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janeiro 24, 2007
Intimismo e paradoxos, por Rubens Pileggi Sá
Intimismo e paradoxos
RUBENS PILEGGI SÁ
Coletiva de artistas contemporâneos no MAC/PR aproxima linguagens distintas
Fugindo às definições
Se o questionamento do que venha a ser a ciência e a filosofia e quais as funções que elas cumprem no destino da humanidade parece ser menos controverso do que a arte, é porque esta sempre consegue resistir e escapar a rótulos e definições, por mais acabados que pareçam.
Não só porque a pergunta sobre o que é a arte e para que ela serve se transforma através dos tempos e dos lugares onde é enunciada, mas, também, porque não há nenhuma unidade estilística e formal que garanta a supremacia de um certo trabalho realizado sobre outro qualquer.
Em se tratando de arte contemporânea, então, nem se fale. Principalmente da arte produzida depois da metade do século passado para cá, herdeira da tradição de rupturas que se acentuaram. É o caso da art Minimal e da Pop-art, incluindo-se Performances, Instalações, Arte Conceitual, Intervenções Urbanas, etc.
Arte em si
Se dissermos que a Beleza define a arte, então deveremos identificar um objeto e um sentimento que imite algo que tenha correspondência no mundo visível. Mas, assim, descartaríamos o próprio postulado modernista de invenção e criação que a arte reclama, afirmando que algo é por si, não precisando se tornar a cópia de outro, parecendo ser o que não é. Por exemplo, quando uma senhora indignada vendo as pinturas do pintor Matisse lhe disse que não existia uma mulher verde, o pintor lhe respondeu que aquilo não era uma mulher, mas uma pintura.
De todo modo, a noção que temos de Beleza ainda passa pela questão da subjetividade, já que não podemos medir racionalmente o que seja A Beleza. E entramos em um terreno que inclui a questão do gostar ou não gostar de algo. É certo que o grau de conhecimento sobre determinado assunto apura o gosto, mas até aí não temos condições de dizer que tal coisa é ou não é arte, ainda. Apreciar vinhos, ser arrebatado por uma paisagem, achar alguém bonito. Isso pode ter Beleza. Chamamos a isso de Bom Gosto. Até de arte, também. Mas arte isso não é, pelo menos enquanto não estiver inserido dentro do conceito de Arte.
Além de pensar. Viver
Sócrates já se debruçava sobre essa questão há mais de dois mil anos, tentando definir o que era O Belo, O Bom e O Justo. E outro filósofo, Kant, buscou traçar a genealogia do gosto segundo o juízo da razão. As mesmas perguntas que fazemos hoje e que continuam abertas ao debate.
Só que, diferente da filosofia, a arte se questiona e questiona o mundo através dos materiais que usa e que transforma, modificando, a cada vez, nossa própria forma de ver as coisas do mundo. E é diferente também da ciência, pois depende da subjetividade de quem entrará em contacto com a obra de arte, ainda que intermediada pela linguagem e por sua força comunicativa.
De certa forma, a arte não é para ser pensada. Talvez, nem para ser sentida. A arte é para ser vivida. "Navegar é preciso, viver não é preciso", no entanto.
Mostra Coletiva
Todas essas considerações acima fazem parte de uma tentativa de pensar (depois de ter vivido, ou depois de algo ter sido vivido por mim?) a exposição coletiva de quatro artistas convidados, em cartaz no MAC/PR, em Curitiba, até 31 de janeiro.
Embora sem nenhum compromisso de relação entre os trabalhos apresentados, é possível enxergar em comum - além da proximidade de gerações e de produzirem em Curitiba - uma visão intimista que nos desorienta entre aquilo que se revela e que se esconde, ao mesmo tempo. Entre o que aparenta ser, mas não é. Embora esteja ali presente, diante de nossos olhos, ouvidos, narinas. Propõem um jogo de aproximações e distanciamentos. De convite ao toque e recusa em serem manipuladas - vide as faixas amarelas de sinalização coladas ao chão. Sim, a arte contemporânea abriga paradoxos e contradições verbais, visuais, sonoras, etc. e é com esse olhar que as obras de Fábio Noronha, Carina Weidle, Gabriele Gomes e Lívia Piantavini podem ser vistas (apreciadas, degustadas).
Agrupadas por linguagens, os objetos e instalações de Weidle e de Noronha ocupam salas do andar superior do antigo prédio público (1928), transformado em Museu de Arte. E as pinturas de Gomes e Piantavini, o salão principal e outra sala, contígua, do andar térreo.
"Deu Errado"
A produção que Fábio Noronha apresenta - além do impacto visual - envolve o espectador em certa aura de mistério, propondo um estranhamento, à primeira vista. Ela pede desvelamento, mas se recusa a se entregar, jamais se oferecendo totalmente à compreensão. Parece nos dizer que o que está diante de nós é arte e que não se exija dela nenhuma explicação, mas, ao mesmo tempo, ela não exige de nós nenhum sentimento comovido. Apenas uma indagação após outra indagação, nos remetendo a outras, sucessivamente.
Se nomear as coisas é tirar-lhes o mistério de não as sabermos, então Noronha busca o inverso disso, já que um título remete a um subtítulo, que remete a uma armadilha verbal, que nos coloca em frente a algo qualquer, que pode ser um ruído, uma falsa parede com um buraco se abrindo para o exterior, ou outra parede, simplesmente fatiada, onde o pó caído ao chão faz parte de um jogo de dar e retirar a lógica do espectador. Ao assumir a frase "Deu Errado" sobre pedestais de apoio a esculturas, Noronha assume o certo pelo seu avesso, abandonando o molde de uma cabeça humana em um balde de alumínio, no canto de uma sala.
Objetos Inconformados
Carina Weidle, por sua vez, propõe operações plásticas (artísticas, leia-se!) conceituais, onde o tirar, o colocar e o sobrepor conferem a seus objetos um desconforto diante de sua posição no espaço, que parece incomodá-los. Tais objetos aparentam viver em um estado intermediário da matéria, inconformados ao seu destino, congelados antes de se diluírem, antes de se racharem completamente, antes de se perderem nas abstrações de algo que pode ser e que não é. Mesmo as peças polidas e bem acabadas nos indagam com um certo modo de ser de Esfinge, a nos desafiar: "decifra-me ou te devoro!".
Cor e perversão
Com um mesmo procedimento - que é a colocação excessiva de tinta colorida sobre uma superfície - entrelaçado entre um "expressionismo irônico" e um "pop desencantado", cada pintura de Gabriele Gomes parece querer provocar o espectador na sua "falsa inocência". Elas excitam nossa vontade de tocar, de apertar, de espremer, de lamber as cores, mas há algo de perverso nisso: são podem ser olhadas. Entre o desejo e a realidade, nossos olhos passeiam por diferentes texturas formadas pelo acúmulo de tinta. Às vezes fios, às vezes manchas, às vezes deixando boa parte da tela sem pintar, dando espaço ao branco. Branco que é a soma de todas as cores...
Adivinhando o mundo
E, por fim, as delicadas, sensuais e sutis pinturas (ou seriam desenhos coloridos?) de Lívia Piantavini, cuja leveza na junção de elementos díspares, como linha e cor, forma e conteúdo, nos levam a lugares onde a visão ainda está por se formar. Onde a nomeação das coisas ainda não se deu. Onde a poesia está presente e podemos brincar de adivinhar o mundo.
Rubens Pileggi Sá pileggisa@hotmail.com
janeiro 17, 2007
Pós-apocalipse, por Rubens Pileggi Sá
Jenny Holzer, instalação: Proteja-me do que eu quero
Pós-apocalipse
RUBENS PILEGGI SÁ
Vivemos em um momento da história em que ninguém tem algo a dizer tão profundamente quanto saber que a história só existe na medida em que ela está se fazendo. O debate sobre a questão ambiental é tão urgente que não há quem possa ser levado em consideração sem falar do que está acontecendo agora.
O assassinato de Saddam Hussein é tão cruel quanto o fim do vôo da borboleta durante um dos estrondos que se ouve, todos os dias, provocados pela explosão de dinamites, em uma cidade como Pirenópolis, Goiás, para a extração de pedras, nos morros. Ou as conseqüências do esgoto derramado a céu aberto no litoral do país. O falso dilema da geração de empregos versus preservação do ambiente. Da preservação do ambiente versus o progresso. E do progresso versus a distribuição de renda.
Sterlac, um artista performático australiano, que vem trabalhando há anos na relação entre homem e máquina, nos lança a idéia de que esse tipo de interação está levando o homem para a condição pós-humana. E que um novo conceito filosófico deverá ser pensado, pois toda a filosofia - um pouco mais, um pouco menos - está calcada na biologia.
Depois da morte de Deus, a morte da natureza. O homem já vem sendo morto há tempos, como pode comprovar o neopentecostalismo apocalíptico televisivo e mercadológico.
Aquela ladainha direitista de que os ecologistas defendem as baleias enquanto os seres humanos morrem nas filas dos hospitais públicos já não vale mais no neocapitalismo. Temos ar puro - ainda - para vender. Quem quer comprar?
Se a arte tem a ver com Beleza e ela está incorporada à natureza, por que permitimos a destruição do nosso patrimônio natural? Por que aceitamos entregar o que é belo à exploração financeira? Rios assoreados, peixes mortos pela ação de agrotóxicos, poluição, desrespeito ao ciclo da vida, matança de jovens contra jovens nas favelas do Rio de Janeiro, vingança em nome da justiça, cruzadas "democráticas" contra o "eixo do mal", caça aos terroristas... Já não temos mais nem arte, nem história e nem filosofia porque o homem, a natureza e Deus foram mortos por trinta dinheiros.
Retomando o conceito de pós-humano. O que isso tem a ver com os interesses públicos? Afinal de contas temos cotas de carbono para vender no mercado internacional. Temos locais para estocar lixo dos outros em nossas cidades. E sempre se dá um jeitinho para vender ar-condicionado a prazo no inferno. Inferno que são sempre os outros. Inferno que é a repetição do mesmo. Inferno que também acabará quando descobrirmos que a herança do pós-humano será o pó. E a única coisa pela qual valerá a pena morrer, será pela Beleza.
janeiro 6, 2007
Bienal ETC. - O que o Acre tem a nos dizer - Entrevistas com Marjetica Potrc e Susan Turcot, por Fernando Oliva
Vista da instalação de Marjetica Potrc na Bienal
Bienal ETC.
O que o Acre tem a nos dizer - Entrevistas com Marjetica Potrc e Susan Turcot
FERNANDO OLIVA
O trabalho da Marjetica Potrc para a Bienal se baseava, desde o início, em uma crença: na inteligência e no poder das comunidades rurais do interior da Amazônia. Antes mesmo de decidir que faria sua residência artística no Acre, a artista eslovena tinha uma questão, de onde partiu em direção ao desconhecido: de que maneira essas comunidades, supostamente isoladas, convivem entre si e com o mundo "exterior"?
Ao chegar lá, onde trabalhou por cerca de dois meses, ela baseou suas investigações nos principais projetos da região para o futuro próximo: um novo modelo de cidadania (batizada "florestania"); uma economia de pequena escala; o exemplo sócio-educativo da Universidade da Floresta; um entendimento avançado da noção de "propriedade coletiva" e da utilização sustentável dos recursos naturais; a proteção e a preservação do conhecimento e dos territórios.
De volta a São Paulo para realizar seu projeto no Pavilhão, o abismo entre as duas realidades, tanto do ponto de vista social quanto cultural, chamou a atenção de Marjetica, o que a levou a afirmar, nesta entrevista ao Bienal ETC.: "Talvez você ache isso uma contradição, porém as questões com as quais os acreanos estão lidando, caso da sustentabilidade, estão, sob muitos aspectos, mais próximas dos europeus que dos paulistas. Quando eu estive em São Paulo, todos falavam sobre o Acre como um lugar longínquo, um território desconhecido. Contudo, o fato de os paulistas verem a si mesmos como ocupando o centro, não os faz deles pessoas mais avançadas. Ao longo da maior parte do Acre, por terem que se virar sem muitos produtos da modernidade como auto-estradas e ferrovias, as diversas comunidades conseguiram extrair o máximo de seu isolamento, conquistando liberdade para pensar em caminhos e escolhas mais progressistas que as de São Paulo".
Em sua obra para a Bienal - uma situação instalativa muito bem articulada, que combinava desenhos, vídeos, grafitti e objetos, incluindo a recriação, em madeira, de uma pequena escola rural sobre palafitas - a artista escreveu "frases de ordem", em inglês, à maneira de pichações nos muros de uma cidade, como "Complex knowledge and linear thinking need each other" e "We know: it's all about shared knowledge, on equal terms with others". Há também afirmações irônicas, como "Masp over Brasília. Lina Bo Bardi knew: hope is with the people of the Forest".
Na entrevista que se segue, Marjetica reflete sobre sua participação no evento, e seu discurso reafirma a integridade e a complexidade de sua proposta, Xapuri: Rural School, que conseguiu dar origem a "formas políticas" em produtiva simbiose com "formas artísticas", integrando as possíveis contradições e não as procurando anular ou submetê-las à lógica interna de seu projeto.
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Já Susan Turcot, que também fez do Acre sua residência por certo tempo, optou por realizar desenhos a lápiz e ministrar workshops junto às comunidades florestais que a receberam. Na volta a São Paulo, e no choque com a situação controlada que caracteriza um espaço expositivo institucional, ficou claro que a artista canadense foi sensibilizada pelo terreno de contrastes pelo qual trafegou: "As matas originais, hoje fragmentadas, são lugares onde você pode ver claramente as causas e os efeitos de decisões tomadas à distância, e essas comunidades e ecossistemas acabam assumindo o pior destas políticas".
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Nas conversas a seguir, questões semelhantes foram colocadas para Marjetica Potrc e para Susan Turcot, em momentos distintos (ambas entrevistas foram realizadas por correio eletrônico, depois que as artistas já haviam retornado a seus respectivos países).
Entrevista com Marjetica Potrc
Canal Contemporâneo - Quando você escolheu realizar sua residência no Acre, o que esperava antes de chegar lá? Que espécie de imagens tinha em mente?
Marjetica Potrc - Quando eu fui convidada a participar do programa de residência da Bienal, me disseram que poderia ser tanto uma residência urbana quanto uma rural. Eu decidi sem hesitação ir para o Acre, esta área rural e florestal da alta Amazônia. Por que? Durante os últimos dois anos, desde que eu me interessei pelas comunidades rurais, descobri que elas podem ser altamente articuladas e inventivas. E mais: elas podem produzir idéias melhores para o futuro do planeta do que as que você encontra nas regiões urbanas. O ano de 2006 marcou um significativo turning-point: mais da metade da população mundial agora vive nas cidades, lugares que mais do que nunca estão sentindo o peso da civilização que criaram. Neste contexto, pode ser que as áreas rurais se transformem em um novo berço para a sociedade civil, seu renascimento.
No sentido em que Jacques Ranciére estabeleceu, particularmente em A Partilha do Sensível, como você vê as relações entre "práticas estéticas" (formas de visibilidade das práticas artísticas) e "práticas sociais" no contexto da sua produção?
Bem, a estética nunca é neutra. Eu nunca separei arte da vida real, elas são uma coisa só. Em meu trabalho, tento fazer uma mediação.
Sim, mas deve ter acontecido algum tipo de embate entre o seu trabalho, de um lado, e o contexto cultural, social e político do Acre, de outro. Neste sentido, como você avalia as transformações, se houve, tanto para a sua obra como para as comunidades com as quais você esteve?
No Acre, eu viajei bastante e conversei com muitas pessoas. Espero ter conseguido transmitir para o grande público de São Paulo, ao menos em algum nível de entendimento, as complexas estratégias e práticas que testemunhei. Talvez você ache isso uma contradição, porém as questões com as quais os acreanos estão lidando, caso da sustentabilidade, estão, sob muitos aspectos, mais próximas dos europeus que dos paulistas. Quando eu estive em São Paulo, todos falavam sobre o Acre como um lugar longínquo, um território desconhecido. Contudo, o fato de os paulistas verem a si mesmos como ocupando o centro, não os faz deles pessoas mais avançadas.
Ao longo da maior parte do Acre, por terem que se virar sem muitos produtos da modernidade como auto-estradas e ferrovias, as diversas comunidades conseguiram extrair o máximo de seu isolamento, conquistando liberdade para pensar em caminhos e escolhas mais progressistas, até, que as de São Paulo.
Quanto à produção cultural do Acre, eu estou interessada, como sempre, em trabalhos que refletem a cultura contemporânea. Eu adoro os vídeos de Sergio de Carvalho e Souza, produzidos em colaboração com a Amazonlink, uma ONG baseada em Rio Branco.
Em seu trabalho para a Bienal, pode-se ler na parede afirmações como "Estamos conectados com o mundo exterior em termos próprios" e "Nós sabemos: a questão toda é sobre conhecimento compartilhado, nos mesmos termos para todos". Em que medida esta operação se refere à idéia de "negociação com o outro", proposta comum aos trabalhos de arte colaborativa?
No projeto para a Bienal, eu me concentrei em dois temas: educação e o desenvolvimento de novos territórios no Acre. A declaração "We are connected to the outside world on our own terms" se refere ao que eu qualifico de "estratégias de comunidades tipicamente do século 21". No Acre, nos últimos 15 anos, grandes extensões de terra, incluindo áreas urbanas, foram disponibilizadas para que as comunidades as gerenciassem de modo sustentável. Os moradores que administram esses territórios encaram a economia em pequena escala tanto como uma ferramenta para sua própria sobrevivência, quanto como um novo modelo econômico que é crucial para a sobrevivência do planeta e a sociedade como um todo.
O futuro do mundo dependeria das lições de equilíbrio que os territórios controlados localmente, auto-geridos, e as economias em pequena escala derem às forças globalizantes das companhias e organizações multinacionais? As pessoas com as quais eu conversei no Acre definitivamente pensam que sim, e que os modelos desenvolvidos por elas podem servir de exemplo global.
A afirmação territorial das comunidades acreanas e sua proteção do conhecimento caminham de par com uma espécie de conectividade dirigida. De fato, elas estão conectadas com o mundo a seu próprio modo. Também é importante lembrar que a criação de reservas extrativistas tem sido parte de uma política internacional desde 2004. O que nós estamos presenciando é uma nova territorialização.
A educação é outro tema central neste meu projeto. Existem dois tipos de parceria em curso hoje no Acre. Uma delas envolve a criação de escolas primárias em áreas remotas, uma sociedade entre as comunidades locais e o governo. Uma escola típica é equipada com extensos painéis solares e uma antena parabólica, ou seja, os meios para se conseguir energia e se comunicar.
A outra iniciativa é a Universidade da Floresta, cujo objetivo é articular conjuntamente o conhecimento de seringueiros, populações indígenas, acadêmicos e cientistas, com o intuito de promover o encontro do know-how regional, complexo e "específico", com o conhecimento "analítico" da ciência ocidental.
Esta proposta faz sentido, uma vez que o Brasil é um país de alta tecnologia, porém no qual a sabedoria adquirida por aqueles que vivem na floresta não é ensinada nas salas de aula, mas experimentada diretamente. Seringueiros e índios, os guardiões da floresta, não querem ser objetos de pesquisa. Eles querem contribuir, em bases igualitárias, para a cultura compartilhada do mundo atual. A região amazônica não apenas possui a maior biodiversidade do mundo, mas é também uma fonte importante de conhecimento aplicado.
Quanto ao outro statement "We know: it's all about shared knowledge, on equal terms with others", trata-se de uma referência às aspirações das pessoas que fizeram a Universidade da Floresta se tornar uma realidade. Eu gostaria de acrescentar que esta universidade foi iniciada há 30 anos. Ela está sediada em Cruzeiro do Sul, mas possui 21 postos avançados de pesquisa na floresta, um deles em um barco; e há um ano organiza um programa de estudos, chamado Ceflora. O historiador Marcos Vinicius Neves, de Rio Branco, me contou que a idéia surgiu pela primeira vez durante um encontro em Marechal Taumaturgo (um dos municípios da Amazônia Legal), já com a proposta de transformar a cidade em um grande laboratório.
Sendo assim, devo lembrar que a construção de uma sociedade - o que é claramente a situação em curso no Acre - é pelo menos tão importante quanto construir edifícios. Além do que, nós construímos edifícios de acordo com nosso entendimento do mundo.
Gostaria que você refletisse sobre as possíveis aproximações entre a sua instalação no Pavilhão e o tema curatorial Como Viver Junto.
A minha instalação Xapuri: Rural School apresenta um estudo de caso focado em uma escola primária na cidade de Xapuri, no Acre. O edifício está equipado com extensos painéis solares e uma antena parabólica. A questão que Roland Barthes propõe, "como viver junto?", possui ressonâncias na escola, em diversos sentidos. Não apenas pela importância da educação (no Acre, estas escolas com painéis solares e parabólicas são chamadas de power kits), mas também no sentido de que essas construções representam uma colaboração entre as comunidades locais e o governo. Eu incluí desenhos, um vídeo e outros trabalhos para situar a instalação em um contexto mais amplo.
Still de vídeo realizado por Marjetica Potrc
durante sua residência no Acre
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Entrevista com Susan Turcot
Canal Contemporâneo - Quando você escolheu realizar sua residência no Acre, o que esperava antes de chegar lá pessoalmente? Que espécie de imagens tinha em mente?
Susan Turcot - Na verdade foram os próprios curadores da Bienal que me sugeriram o Acre como local de residência, uma vez que eu me interesso, no contexto do meu trabalho, por questões do meio-ambiente e comunidades florestais. As matas originais, hoje fragmentadas, são lugares onde você pode ver claramente as causas e os efeitos de decisões tomadas à distância, e essas comunidades e ecossistemas acabam assumindo o pior destas políticas.
No sentido em que Jacques Ranciére estabeleceu, particularmente em A Partilha do Sensível, como você vê as relações entre "práticas estéticas" (formas de visibilidade das práticas artísticas) e "práticas sociais" no contexto da sua produção?
Este é um diálogo essencial, uma vez que alguém tem a intenção de "tornar visível", por meio de imagens, um universo de sensibilidades subjetivas compartilhadas. O que, espera-se, funcione como um catalisador na direção de futuras investigações.
Desenhar com um lápis é uma experiência direta e comum a qualquer pessoa. Eu não tenho que ensinar nada ou fornecer algum equipamento para me comunicar. Eu estava bem preparada quando cheguei ao Acre, porém obviamente o trabalho só pode ser iniciado e ganhar forma por meio das experiências pessoais e com base nas trocas. E eu fiquei surpresa com os desenhos à medida que foram se desenvolvendo. Tive a impressão de estar sendo conduzida por eles em direção a um novo território, e isso se deve em grande parte à generosidade das pessoas que encontrei lá.
Quando elas viram os desenhos, sentiram-se parte das minhas investigações e deram a entender que eu estava documentando o imaginário visual que elas carregam, situado entre o rural e o urbano, entre o mundo mitológico e o real.
Eu posso afirmar que a proposta de "transformação" efetiva foi bastante tangível, e fiquei com a impressão que pude restituir esta experiência por meio dos workshops de desenho e das conclusões a que chegamos nas discussões coletivas.
Seus desenhos são, na maioria, vistas panorâmicas, e não há um olhar em direção aos detalhes De que maneira você descreveria a experiência de representar o que você viu no Acre? Qual poderia ser o significado de tomar uma distância em relação à realidade que você encontrou lá?
Eu era uma outsider no Acre, e neste sentido, para minha identidade lá, a distância era real.
Em si, os desenhos são bastante íntimos.
Há uma exploração pessoal, bem como referências a experiências de morte e transformação, além das histórias econômica e social.
A maneira de desenhar é detalhista, e as superfícies em close são cuidadosamente construídas até ganharem forma.
Do ponto de vista dos significados de seu trabalho e de sua recepção, gostaria que você comentasse a experiência do deslocamento entre o contexto sócio-cultural do Acre para o de São Paulo.
Foi difícil viajar para São Paulo, depois da experiência no Acre. São situações completamente diferentes. Não há muitas conexões entre as duas regiões, nem comunicação ou intercâmbios. Era importante que meus desenhos se desenvolvessem a partir da minha vivência lá, e do contato com as pessoas na cidade e na floresta. O trabalho não se pretendia a atender os dois territórios, Acre e São Paulo, nem se investir de códigos de acesso para o mercado internacional.
Neste contexto, de que maneira você se aproximou do tema da "negociação com o outro"?
A noção de "outro" é fortemente experimentada quando você passa pela imersão em uma história cultural totalmente estranha à sua. Esta foi uma questão importante para mim no Acre: eu me tornei meu próprio "outro", no lugar deles que eram de fato "o outro"? O que acho interessante perguntar é de que modo a sua sensação de segurança é desafiada, e como, daquele lugar de vulnerabilidade, você tem a oportunidade de se colocar questões que são relevantes para a situação como um todo.
Gostaria que você refletisse sobre as possíveis aproximações entre a sua instalação no Pavilhão e o tema curatorial da Bienal.
O Acre se tornou um projeto bastante sério para todos aqueles que decidiram trabalhar lá. Eu compreendi o seu espírito de autonomia e pude presenciar sua riqueza particular, inacessível para as pessoas das grandes metrópoles. Viver junto é possível quando as condições para as trocas, a sobrevivência, a saúde e a autonomia são determinadas por questões locais e não pelas organizações globais.
Desenho de Susan Turcot realizado
durante sua residência no Acre