com os Núcleos este sono desobstaculizado, tão intenso quanto aconchegante, que elide o mundo e protege o sujeito, característico de todo o trabalho de Oiticica"3. Uma curiosa mistura de Antonio Candido (no método) e Paulo Prado (no temperamento) perpassa toda a análise. Gostaria de oferecer uma alternativa "tropicalista" de leitura, mais ao gosto de um Gilberto Freire, em que a suposta passividade desdobra-se em sensualidade, jamais em monotonia, e a elisão do mundo, se é que existe, longe de proteger o sujeito, vai lançá-lo ao desabrigo de uma necessidade de "sentir de todas as maneiras" que quer contrapor-se à lógica tediosa da eficácia. Esta seria uma aposta decadentista, não houvesse no interior de sua poética uma carga concentrada de trabalho, recusando todo espontaneismo, e energia criativa. A passividade, presente nos momentos de relaxamento e introspecção, convive com a vontade de potência, impedindo sua obra de descambar para um vitalismo autoritário ou para uma acomodação alienada. Ela é para todos e para ninguém.
Por outro lado, nossa modernização atrasada e incompleta, cheia de sobressaltos, arredia às normas de sociabilidade impessoais, traz consigo, para além dos problemas sabidos, um horizonte de inventividade comum onde precariedade e potência irmanam-se. Não se trata de valorar nossa singularidade, mas de marcar uma diferença a ser enfrentada, transformada e qualificada. A obra de Oiticica, com seu jogo de nuances e matizes cromáticos, suas arestas e dobras articulando interior e exterior, longe de se recusar a enfrentar o mundo, propõe-se a liberar uma disposição participativa que faz o movimento de mão-dupla indo da intimidade subjetiva ao compartilhamento aberto e plural. As mazelas de nossa formação patriarcal desdobram-se na cordialidade dos favores autoritários, cuja brecha positiva, todavia, seria a penetração a contrapelo de um tempero afetivo e informal nas relações sociais. A interpenetração da informalidade social e da formalidade normativa responde por parcela significativa de nossa injustiça e desigualdade aterrorizantes, assim como pela vitalidade criativa que brota da precariedade. O tempo das obras de Oiticica joga com estas passagens e meios-tons, ritmada pelos sobressaltos de uma energia potente e pelos recuos, cheios de frustração, das realizações adiadas. À atualidade da presença física das cores, dos materiais e das formas, agrega-se a virtualidade de possíveis desdobramentos a serem vivenciados por cada um, na hora e no lugar oportunos. É indispensável dispor-se à presença de sua obra no que ela tem de forma atual e de força virtual.
Há que se reverter o risco de domesticação institucional em disponibilidade poética, viabilizada nos encontros momentâneos com instantes de invenção. Estes momentos em que intenção e casualidade convivem, são freqüentes na obra de Oiticica: nos seus fragmentos de cor, poesia e precariedade. Isto não necessariamente se dá dentro do museu, mas pode se disponibilizar a partir daí e ficar aguardando uma atualização qualquer. Ou não. Esta exposição de Houston mostra que o vigor de sua obra ultrapassa toda redução a uma identidade cultural. Ela é arte em estado puro, com seus limites e surpresas, que se projeta em direção ao mundo e a qualquer um, tendo sido lançada, todavia, a partir de um solo cuja singularidade da formação social é simultaneamente um problema e uma possível solução. Sua obra, com seus tons e matizes incertos, consegue ser trágica e otimista, como os sambas de Noel.
Luiz Camillo Osorio - Professor de Estética e História da Arte na UNIRIO e PUC-RJ, crítico de arte e autor dos livros, Flávio de carvalho, Cosac&Naify, 2000; Abraham Palatnik, Cosac&Naify, 2004 e Razões da Crítica, Zahar, 2005.
RAMÍREZ, Mari Carmen - "The Embodiment of Color - from the Inside Out", Catálogo da Exposição Hélio Oiticica: the Body of Color, MFAH, Houston, 2007, pág 34 (tradução do autor). (retorna ao texto)
Esta discussão da sintonia entre diferentes tempos históricos e tradições culturais, para além das relações de determinação e influência, surgiu-me depois da leitura da entrevista dada por Silviano Santiago a Madalena Vaz Pinto, apresentada como anexo à sua Tese de Doutoramento defendida no departamento de letras da PUC-RJ, sob o título "Modernismo em Língua Desdobrada: Portugal e Brasil". (retorna ao texto)
RAMOS, Nuno - "À Espera de um Sol Interno", Jornal do Brasil, Caderno Idéias, Rio de Janeiro, 28/07/2001, págs 4 a 6. (retorna ao texto)
Serviço:
Hélio Oiticica: The Body of Color
17 de março a 1º de abril de 2007
Museum of Fine Arts
1001 Bissonnet Street, Houston - EUA
(713)-639-7300
www.mfah.org
março 17, 2007
Visita laranja a uma exposição, por Juliana Monachesi
Visita laranja a uma exposição
JULIANA MONACHESI
Hoje teve abertura da I Mostra do Programa de Exposições 2007 do Centro Cultural São Paulo. Passei por lá já meio tarde, então encontrei o CCSP vazio. Estava começando a ver as fotografias do Raphael Franco quando encontrei o Reginaldo Pereira, um artista que vai expor logo mais lá no Programa de Exposições também. E fomos vendo as exposições juntos, papeando. Tentamos indetificar o objeto representado nos lambe-lambes do Charles Klitzke (um moedor de carne? uma câmera de vídeo?, uma arma?) Comentamos sobre a monumentalidade paradoxalmente delicada das pinturas da Alice Shintani, conversamos sobre a "op arte povera" que uma das peças do Marcone Moreira evoca, e então chegamos à expo do Daniel Steegmann.
Foi muito incrível como aqueles trabalhos foram nos cativando aos poucos (e vamos combinar que visitar exposição em dupla sempre rende mais, vai?). A gente olhou, olhou de novo, um foi chamando a atenção do outro para algum detalhe muito sutil. A habilidade para cortar bem ao meio um emaranhado de gravetos e a elegância para mantê-lo de pé. A investigação geométrica em objetos prosaicos como laranjas e mexericas e a variação de padrões possíveis de se conseguir semi-descascando essas frutas. A destreza para retalhar uma embalagem de papel ou uma fotografia e reorganizá-las na reconstrução.
E a gente começou a sentir cheiro de laranja. Que não parecia vir dos objetos dispostos sobre a mesa como uma espécie de modelo vivo para uma natureza-morta. E aí nos demos conta de que havia um enorme heptágono laranja atrás de nós -e foi a esse ponto que as pequenas esculturazinhas e colagens tinham nos intrigado até aquele momento-, e também de que ali dentro tinha uma saco de laranjas, faca, dois espremedores, copos de plástico e vários banquinhos de praia. (Outra vantagem de visitar uma expo acompanhada de um artista: às favas com a vergonha de pegar várias laranjas no saco de laranjas e cortar as laranjas, espremer as laranjas e tomar laranjada sentada no banquinho vendo o mundo alaranjado filtrado pelo laranja do plástico que recobria o heptágono.)
O Rêgi lembrou na hora no grupo Laranjas de Porto Alegre. Fomos checar o nome do artista: Daniel Steegmann. E fomos por exclusão: "Bom, tem o Jorge Menna Barreto, que aliás acabou de entregar a dissertação de mestrado"; "Ah, que legal"; "Tem a Fabiana Rossarola, que aliás se mudou para a Espanha"; "É mesmo? Que ótimo"; "Tem a Cris Ribas, ela também está morando em São Paulo, não?"; "Tem a Patrícia Francisco, o Cristiano Lenhardt..., que aliás tem feito essas performances em fontes, já viu? É um trabalho lindo, ele toma banho na fonte e..."; "Bem, então não é um Laranja"; "Não, não é"; "Mas é um trabalho Laranjas total!"; "De fato".
Laranjas, como se sabe, não são propriedade artística patenteada por ninguém. Aliás, não existe propriedade artística patenteada. Artistas são os ladrões mais honestos do mundo. O Ducha fez aquela ação nas ruas do Rio e de São Paulo de derrubar um monte de laranjas no cruzamento de duas avenidas, parou o trânsito, todo mundo correu para ajudar etc. (Foi o Ducha? Não me lembro direito agora, mas alguém fez, e parece que em São Paulo foi numa ladeira e não num cruzamento, e a correria para salvar as laranjas do rapaz foi maior ainda. Acho que foi a Grazi [Kunsch] quem me contou. Ela estava lá, lógico. Ela sempre está presente em ações subterrâneas detonadoras de energia artística.) Mas é um trabalho Laranja no sentido de te fazer parar e prestar atenção, fora o caráter generoso de oferecer um refresco em dias quentes...
Foi ótimo. Uma visita rápida à exposição, mas super memorável. Obrigada, Rêgi, pela parceria casual e involuntária neste texto para o arteemcirculação! (Você viu que eu dei uma editada nos nossos comentários para conferir maior legibilidade ao texto, né? Desculpe-me por qualquer imprecisão, omissão ou adição propositadas e intencional... hehehe.) Ah, sim, e depois ainda vimos as pinturas e aquarelas da Elke Barth, conversamos tanto sobre a "questão da cor"; eu nem sabia que tinha repertório para conversar sobre cor. Foi lindo!
março 13, 2007
Tempo quente, por Rubens Pileggi Sá
"Fogo Cruzado", trabalho de Ronald Duarte, em Santa Tereza, Rio de Janeiro
Tempo quente
RUBENS PILEGGI SÁ
Um paradoxo
Enquanto aguardava a fila do caixa do supermercado, uma senhora, se abanando com uma folha de papelão, olhou-me desconsolada e disse que o calor estava demais. Vi todo o aparato funcionando à nossa volta - iluminação, ar condicionado, ventiladores, motores elétricos - e fiquei pensando que aquilo gastava grande quantidade de energia, fazendo aquecer ainda mais o planeta e obrigando, por sua vez, o aumento do consumo de energia para o funcionamento de ar-condicionados, refrigeradores e ventiladores...
Deter o consumo, não a redução de danos
Os fabricantes têm se esmerado em produzir novos modelos de aparelhos eletrônicos que consumam menos energia, ou de carros e meios de transporte para gastar menos combustível. Mas como estamos nas mãos do mercado e da mídia que depende das aplicações financeiras para se manterem, ninguém faz nada para conter o consumo de produtos. Como alternativa inventam o eco-dólar para continuarem ganhando sobre a destruição que eles mesmos produziram. Investem na redução de danos, criando marketing ecológico e vendendo novos modelos de marcas embalados em roupagens politicamente correta. Dizem que o guru da Nova Era é o ex vice-presidente dos E.U.A. que quer salvar o mundo do Efeito Estufa - nosso mais recente vilão. E que vai fazer shows com artistas de vários países, pela salvação do planeta: "Você investe em nosso banco e quem ganha é a natureza!". Melhor fazer poesia: "silêncio/ economia de palavras/ também é ecologia"
Arte: decorativa ou combativa?
A arte é sempre vista como a cereja que decora o sorvete que os outros tomam. Pelo menos assim é que a maioria das pessoas pensam ou a vêem. Como algo decorativo, fantasioso. Ou seja, ela é admirada até o ponto em que não toca as questões que a vida propõe. E, ao permitir que ela seja rotulada como inocente diante da radical transformação que a sociedade está passando e continuará a passar ainda, deixamos cristalizar essa impressão de impotência, como se isso livrasse nossa própria pele. E não é questão de denúncia ou citação, que é o que de mais falsamente potente pode haver, mas de interferir na própria carne da vida, muitas vezes sendo obrigado a tomar medidas drásticas para continuarmos vivos.
Se, por um lado, a luta de massas parece não conter mais aquele grau de viabilidade que um dia parecia conter, por outro lado, uma política que leve em consideração a "microfísica do poder", para poder se expandir, deve ter em mente uma mínima organização entre suas partes. Ainda que seja entre duas pessoas. E os artistas - e a arte, em geral - são os mais aptos a enfrentarem essa situação, uma vez que o anarquismo de suas proposições os levam a desenvolver o sentimento e a subjetividade como armas de luta.
Quem ganha com o caos?
Entre o posicionamento político, a reflexão filosófica e a ação prática artística, o planeta derrete de quente e aumenta a energia gasta para suportar o calor, cada vez maior. Uma vez que o uso das tecnologias não garante a sobrevivência do ser humano no planeta, o ideal seria repensar nossas necessidades diante do caos que insiste em nos apavorar. Ou alguém acredita que as enormes despesas gastas com o estudo genético, a criação de célula-tronco para reproduzir neurônios, ou o último modelo de celular - feito de algum material ecologicamente correto - servirá para acabar com a fome e a miséria da população inteira do planeta? Quando se fala em inclusão digital, será que conseguiremos construir 2 ou 3 bilhões de computadores para distribuir pelo mundo? Será que temos tantas reservas de matéria-prima assim, ainda, nos chamados países emergentes? E quem é que vai ganhar com isso?
Urgência das idéias
Alguns artistas investem no efeito que o uso de novos programas em computador são capazes de oferecer, simplesmente pelo direito que têm em experimentar as novas ferramentas disponíveis no mercado. Ninguém tem o direito de condenar esse uso. Mas se a arte não for capaz de ir além do mero jogo de formas e efeitos pirotécnicos. Se ela não for embasada por uma idéia capaz de provocar o espectador para além da sedução e da hipnose que o uso da máquina pode proporcionar, então a arte está condenada ao mesmo paradoxo do ar-condicionado que aquela senhora que reclamava do calor, me fez pensar.
março 12, 2007
Razão e emoção para criar e inventar, por Rubens Pileggi Sá
Reprodução do trabalho, em folhas de jornal, da artista Leila Danziger: considerações éticas no fazer estético
Razão e emoção para criar e inventar
RUBENS PILEGGI SÁ
O xamã e a transcendência
O artista alemão (1921-1986) Joseph Beuys era considerado uma espécie de xamã por causa de suas atitudes. É dele o Conceito Ampliado de Arte, que via a sociedade como que sofrendo um trauma psíquico, social, político e ecológico, e que a arte poderia oferecer a cura plena e a redenção destes traumas.
O xamã é uma figura tribal capaz de entrar em contato com a transcendência. De criar uma ponte entre dois mundos distintos. Talvez seja impróprio pensar um outro mundo além do qual estamos. Mas é possível unir a esse mundo valores de permanência e não só de efemeridade e consumo de mercadorias. E transcender sem querer fugir de onde estamos, simplesmente alterando nossos estados mentais com o uso da consciência. Ou seja, ao mudar nossa visão de mundo, nossa percepção e sentimentos também se transformam, se ampliam.
Se, no entanto, para Beuys, o uso da criatividade e da imaginação era a chave para essa transcendência, por outro lado, o mau uso dessas capacidades piora ainda mais o estado das coisas.
Criando e inventando mais problemas
O sociólogo e diretor de cinema francês Guy Debord, autor do livro "A sociedade de Espetáculo", previu que os próprios criadores de problemas ambientais iriam vender, como solução, mega-projetos de combate à poluição. Nesse momento em que o caos ambiental parece irreversível diante das catástrofes que o planeta Terra está passando - resultante do aquecimento global - empresas e empresários que faturavam com o desperdício industrial e o desmatamento desenfreado, agora inventam projetos mirabolantes como esconder o CO2 debaixo da Terra, bombardear nuvens com substâncias químicas, ou tapar parte do sol com guarda-chuvas gigantescos, construídos no espaço. Ou seja, ao invés de apostarem em soluções simples como frear o consumo, preferem "criar e inventar" paliativos de redução de danos, que só aumentarão, em verdade, os problemas globais.
Uso das palavras
Palavras a que acostumamos valorizar positivamente nem sempre devem ser interpretadas com o mesmo sentido. Democracia e Progresso, por exemplo, podem esconder a defesa do abismo entre ricos e pobres em uma sociedade onde as oportunidades pertencem àqueles que possuem acesso aos bens de consumo. A professora e pesquisadora Vera Lins, em um ensaio publicado neste Canal, sobre o trabalho da artista Leila Danziger - feitos com folhas de jornal - coloca que "progresso e destruição caminham juntos. O estado de exceção, que 'atingiu hoje seu máximo desdobramento planetário' é o resultado de um crescimento ilimitado da atividade industrial".
União da emoção e da razão
Já no romantismo alemão os filósofos e poetas pregavam que as decisões da vida não poderiam ficar à mercê do racionalismo econômico. Que o caminho estético seria a solução em que pensamento e sensibilidade, emoção e razão deveriam andar juntos para a constituição de uma perfeita liberdade política. Onde a criatividade e inventividade estariam comprometidas com a manutenção da vida. Caminho esse trilhado por Beuys, o artista Xamã, que entendia a natureza como parte do humano e não a ser domesticada e transformada em mercadoria, depois descartada e jogada no lixo.