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novembro 29, 2006
Bienal ETC. - Com Barthes, na Bienal, por Mariza Werneck
BIENAL ETC.
Com Barthes, na Bienal
MARIZA WERNECK
Viver-não, viver-sem, como viver
Sem conviver, na praça de convites?
Carlos Drummond de Andrade
Se Roland Barthes passeasse um olhar entediado e distraído pela 27ª Bienal de São Paulo - o tédio, dizia, era sua forma particular de "histeria" - talvez tivesse um pouco de dificuldade em reconhecer ali os traços deixados em seu curso Como Viver Junto, que serviu de guia temático à mostra, e foi ministrado no Collège de France, entre 1976 e 1977. No entanto, conhecido pela sua generosidade como professor, quem sabe não a recusaria de todo. Sua ambição maior nesse curso seria, segundo ele, a de abdicar da condição de mestre, e reivindicar um lugar mais obscuro, permitindo assim que sua fala fosse mais banal do que aquilo que suscitasse em seus ouvintes. Projeto inalcançável esse, em se tratando de Barthes.
O olhar que lhe interessava projetar sobre o mundo foi anunciado com clareza em um curso do ano seguinte, que ganhou o nome de O Neutro. "De fato eu gostaria", diz ele, "se estivesse em meu poder, de olhar as palavras-figuras com um olhar rasante que pusesse à mostra nuances (...). O que procuro, na preparação do curso, é uma introdução ao viver, um guia de vida (projeto ético): quero viver segundo a nuance".
Embora, em sua busca de nuances, considere a literatura a grande mestra, nem por isso as artes plásticas deixam de estar presentes nesse aprendizado, tanto em sua escritura, como em sua vida. Não apenas porque desenha e pinta, mas também porque, ao privilegiar uma escrita figural, confere a seus textos enorme plasticidade. É como se seu discurso fosse permanentemente habitado, em seu subsolo, por uma forma, uma imagem que age sobre a superfície e a modifica. Outros procedimentos inerentes às artes plásticas estão igualmente sugeridos em sua metodologia, como o traço e os pequenos toques de cor, assinalados em Como Viver Junto: "Toques sucessivos: uma gota disso, um brilho daquilo. Enquanto a coisa está se fazendo, não se compreende aonde ela vai: cf. em pintura: o tachismo, o divisionismo (Seurat), o pontilhismo. Justapõem-se as cores sobre a tela em vez de misturá-las na paleta. Eu justaponho as figuras na sala de aula, em vez de misturá-las em casa, à minha mesa. A diferença é que, aqui, não há um quadro final: na melhor das hipóteses, caberia a vocês fazê-lo".
Mas que tipo de nuance buscaria o olhar de Barthes na Bienal? Construído a partir de uma escolha fantasmática, como lhe convinha, seu olhar não se demoraria, certamente, nos macros agrupamentos, estruturados segundo uma arquitetura de poder, e declaradamente hostis à fantasia. Pelo mesmo motivo, evitaria também toda literalidade, e qualquer sociologia mais explícita. Nenhum excesso, nenhuma forma opressiva. Não que o excesso o chocasse. Ao contrário, sabe-se, foi um bom leitor de Sade. Mas, fiel à sua "ciência da nuance", o que lhe interessou buscar no divino marquês foi, justamente, algum "princípio de delicadeza".
Na 27ª Bienal, o olhar nuançado de Barthes talvez se deixasse contaminar por certa atmosfera, pelos minúsculos pontos de luz emanados de paredes que operam como filtros, por obras que parecem ali reunidas por uma graça fortuita, e ainda por aquelas que possuem algo de inventário, e de jogo com a imaginação. Da mesma forma se interessaria por certas construções minimalistas que apenas roçam (palavra barthesiana) o viver junto, reduzindo-o à sua expressão mais simples, a uma quase inexistência.
Isso porque, para falar do viver junto, Barthes foi em busca de seu grau zero, ou seja, do lugar intersticial em que a convivialidade se confunde e coincide com o viver sozinho. Mais do que a demonstração de um método, fez de seu curso uma experiência de ascese e imaginação. No limite, interessou-se em inventariar a solidão em suas múltiplas formas, e constatar sua absurda impossibilidade. Por isso, em seu curso, desfilam anacoretas e eremitas, náufragos e loucos, todas as figuras nascidas da estranheza e do delírio, enclausuradas em existências mínimas, reunidas ali, fortuitamente, por um gesto denso de poesia.
O ponto de partida foi uma palavra - uma fantasia - encontrada ao acaso em um livro de História: idiorritmia. Palavra de origem grega, composta de ídios (próprio) e de rhythmós (ritmo), cujo primeiro significado remete ao universo religioso: tem a ver com formas de vida comunitárias em que cada membro segue seu ritmo pessoal, mas depende, ainda que em escala mínima, de uma organização partilhada.
A partir dessa palavra-guia, Barthes passou a acalentar a idéia de um curso impulsionado apenas pelo imaginário de quem o proferisse. Um curso que permanecesse para sempre inconcluso, que consistisse em nada mais do que "abrir dossiês", um curso feito de digressões e fugas constantes de seu eixo temático.
Os organizadores da edição impressa de Como Viver Junto - seus alunos - tiveram a sabedoria de não reescrever as lições barthesianas (são anotações de aula), assim como a sensibilidade de não transformá-las em uma transcrição impressa da versão oral gravada, o que teria dado, como resultado final, apenas um livro póstumo. Permitiram, dessa forma, que Roland Barthes inaugurasse, mais uma vez, um novo gênero - como aconteceu, aliás, em cada um de seus escritos. Respeitando a incompletude seminal de seu texto, deixaram ao leitor a delicada surpresa de perceber que aulas também podem se transformar em rara experiência estética. Mesmo porque, depois de tudo, terminado o curso, exaurida a cintilância de sua fala, desmontaram-se os andaimes, desfez-se a obra. Barthes não só o sabia, como desejava isso "Durante treze semanas", disse ele, "vamos ter de nos sustentar sobre o insustentável. Depois tudo será abolido".
Mariza Werneck é professora de antropologia e estética na PUC-SP, realizou doutorado sobre mitos e experiência estética em Claude Lévi-Strauss e trabalha em perspectiva transdisciplinar (literatura e artes plásticas).
novembro 26, 2006
Bienal ETC. - Sobre a subjetividade na era da reprogramação digital, por Daniel Hora
Vista geral da ocupação do coletivo portenho Eloisa Cartonera
Bienal ETC.
Sobre a subjetividade na era da reprogramação digital
DANIEL HORA
"Resgatar a idéia de pluralismo, para a cultura contemporânea descendente da modernidade, significa inventar modos de estar juntos e formas de interação que ultrapassem a inevitabilidade das famílias, dos guetos de facilidades tecnológicas e das instituições coletivas existentes."
Nicolas Bourriaud, Esthétique Relationnelle (1998)
A arte sempre foi um resultado de relações. Entre volumes e cores, entre escalas e perspectivas, claros e escuros, tradição e ruptura, realidades e pessoas. Esta última dupla de elementos é, talvez, a responsável pelo mais perene, basilar e complexo jogo dialético de nossas existências e da expressão artística. A dualidade entre objetos e sujeitos (ou entre pares destes ou daqueles, conforme o modelo de pensamento) fundamenta nossas habilidades de comunicação e constitui fatores difusos de pré-configuração para o trabalho criativo, seja ele mimético, alegórico, idealista, naturalista, de vanguarda ou conceitual. Graças à modernidade iluminista e romântica e seu impulso à reinvenção utópica dos sistemas de produção de significado, essa contraposição ganhou evidência na arte e assumiu gradualmente (e de forma cíclica) destaque entre as demais referências da análise crítica. A ponto de ser vista como o foco e o meio da investigação artística por alguns, enquanto outros reclamam de sua inclinação tendenciosa a propósitos extraordinários aos da Arte.
Ao mesmo tempo em que esse caráter social das artes visuais ascendeu ao primeiro plano, a industrialização e o capitalismo alargaram seu domínio, passando da transformação da natureza em bens à reprodutibilidade técnica das imagens e conteúdos simbólicos. Tal processo, diagnosticado por Walter Benjamin em 1936, quando o cinema e a fotografia ainda eram novidade no cenário artístico, foi alvo das observações combativas do Dadaísmo, Fluxus e Internacional Situacionista - movimentos influenciados pelo anarquismo e o marxismo. Segue vigente, de modo mais disperso e corriqueiro, emaranhado nos fios da trama social. A colonização do desejo e sua conversão em ímpeto consumista têm assegurado o ciclo de lucratividade e reinvestimento das economias avançadas na era da opulência de bens materiais. Com a globalização, os centros contaminam as periferias com sua dinâmica devoradora. Aqueles que podem emigram para os pólos de desenvolvimento - embora esse movimento não elimine, necessariamente, sua condição de subalternidade na cadeia de consumo. Os que ficam mantêm-se sedentos pelas comodidades do admirável mundo novo.
A lógica dos novos aparatos de fabricação e distribuição da imagem - de fácil manuseio, móveis e interligados à distância pelos sistemas de telecomunicação e de internet - acentuou o fenômeno, apesar de oferecer, em tese, um caminho para a emancipação. Na 27ª Bienal de São Paulo, o debate sobre essa senda libertária foi reaberto ao público, nos trabalhos de uma geração de artistas que, desde os anos 90, tem se dedicado a reparar a alienação da subjetividade a partir da construção de estruturas ambientais e sistêmicas de relacionamento interpessoal alternativo. Em seu livro Esthétique Relationnelle (Estética Relacional), o crítico e curador francês Nicolas Bourriaud propõe o critério de avaliação que se deveria aplicar a essas propostas, elegendo justamente como ponto de partida as relações humanas e a conjuntura social representadas, produzidas ou impelidas por esses projetos. No pavilhão da Bienal, bastaria visitar os espaços expositivos de nomes como Superflex, Minerva Cuevas, Tomás Saraceno, Marcelo Cidade e Rirkrit Tiravanija para que nos deparássemos com instigantes diagramas de arranjos comportamentais.
Interstício social
Na arte relacional, a conjugação das subjetividades individuais gera os significados coletivos. Para se entender os possíveis efeitos desta última Bienal sobre a estética, devemos examinar que relações os trabalhos selecionados estabeleceram, em seu processo de realização e de exibição, com o envolvimento de artistas, da própria Bienal, do público, da cidade de São Paulo e das comunidades em contato direto ou indireto com essas ações. O coletivo de Buenos Aires fundado em 2003 Eloísa Cartonera seria um exemplo bastante abrangente dos elementos constituintes desse sistema de confluências e respostas simbólicas inseridos na prática artística. O engajamento social do grupo - coordenado por Wáshington Cucurto (escritor e editor do projeto), Javier Barilaro (desenhista) e Fernanda Laguna (encarregada pela gestão cultural e curadoria) - está presente desde o ateliê-oficina-galeria No Hay Cuchillo Sin Rosas. Lá, artistas e jovens catadores de papel que abandonam as ruas para viver da arte convivem e cooperam na produção de livros com miolos xerocados (recurso à praticidade e decréscimo dos custos) e capas pintadas manualmente sobre papelão. O material é comprado de pessoas que ainda sobrevivem de sua coleta na capital argentina, por um preço aproximadamente cinco vezes maior do que o habitual de mercado.
O projeto, surgido na esteira do colapso econômico do pós-neoliberalismo no país, se mantém com a venda dos livros artesanais em locais públicos, livrarias e exposições. Os títulos editados incluem textos inéditos, de vanguarda e alternativos de autores latino-americanos desconhecidos ou consagrados como o argentino Ricardo Piglia, o costarriquenho Luís Chaves e os brasileiros Haroldo de Campos e Glauco Mattoso, que cedem à iniciativa os direitos de suas obras, via de regra depreciadas pelo grande mercado. A editora comunitária desempenha uma retomada de posse sobre o direito à subjetividade por meio de um aparato moderno e industrial de comunicação de massas: a impressão gráfica. Como a virada ocorrida na música da era pós-MP3 e pós-comunidades de troca de arquivos na internet, essa reversão é ainda mais pertinente às sociedades sem acesso amplo à informação, seja pelo baixo poder de compra, seja pelo poder manipulador exercido pelas grandes corporações da cultura. De tal modo que a presença performática do Eloísa Cartonera na Bienal de São Paulo, onde trabalharam com catadores da cidade, teve como justificativa o desejo do grupo de lançar as sementes para a formação de um equivalente paulistano. Soma-se à analogia social comum aos países em desenvolvimento a identidade cultural latino-americana. Para Javier Barilaro, não haveria sentido, portanto, em querer se apresentar de igual maneira em nações ricas da Europa ou nos Estados Unidos.
No caso do coletivo argentino, cabe observar ainda a prática plena da "morte do autor" teorizada pelo semiólogo Roland Barthes ou, como propõe Bourriaud, o pertencimento ao ecossistema que interconecta o meio ambiente, a subjetividade e o corpo social, conforme o conceito de ecosofia do psicanalista francês Félix Guattari. "O contraste romântico entre indivíduo e sociedade, que informa o exercício de simulação artística e seu sistema mercantil, tornou-se verdadeiramente nulo e vazio. Apenas uma concepção 'transversalista' das operações criativas, que diminua a importância do autor em favor do operador-artista, pode descrever a 'mutação' em curso", escreve Bourriaud. No ateliê sede ou na sala montada dentro da Bienal, todos os operadores contribuem na produção de significados que, em última instância, se completam no repertório dos receptores, no momento em que reconhecem a relevância estética daquilo com que entram em contato ou adquirem.
De forma comparável, atuam a "organização" sediada em Pequim Long March Project e o russo Vladimir Arkhipov, ambos presentes na Bienal. O primeiro é um amplo coletivo interinstitucional que refaz desde 1999 a Grande Marcha do líder comunista Mao Tsé Tung pela China, na década de 30, divulgando a arte contemporânea internacional e estudando a produção artística e as comunidades encontradas ao longo da rota histórica. Os resultados da pesquisa e os objetos produzidos são de autoria de todo o conjunto envolvido, do curador principal, Lu Jie, aos governos regionais e os habitantes das localidades visitadas. Em um procedimento à maneira do Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias (1968-1972), do belga Marcel Broodthaers (1924-1976), Arkhipov recolhe artigos artesanais encontrados nas casas de pessoas comuns para expor em seu Museu de Objetos Feitos à Mão, ao lado de entrevistas gravadas com os respectivos inventores, valorizando sua subjetividade ante a crescente padronização da cultura industrializada. Na tangente das caixas de trecos fluxistas, porém na contramão da ode aos ícones massificados da pop de Andy Warhol, o artista russo faz o elogio das soluções improvisadas com a precariedade material para a satisfação das necessidades banais. Na Bienal, exibiu a seleção de Functioning Sculptures (2006) coletadas em São Paulo.
A extensão das táticas do faça-você-mesmo e da reciclagem, a urbanização de todos os fenômenos da cultura e as trocas subjetivas no "interstício social" da arte se associam em um sistema de interdependências. Bourriaud filia sua estética relacional à idéia do materialismo randômico do filósofo franco-argelino Louis Althusser (1918-1990), para reforçar que a arte é um estado de encontro que reflete nossa natureza "transindividual". O intercâmbio, portanto, estabelece a expressão como um processo e não como um produto final. De acordo com Bourriaud, "não há nada próximo de um possível 'fim da arte' ou 'fim da história', porque o jogo é sempre reencenado, em relação a sua função, ou seja, em relação aos jogadores e o sistema que constroem e criticam". Não por acaso, o coletivo argentino Taller Popular de Serigrafía trabalha em consonância com o Eloísa Cartonera. Partindo do mesmo contexto de crise econômica, descrédito no governo e politização popular, o projeto, fundado em 2002 por Magdalena Jitrik, Mariela Scafati e Diego Posadas, difunde, através de seu aparelho ambulante de estamparia, imagens simbólicas das lutas populares nas camisetas, faixas e cartazes levados às ruas nas manifestações de piqueteiros, assembléias de bairro e cooperativas que retomaram as atividades das fábricas falidas.
No Brasil, o projeto paulistano Jamac (Jardim Miriam Arte Clube), coordenado por Mônica Nador, e a artista carioca Paula Trope transitam pelas periferias das duas maiores cidades do país usando a arte como meio de trocas e agrupamento social. O primeiro emprega, particularmente, a pintura de fachadas, enquanto Trope registra, através de câmeras de orifício (pin hole) feitas com latas, a maquete do morro Pereirão montada pelos adolescentes que residem ali, ao lado das fotografias desses jovens realizadas entre eles, com o mesmo equipamento rudimentar.
Aura participativa
A aura ou a condição de excepcionalidade perdida pelo objeto artístico com o advento da reprodução técnica e da padronização, na concepção de Benjamin, é transferida ao público presente no processo de produção e de exibição das obras, segundo Bourriaud. O valor se completa pela interação das subjetividades de quem elabora e quem consome, testemunha, associa-se, co-produz, protagoniza o ato ou é hóspede de uma estrutura. Poder de decisão e presença corporal são elementos fundamentais nessa estratégia de emancipação da pluralidade e da comunicação. As microcomunidades reunidas pela arte delegam a ela seu halo. Na ausência do interesse coletivo pela literatura editada pelo Eloísa Cartonera, seu projeto não poderia sobreviver nos moldes atuais. Sem o uso de celulares pelos visitantes da Bienal, o bloqueador de sinal telefônico Fogo-Amigo (2006), do paulistano Marcelo Cidade, não surtiria efeito pelo simples fato de não ser percebido por ninguém. Os Novos Costumes (2006), da carioca Laura Lima, seriam apenas retalhos de vinil se não fossem vestidos pelas pessoas. Assim como, no passado, os Parangolés (1964-1980) de Hélio Oiticica e os Objetos Relacionais (1978-1985) de Lygia Clark apenas ganhavam sentido a partir da ação do observador-participante sobre sua materialidade.
Por sua vez, as instalações e as intervenções site-specific do argentino Tomas Saraceno (Cumulonimbus, air-port-city, 2006), do tailandês Rirkrit Tiravanija (Untitled 2006 - Palm Pavilion, 2006), do suíço Thomas Hirschhorn (Restore Now, 2006) e do coletivo japonês Atelier Bow-Wow (Monkey Way, 2006) operam como estruturas de experiência comportamental e de dilação do tempo para o público. O próprio mini-ateliê do Eloísa Cartonera pode ser compreendido dessa maneira, pelo poder de atração que exercia em sua qualidade de oficina aberta, onde compareciam anônimos e ilustres, como Hirschhorn. O artista suíço, atraído pelo uso comum do papelão em sua obra e no projeto portenho, conversou por vários minutos com Barilaro na noite de abertura da Bienal. Essa interação também se concretizou em trabalhos elaborados de antemão para a mostra, como o muro de combogós da gaúcha Lucia Koch e do mexicano Héctor Zamora (Uma Boa Ordem, 2006) e a publicação de um livro de contos da baiana Virginia de Medeiros pelo Eloísa Cartonera.
Enfim, deve-se comparar as práticas do grupo argentino com o "realismo operacional" proposto por Bourriaud. O conceito descreve a apresentação de uma esfera funcional em um arranjo estético sujeito à decodificação em estruturas variáveis, conformando-se em suas dimensões graças a sua virtualidade material. O paralelo com a imagem digital serve aqui para enfatizar a possibilidade de transferência e reprodução sem perda de qualidade ou autenticidade. A essa capacidade peregrina de remontagem do Eloísa Cartonera junta-se a flexibilização dos modelos tradicionais de licenciamento do trabalho intelectual. Suas edições xerocadas evocam os regulamentos da organização Creative Commons, que encorajam a distribuição e compartilhamento da informação sem a cobrança de custos exorbitantes para diversos níveis de utilização sem fins comerciais. O refrigerante Guaraná Power (2003-), produzido pelo coletivo dinamarquês Superflex em parceria com agricultores do Amazonas, é outro esforço de reapropriação comunitária ante o predomínio mundial de uma marca na comercialização de um produto cuja receita é de conhecimento público.
As embalagens e materiais de publicidade do Superflex imitam a programação visual da indústria Antártica, sobrepondo em rótulos quase idênticos aos dela o título Guaraná Power e a imagem dos fazendeiros membros da fundação fabricante de mesmo nome (www.guaranapower.org). As latas do refrigerante, que não foram expostas na Bienal devido a um desentendimento entre a instituição responsável pelo evento e os artistas, circularam por São Paulo com tarjas pretas que impediam a identificação de sua marca, em um protesto contra o que o trio de Copenhague considerou um episódio de censura. A estratégia nos recorda a série Inserções em Circuitos Ideolócos (1970-1971) do carioca Cildo Meireles, em que mensagens políticas eram difundidas em garrafas de Coca-Cola e cédulas de dinheiro. Como arremedo do sistema de mercadorias, podemos pensar na Mejor Vida Corp. (www.irational.org/mvc, 1998-2006), da mexicana Minerva Cuevas, uma "companhia" que distribui produtos e serviços gratuitamente pela internet. Entre eles estão tíquetes de metrô, carteiras de estudante, cartas de recomendação e adesivos com códigos de barras que dão desconto nos supermercados. A artista exibiu na Bienal o vídeo Donald McRonald (2003), registro de uma performance em que um ator vestido como o personagem da cadeia de restaurantes agia diante de uma de suas lojas em Paris, informando aos passantes os métodos de produção de alimentos, seus malefícios à saúde, as condições de trabalho dos empregados e os gastos com propaganda da empresa. Dados que refletem as relações sócio-econômicas de um dos símbolos mundiais do capitalismo por meio da ativação libertária das trocas entre o público, a artista e todo o ambiente urbano.
Daniel Hora é crítico de arte e jornalista.
novembro 23, 2006
Bienal ETC. - Psicologia da paisagem - Uma entrevista com Mauro Restiffe, por Henrique Oliveira
Da série Empossamento, obra de Mauro Restiffe
Bienal ETC.
Psicologia da paisagem - Uma entrevista com Mauro Restiffe
HENRIQUE OLIVEIRA
Quando fui convidado a escrever um texto sobre a Bienal de São Paulo, saí logo em busca dos trabalhos que me despertaram o interesse. Na condição de artista e pesquisador do campo da pintura, da cor, da matéria e de seus desdobramentos espaciais, não seria difícil encontrar uma obra ou mais, de onde pudesse tirar um substrato fértil capaz de inspirar uma madrugada sobre o teclado do computador.
No entanto, refletindo sobre o mote da exposição (Como Viver Junto), ocorreu-me a idéia de dar a esta frase uma aplicação prática. Decidi então que entrevistaria algum artista que estivesse completamente fora da minha área de interesse, buscando fazer dessa tarefa um verdadeiro exercício de como viver junto.
A partir daí, andando pelo Pavilhão, algumas das obras que decididamente não me chamaram a atenção foram as fotografias de Mauro Restiffe, principalmente as da série Mirante, que estão no terceiro piso. Contudo, a discrição das imagens classicamente emolduradas e penduradas na parede, o enquadramento direto, a banalidade das cenas retratadas - tudo isso me levou à iniciativa de tentar mergulhar um pouco no universo da fotografia em preto e branco e procurar compreender os interesses deste artista, seu ponto de vista sobre a arte e sua prática de fotógrafo.
Canal Contemporâneo - Sua produção inicial parece se diferenciar, pela presença de um conteúdo metalingüístico, das fotos que você apresenta na Bienal.
Mauro Restiffe - Elas trazem uma idéia da arte como um espelho na articulação e transposição de certas questões para o espaço. A idéia da janela dentro da janela.
Nesses trabalhos você fotografa a fotografia. O assunto é o quadro na parede do museu. Você parece interessado no lugar do objeto de arte.
Estou falando do olhar. Uma dessas fotos em questão (a foto de uma foto da artista Nan Goldin) pressupõe apenas um afastamento e o registro fotográfico. O assunto é um trabalho já pronto, mas eu procuro criar uma outra dimensão pelo prolongamento do espaço.
Nan Goldin, obra de Mauro Restiffe
Considerada fora do conjunto de sua obra, esta foto me levaria a pensar que você trata da mesma questão da Louise Lawler, uma problematização da idéia de autoria. Como você diferencia sua proposta da dela?
Minha intenção é criar uma janela, um espaço no qual se pode penetrar. Quando esta situação é tratada como assunto você passa a ter um novo espaço. É uma tentativa de expandir a obra - um objeto que recebe um enquadramento, que por sua vez também é enquadrado, e assim por diante.
Isso acontecia ao fotografar uma pintura, uma janela, um espelho. Um espaço dentro de outro espaço, dentro do espaço da criação da imagem. Até o ano 2002, esta questão era central no meu trabalho.
Uma vez eu fotografei as janelas do próprio espaço expositivo, ampliei-as no tamanho real e as inseri nos nichos de janelas idênticas que ficavam na parede oposta.
Nestas imagens que você está me mostrando, deste período anterior a 2002, eu vejo com clareza os assuntos enfocados e as estratégias utilizadas; mas e quanto às obras como as da série Mirante, que estão no terceiro piso da Bienal? Confesso que não entendi qual é a delas... Parece-me que há ali uma banalidade nas cenas retratadas, e que você busca esta situação. Não há nada que cative o espectador, a obra é bastante discreta.
Sempre naveguei entre o público e o privado. O museu, a rua, em oposição à cena íntima, doméstica. Muitas vezes procuro unificar estas duas polaridades, pois no final das contas elas são uma coisa só.
E de fato eu busco esta trivialidade, acho que o que marca nossa existência é esta vivência do dia-a-dia. Procuro captar ao máximo as vistas relacionadas a esse contexto. E a série Mirante se enquadra dentro desse procedimento.
Quando você coloca algo na parede da exposição ele já adquire automaticamente uma aura, mas ao mesmo tempo ele nasce de uma vivência muito mundana. Eu procuro unificar essa esfera da vida cotidiana ao universo da arte e espero que o espectador se relacione com o assunto.
Da série Mirante, obra de Mauro Restiffe
Da série Empossamento (no piso térreo da Bienal) eu vejo emergirem muitas possibilidades discursivas - a narrativa, a euforia do povo, a esperança representada pelo momento histórico... E nesse ponto elas parecem esbarrar no fotojornalismo. Você vê este trabalho como distinto dessa categoria? É importante pra você que exista esta distinção? Como ela se dá?
O primeiro ponto é como cada artista conduz a sua obra (esta é também a forma mais fácil de escapar desta pergunta). Eu particularmente trato a fotografia como um objeto, busco inseri-la no universo das artes plásticas de modo que dialogue com outras mídias. Foi uma opção minha. Voltando à sua pergunta, isto depende muito de como você define o seu trabalho. O meio do fotógrafo jornalista é o jornal, o meu é a própria fisicalidade da imagem e seus espaços de exibição - os museus, as galerias. Minha fotografia é pensada para estes espaços, ou seja, de uma maneira mais física, penso na escala.
Em termos de conteúdo, acho que estas imagens de Brasília (Empossamento) são, de certa forma, enigmáticas e até um pouco traiçoeiras, pois elas têm esse tom jornalístico, mas ao mesmo tempo tratam também de outras questões. Elas não são só registros de um fato histórico. Fui à Brasília pra fotografar este evento, sem a intenção de fazer um trabalho. Só queria ter estas imagens no meu arquivo para poder olhá-las daqui a 30 anos e relembrar. Elas foram muito inspiradas nas fotos do Thomaz Farkas (sobre a construção e a inauguração de Brasília), que não são aquelas imagens estereotipadas da cidade vazia. São trabalhos muito especiais em relação ao tratamento do tempo, do espaço e da memória. Eu estive na casa dele e vi aquelas fotos ao vivo, algo que me marcou muito.
Então minhas imagens de Brasília também resultam de uma dedicação a pontos que estão além do mero registro de um episódio político e público.
Da mesma forma, a série Mirante não é simplesmente o registro de algumas figuras na natureza. Pra mim o olhar é o mesmo, embora em Brasília o objeto seja um evento público.
Da série Empossamento, obra de Mauro Restiffe
Insistindo um pouco neste assunto, como é pra você imaginar alguma das suas fotos da posse do Lula na página da seção de política de um jornal? Ela se distinguiria do que chamamos de fotojornalismo?
Eu não teria problema algum com isso. Mas ela não seria fotojornalismo, a não ser que eu oferecesse pra algum jornal dizendo algo como "tenho aqui fotos do presidente Lula". Tudo depende do que você faz, de como contextualiza o seu trabalho. Se um fotojornalista resolve emoldurar uma foto e colocar na parede, aquilo vira arte? Depende de muitos fatores, a começar pelo que você considera arte. São termos muito vagos, discussões que não levam a nenhum lugar.
O Guy Tillim, por exemplo, que está na Bienal (piso térreo), é fotojornalista e no entanto também expõe como artista. E fica evidente no trabalho dele este olhar de um fotojornalista, o que não o desmerece em absoluto.
Fotografia da série Leopold e Mobutu, de Guy Tillim, em exposição na Bienal
Suas fotos, em geral parecem mostrar menos uma preocupação estética e mais uma articulação discursiva, ainda que apenas sugerindo narrativas ao invés de explicitá-las.
Certamente o conteúdo narrativo é mais importante, mas a estética não fica atrás - tudo o que eu disse sobre a presença física do objeto fotografia constitui uma preocupação na direção da qualidade, do apelo visual. Tudo isso funciona como um anteparo para uma afirmação da imagem. Privilegiar o discurso não implica necessariamente negligenciar a natureza de imagem do trabalho.
Do mesmo modo que é muito fácil fazer uma bela imagem, eu poderia estar explorando qualidades abjetas. Mas o que é o feio?
Eu procuro seduzir e envolver o espectador e fazer com que sua participação seja democrática. Tenho meu próprio vocabulário dentro da arte contemporânea, o que me dá uma certa segurança.
Por que você nunca usa cor?
A ausência da cor remete ao início da feitura da imagem, ao nascimento da narrativa por meio do desenho. Você já assume de antemão que está diante de uma representação e não de uma realidade.
Você acha possível enunciar verbalmente as linhas essenciais da sua obra, delimitar sinteticamente o escopo da sua pesquisa?
Desconsiderando os fatores estéticos, eu diria que procuro fazer com que estas imagens não fiquem apenas naquele plano aparente, na assimilação imediata daquilo que estou retratando, mas que revelem algo por trás, camadas onde aquilo que você vê não é garantido. Pra mim esta é a chave do trabalho.
De certa forma, a "não garantia" de que aquilo que você está vendo é realmente aquilo é uma característica de quase toda fotografia, pertence à natureza desse meio, não?
Sim, mas a questão é como lidar com isso, com o fato de que a partir do momento em que você captou a coisa ela já deixou de ser aquilo que era. O que eu procuro é explorar essa ambigüidade da fotografia.
Você produziu a série Mirante especialmente para ser exposta na Bienal? Como você vê o seu trabalho em relação ao tema "Como Viver Junto"?
Acho que a curadoria foi muito feliz na escolha do tema. Em particular, gostei muito porque vejo que ele se abre para muitas possibilidades.
O convite para participar da mostra veio depois que a Lisette Lagnado viu as fotos da série Mirante. Acredito que estas fotos dialogam bastante com o tema.
Embora as fotos do piso térreo (Brasília-Istambul) pareçam se adequar melhor ao recorte sócio-político que a mostra propõe...
Mas nesse sentido Mirante funciona também como uma pausa no ritmo da mostra - o tema do homem na natureza é reflexivo, dialoga com o tema dos banhistas, que é recorrente na história da arte.
A paisagem pura hoje já virou uma abstração. Nós já estamos tão imbuídos de estruturas feitas pelo homem que a própria natureza já virou uma abstração.
Vejo nestes trabalhos um tom renascentista, mas com um certo estranhamento. Algumas das figuras parecem não ter cabeça. As pegadas no primeiro plano trazem uma idéia de vestígio, interessa-me o que acontece na periferia destas imagens.
Assim como nas pinturas renascentistas, há em Mirante um núcleo temático no primeiro plano, mas há também outros códigos se desenvolvendo perifericamente. Transparece a idéia de comunicação entre os personagens, o que remete ao tema da Bienal.
Realmente elas remetem a algumas obras de Ticiano e de outros pintores do período. Mas, diferentemente de sua série sobre o Brooklin, em Nova York, Roebling & North 4th, que é carregada de mistério e chega a lembrar as pinturas metafísicas de Giogio De Chirico e Carlo Carrá, Mirante apresenta imagens muito simples, cenas bastante triviais. A impressão é de que você não está querendo cativar o espectador. São fotos em preto e branco bastante discretas que retratam cenas do cotidiano. Você não acha que elas tendem a se diluir em uma mostra gigantesca como a Bienal?
Mas o cotidiano de quem? Nós estamos tão mergulhados no contexto urbano que não sei se é possível falar em cotidiano ao se referir a estas imagens.
Digo cotidiano no sentido de algo prosaico, pois já me vi inúmeras vezes nesta situação. Você acha possível dizer que estas imagens representam uma pausa no ritmo urbano?
Não, creio que seria mais preciso dizer que se trata de uma interpretação psicológica da paisagem. As séries retratam sempre o mesmo lugar, seja o Brooklin, Taipei, Brasília ou o campo. E as figuras, quando aparecem, trazem sempre elementos propícios a uma abordagem psicológica. Enquanto na série do Brooklin uma imagem depende da outra para intensificar seu sentido, estas fotos permanecem mais autônomas - as figuras se conectam entre si e também com a paisagem.
Henrique Oliveira é artista plástico e tem sua produção focada na pintura e na relação do suporte pictórico com o espaço arquitetônico. É formado pela USP, onde atualmente desenvolve, com o apoio da Fapesp, mestrado na área de poéticas visuais. Em São Paulo, é representado pela Galeria Baró Cruz, onde realizou exposição individual no início deste ano. Participou recentemente das coletivas Paralela 2006 e Fiat Mostra Brasil, ambas no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
Mauro Restiffe é fotógrafo formado em cinema pela FAAP. Surgido na década de 90, é representado pela Galeria Casa Triângulo e participa no momento das Bienais de Taipei e de São Paulo.
Bienal ETC. - Sobre o boicote em massa à 27ª Bienal de São Paulo, convocado pelo artista e ativista indígena norte-americano Jimmie Durham
Caçada ao Unabomber (detalhe), instalação do artista sueco
Ola Pehrson na Bienal
Bienal ETC.
Sobre o boicote em massa à 27ª Bienal de São Paulo, convocado
pelo artista e ativista indígena norte-americano Jimmie Durham
RICKY SEABRA
Em janeiro deste ano recebi um spam de Jimmie Durham, artista e ativista indígena norte-americano (**), sobre a idéia de se boicotar a Bienal de São Paulo por causa do tratamento que os brasileiros dão aos índios (eu estava na Bélgica escrevendo uma peça sobre o império norte-americano. A peça que estreou na Europa em junho 2006 se chama Empire, Love to Love You, Baby, e deve estrear no Brasil em 2007).
Quando li a carta de Jimmie Durham eu tive confirmação da minha tese no espetáculo de que a força do império americano não é apenas econômica ou bélico-industrial. O império existe dentro de cada um dos 300 milhões de americanos; MESMO OS ESQUERDISTAS como o Jimmie Durham. O americano, mesmo esquerdista, acha que sabe o que é melhor para o mundo. E foi pensando nesta atitude (da qual também compartilho por ser metade americano) que eu quis criticar a proposta de Jimmie Durham de boicotar a Bienal de São Paulo.
Isto foi em janeiro. A minha resposta ao Durham foi publicada na revista inglesa Art Monthly em abril. Estamos em novembro e a Bienal taí. Um congresso americano democrata também taí. Mas apesar de ter votado na Hillary Clinton eu continuo achando que o partido democrata não representa os valores esquerdistas que ouvimos nos bares e faculdades norte-americanos. Uma Heloísa Helena (versão gringa) você até acha num bar ou num Berkley da vida. No congresso? Mas neeeeeeeemmm...
***
Uma resposta à brilhante idéia de Jimmie Durham de boicotar a Bienal de São Paulo
Prezado Sr. Durham,
Além da expressão "nossos índios", temos outra expressão aqui no Brazil: "A esquerda só se une na cadeia". Depois de 184 anos de governos de direita, o povo brasileiro finalmente elegeu um presidente de esquerda (infinitamente mais esquerdista do que qualquer candidato que o seu país seria capaz de produzir nos próximos 100 anos). E AGORA você acha apropriado igualar o Brasil com a África do Sul sob o apartheid para ajudar a sua causa. (E você diz que é no "espírito de solidariedade").
Ora. Obrigado por esse prego no caixão de um governo que luta pra sobreviver.
Se eu fosse um esquerdista paranóico eu diria que você é financiado pela CIA para tentar dividir um sentimento crescente de esquerda na América do Sul. Mas não sou um esquerdista paranóico. Só vejo você como mais um ativista egoísta que não consegue escolher taticamente a hora certa de agir sob seus próprios impulsos. E é por isso (de acordo com a expressão esquerdista que mencionei) que NÓS ESQUERDISTAS, historicamente, acabamos na cadeia mais que o pessoal da direita.
O seu plano de boicote não nos oferece nada. Nenhum nome, nenhuma agência. Nem ao menos identifica o rosto de alguém contra o qual uma torta seria bem-vinda. Só nos oferece uma oportunidade de fazer performance nas escadarias de uma bienal.
Já posso ver nas notícias esta primavera: ativistas e artistas, a maioria norte-americanos, viajando com fundos de seus mecenas ou bolsas NYFA. Transmissões na CNN e na Fox News (de um minuto no máximo) darão a impressão de que brasileiros odeiam índios (ponto) enquanto NENHUMA DAS DUAS emissoras mencionaria Guantanamo ou o Patriot Act. A sua cara estampada na capa da Art News, claro!
Como a esquerda americana tem sido tão inadequada a ponto de ter NENHUMA REPRESENTATIVIDADE no Congresso, você se vê no direito de forçar as suas idéias além de suas fronteiras, assim como o Bush faz com "liberdade". Curioso, não, Sr. Durham, como o oprimido imita o oppressor? Talvez o senhor deva reler o seu Paulo Freire.
O seu chamado "espírito de solidariedade" é destrutivo e as suas idéias sobre pessoas de uma cor pedindo desculpas para pessoas de outra cor são um tédio. Eu sou americano e brasileiro, parte português, parte índio marajó, parte negro, talvez um pouco de espanhol, holandês e irlandês, se cavar muito. Eu não espero que a minha bunda cabeluda de português peça desculpas para o meu rosto imberbe de índio. Nem permitiria de forma alguma que as minhas pernas cabeludas portuguesas peçam licença por estarem andando sobre terras mouras a próxima vez que forem a Lisboa.
Será que a nossa (agora falo como americano) criação judaica-cristã não nos contaminou com culpa o suficiente? Oy Vay!
Não, Sr. Durham. O senhor não estava na terra dos Guaranis quando você anunciou o seu brilhante boicote. O senhor estava na terra que já FOI dos Guaranis. O senhor estava no Brasil, queridinho. Um país com mais anos de independência que a Bélgica, Itália, Alemanha e outros países do Velho Mundo.
Você diz enfaticamente que NÓS é que "TEMOS que mudar agora!".
Ora, me poupe e (sem traducão em português): give the world a fuckin' break!
As pessoas que têm de mudar são a esquerda americana, com a sua retórica pedante e politicamente correta de como os outros devem se comportar e conduzir as suas vidas, o que só torna a esquerda cada vez mais imbecil, enquanto fortalece a direita.
Claro que índios brasileiros devem ter direitos, território, oportunidades e educação, mas a gente não precisa de reportagens de merda na mídia trivializando performances e distorcendo as suas mensagens em frases de efeito que vão igualar brasileiros a nazistas. Muitos brasileiros já trabalham com nações indígenas, enquanto milhares, se não milhões, lidam efetivamente com problemas sociais IGUALMENTE GIGANTES.
E, finalmente, transformando bienais de arte nos nossos campos de batalha (sou artista também) para a mídia transmitir faz tanto sentido quanto negros em South Central Los Angeles ou árabes em Paris queimarem a sua própria propriedade. É ativismo sem rumo, sem meta.
No lugar de boicotar a Bienal de São Paulo, talvez o POVO DO MUNDO deva boicotar a próxima Whitney Biennial em Nova York!
Por quê?
Por uma esquerda americana totalmente débil e ineficaz. Ah, e pela guerra ilegal no Iraque, com a qual a esquerda americana também não pode acabar.
Até nos vermos na cadeia, Sr. Durham.
Um abraço,
Ricky Seabra.
Ricky Seabra é dramaturgo e designer brasileiro-americano. Nasceu em Washington e cresceu em Brasília. É graduado em Comunicação Visual pela Parsons School of Design, em New York, com mestrado em pesquisa de Design pela Design Academy Eindhoven, na Holanda. Desde 2002 trabalha como artista residente do Kunsencentrum Nona, na Bélgica, produzindo espetáculos junto à coreógrafa carioca Andrea Jabor e o diretor belga Dirk Verstockt. Suas peças mais recentes são: Aviões e Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado, sobre o 11 de Setembro, apresentada em 20 cidades da Europa; Isadora.Orb - A Metáfora Final, que propõe levar artistas para a Estação Espacial Internacional; e Empire, Love to Love You Baby, um monólogo sobre uma imperatriz da América, que estreou na Bélgica em junho de 2006. Também faz parte do coletivo Zero Gravity Arts Conscortium que em 2007 pretende executar performances no avião de treino de astronautas da NASA, em zero gravidade simulada. www.rickyseabra.com
(**) As posições de Jimmie Durham, retomadas em fevereiro deste ano no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, podem ser lidas no site do Aboriginal Curatorial Collective (www.aboriginalcuratorialcollective.org/whats_on/news.html), sob o tópico Speech by Jimmie Durham in Brazil.
Bienal ETC.: As coisas vistas todos os dias, por Marcelo Rezende
Bienal ETC.
As coisas vistas todos os dias
MARCELO REZENDE
Cena de Parc Central (Brasília), de Dominique Gonzalez-Foerster
O que é afinal arte política? O que poder querer dizer neste momento o engajamento? A busca de uma resposta significa aceitar que toda forma de ação engajada necessita lidar hoje com o fenômeno da destruição e da perda, e não mais e apenas com a construção e a esperança utópica de um gesto, ao menos em sua inocente pretensão, transformador. Luto talvez seja a sensação mais presente nos trabalhos da francesa Dominique Gonzalez-Foerster, que nesta 27a Bienal de São Paulo apresenta uma obra para o pavilhão e o parque, uma verdadeira alteração da paisagem, alguns de seus espantosos filmes e, ainda, uma profunda reflexão sobre o homem, a história e a sociedade.
Luto é o sentimento provocado pela ausência do que se sabe irrecuperável, um estado no qual a memória se fortalece, ganha o domínio, se expande, toma o plano mental e emocional. A lembrança é única plataforma pela qual a mente em completo estado de perda, deriva, pode continuar em plena operação, em funcionamento, caminhando, prosseguindo, não abdicando do desejo de entender o que se passa.
Entender, aqui, não significa recuperar ou mesmo aceitar a perda. Significa lidar com sua existência fazendo a memória se confrontar com o mundo a partir de pequenos traços, lembranças que formam uma identidade fragmentada sempre flutuando entre a memória de uma história, agora, já perdida, e seu oposto perfeito, o mais completo esquecimento. Sem essa ação da memória o que resta é o vazio. O fim. Um fim.
Dominique Gonzalez-Foerster é uma artista com a extraordinária capacidade de registrar esse processo. Em seus filmes e em todas suas ações artísticas há uma oscilação entre o - aparentemente - nada, o banal, as coisas vistas todos os dias, e esses traços que explodem pela memória afetiva dos narradores de seus filmes, que se comunicam como as vozes dos romances de Marguerite Duras, assombrados por algo que precisam de alguma forma entender. Com ela, a narrativa pessoal encontra sempre um cenário, uma situação urbana, e a partir desse encontro uma cadeia de reações acontece durante essa exploração do mundo. A memória pessoal se mistura à memória da cultura e às pulsões da história; a lembrança de um indivíduo é o reflexo de uma experiência social, e o mesmo ocorre em direção contrária.
Cena de Parc Central (Paris), de Dominique Gonzalez-Foerster
Toda a ação social, partidária, imperativa e, em seu momento mais extremo, revolucionária, se confronta com esse mesmo jogo de possibilidades entre aquilo que foi sonhado e aquilo que é; entre aquilo que é em nome de um grupo ou apenas de um; entre o real e o apenas imaginado. Nessa situação de desvio e luto, o que "poderia ter sido" se transforma no território por onde a mente passeia. O luto político existe apenas como luto individual. A memória afetiva é uma questão política, e toda questão política tem início em um desejo único e pessoal. Dominique registra esses acontecimentos pela via do cinema - um feito com películas ou vídeo, e um outro, em tudo fantástico, "mental", realizado apenas com um cenário e o olhar do observador.
Mas seu cinema é rigorosamente político. Em suas imagens, a poética e a ética formam um único corpo. Para ela, a paisagem e a experiência do homem com essa mesma paisagem é o que realiza a arte. E, como se sabe, toda paisagem serve a um e a todos, no espaço e essencialmente no tempo. Assim, para Dominique não há mais fronteira entre experiência pessoal e coletiva, entre discurso político e experimentação formal; o luto de um é o de todos. Esse é seu gesto de engajamento: "Há duas maneiras de mostrar uma imagem. A imagem exposta enquanto tal não é mais imagem de nada, ela é ela mesma sem imagem. A única coisa da qual não podemos fazer uma imagem, é, por assim dizer, a imagem de uma imagem. O signo pode significar tudo, menos o fato de que ele está significando (...) Há duas maneiras de mostrar essa relação com o 'sem imagem', duas maneiras de fazer ver que não há mais nada a ver. Uma, é o pornô e a publicidade, que fazem como se houvesse sempre algo a ver; ainda as imagens atrás das imagens; a outra, deixa aparecer esse 'sem imagem', que é, como dizia Benjamin, o refúgio de toda imagem. É nessa diferença que reside toda ética e política do cinema" (1).
Cena de Parc Central (White Sands), de Dominique Gonzalez-Foerster
Nada
A presença (talvez essa a mais exata palavra para definir sua "participação") de Dominique Gonzalez-Foerster em São Paulo oferece a chance para uma pequena reflexão em torno das mais repetidas críticas em torno do projeto para a 27a Bienal. Dominique e sua obra podem ser estrategicamente colocadas em meio ao mais repetido discurso de oposição ao evento; na verdade, não se trata exatamente de discurso, e muito menos de uma crítica elaborada, mas de "impressões negativas" que, de diferentes formas, se dirigem para um mesmo lugar: haveria nos pavilhões da Bienal "muita política e pouca arte", em razão de uma espécie de discurso "bem intencionado" que deixaria de lado (ou afogaria em uma avalanche de posições engajadas) a liberdade e as ações poéticas dos artistas, todos - em teoria - subjugados pela ação de força de um projeto curatorial, este, submetido ao discurso "político" de um modelo próximo dos de organizações não governamentais. Não se trataria mais de uma Bienal de arte, e sim uma plataforma para ONGs dirigidas por artistas. A liberdade do artista como um "indivíduo" estaria morta, e assim sua "poética", sua "rebeldia natural" que não poderia condenar a arte à política. Ao menos no que o senso comum admite ser "a política".
Cena de Parc Central (Taipei), de Dominique Gonzalez-Foerster
Em Chronology, o crítico e curador Daniel Birnbaum, no pequeno ensaio Nothing, reflete sobre os trabalhos de Dominique Gonzalez-Foerster, invariavelmente a partir do ponto de vista de uma única palavra, ou conceito: atmosfera. DGF vive em uma série de atmosferas que carregam aqueles diante de suas instalações e filmes com diferentes sensações: "A partir desse carregado momento atmosférico surge sua arte, e trabalho após trabalho Gonzalez-Foerster procura capturar essas sensações únicas e tão evasivas que lhe faltam nomes, mas que são distintas o suficiente para serem lembradas durante a vida inteira".
Na série de filmes Parc Central, DGF viaja pelo Japão e Taiwan, passando por Buenos Aires, Paris, Rio de Janeiro e Brasília. Seu narrador é levado a esses lugares por desejos fluidos: a necessidade de entender a cena de um filme, a lembrança de uma passagem do passado que se encontra com o presente, sempre a necessidade de entender, capturar algo que escapa. São camadas de tempo e memória que se acumulam sobre uma alma - o que talvez seja uma porta de entrada para se aproximar da atração de DGF pela "tropicalidade", pela "modernidade tropical", que é a um só tempo uma história montada a partir de um sonho e um gesto politicamente transformador: a vontade de impor uma "outra modernidade" a fim de criar um espaço próprio, único, utópico, progressista e belíssimo. Seu narrador visita esses cenários, se banha na imagem de uma praia carioca ou na chuva em Taipei. E em todos esse lugares esse mesmo "nada", composto de "sensações únicas e tão evasivas que lhe faltam nomes, mas que são distintas o suficiente para serem lembradas durante a vida inteira".
Na instalação em torno das colunas da arquitetura de Oscar Niemeyer, em exibição na 27a Bienal, Playground Duplo (Pavilhão-Marquise), ela apresenta o que poderia ser visto como mais um filme da série Parc Central. Mas desta vez não há a película ou o vídeo, e o narrador é todo aquela que está diante das falsas colunas, mergulhado em uma atmosfera a um só tempo única e universal, no qual o concreto, a modernidade e o verde da vegetação são o "nada" pelo qual tudo acontece.
Vista da instalação Playground Duplo (Pavilhão-Marquise), de Dominique,
sob a marquise do Ibirapuera. Foto: Marcelo Rezende
Essas sensações sem nome ganham, ao longo de toda narrativa, diferentes formas, entre elas o luto provocado por um projeto moderno nunca efetivamente realizado, no qual o observador é ao mesmo tempo agente e vítima de uma destruição sem começo e sem fim, porque diferentes sociedades "periféricas" acreditaram ou foram levadas a acreditar ser possível fazer nascer uma civilização em tudo revolucionária, capaz de reinventar os códigos do mundo a partir de um olhar novo, sensual e modernamente selvagem.
Toda a ação de Dominique Gonzalez-Foerster é política. Todo seu discurso em torno das imagens é político, assim como sua ação de dar forma ao "sem imagem". Mas olhar seu trabalho, assim como toda a 27a Bienal, a partir de um regime de oposição entre a "liberdade" e o "engajamento", a "poética" e a "política" é recusar a aproximação entre estética e ética e se opor à existência, como afirma o filósofo Jacques Rancière, de um "inconsciente estético" capaz de dar forma à história e guiar os passos da cultura (logo, da política), em eterno diálogo e fricção com a sociedade.
Pensar a arte a partir dessas oposições significa a recusa em ver em André Breton e no surrealismo (um exemplo) um projeto politicamente revolucionário, uma transformação radical da sociedade; e, da mesma forma, acreditar serem as instalações de Thomas Hirschhorn apenas um apelo contra a guerra do Iraque, e não uma experiência radical sobre o desconforto, o visto e o ocultado, seria não apenas uma redução, mas uma perda.
Dominique Gonzalez-Foerster cria filmes sobre esse caos discursivo, sobre esses acertos e enganos, sobre ilusões e projeções do homem e da civilização. Sua arte é um diálogo com a perda, mas seu olhar - político - não deixa de acreditar, ainda, em um ganho possível.
(1) Agamben, Giorgio. Le cinéma de Guy Debord, em Image et Mémoire (Hoëbeke. Paris, 1998) volta ao texto
Marcelo Rezende é escritor e jornalista. É autor do romance Arno Schmidt (Planeta, 2005) e do ensaio Ciência do Sonho - A Imaginação Sem Fim do Diretor Michel Gondry (Alameda, 2005). Criou e dirige a coleção de ensaios Situações, cujo mais recente volume é Arte Agora! - Em Cinco Entrevistas, de Hans Ulrich Obrist.
Bienal ETC.: Farpas - Relatório de um fiscal, por Alberto Simon
BIENAL ETC.
Farpas: Relatório de um fiscal
ALBERTO SIMON
Foto: Alberto Simon
Dada a imensidão da Bienal, busquei uma constante que seja significativa da exposição inteira, uma vez que alguns exemplos dessa constante possam ser representativos do todo, sem que seja necessário falar de tudo.
De positivo, o fim das representações nacionais que torna possível uma autonomia curatorial, praxe em outras exposições, bienais ou não, no mundo inteiro, com uma ou outra exceção. O próximo passo seria se desvencilhar da obrigação de ter de se usar toda a extensão do pavilhão; a mostra se torna desnecessariamente grande demais e um tanto dispersa, o que tende a neutralizar a vantagem da autonomia curatorial, se é que concentração e consistência façam parte do projeto curatorial. E se por um lado essa autonomia possibilita um controle que abranja todos os aspectos da exposição, por outro lado senti um descuido por parte da curadoria que considero bastante problemático, e que deveria ser seriamente repensado, levando-se em conta que se trata de um componente estrutural que nessa bienal é fundamentalmente parte de sua concepção e programa.
Obra: 9 aros de arame farpado, de cerca de 1,5 m diâmetro cada, fixadas lado a lado ao longo de uma parede com uma distância de 0,5 m entre os aros, em altura constante, de Adel Abdessamed. Do texto na parede que identifica o artista e trata de esclarecer a obra: "O emprego do arame farpado na instalação escultórica Parede-Desenho se refere ao conceito de proteção das fronteiras, mais comumente conhecidas como lugares problemáticos. No entanto, o arame farpado é utilizado frequentemente na proteção do espaço privado no Brasil".
O "lugar problemático" é aquele que as artes plásticas ocupam no mundo atual, e se pode inferir por um pequeno apanhado dos textos que acompanham as obras - e que devem elucidar o público visitante da 27.Bienal de São Paulo, "como viver junto" - que o problema maior vem de dentro, uma vez que a inconsistência no tratamento dado ao espectador/leitor revela uma desorientação por parte dos realizadores quanto ao lugar desse 'lugar': se no texto acima, o pressuposto é que o visitante seja uma tábula rasa, já que se explica para que serve e onde o arame farpado é normalmente usado 'lá fora' (fora da bienal), já ali o visitante é tratado como 'iniciado': "O procedimento de apropriação de Marepe se origina no conceito de ready made duchampiano". Nesse caso, além do ready made, a suposição é que a marca 'Duchamp' seja reconhecível como 'Nestlé' ou 'Toyota', que o adjetivo 'duchampiano' faça parte do coloquial assim como os possíveis derivados 'mondrianesco', 'picassóide' ou 'matíssico' (só para ficar na categoria marcas famosas do século XX e não misturar laranjas com bananas). Já o conceito de 'conceito' (de proteção de fronteiras, de ready made) é usado indiscriminadamente para tudo, como se fosse ketchup. O "lugar problemático" se auto-mapeia usando uma cartografia não diferenciada, na qual a asserção é de que esse lugar está por toda parte.
Houve um esforço tremendo por parte da curadoria para acabar de vez com a percepção generalizada e estereotipada de que o/a artista plástico/a é um ser que vive trancafiado num atelier pintando, esculpindo ou bordando as bellas-artes a serem consumidas por um punhado de gente endinheirada e que 'sim, a realidade não nos é alheia, temos uma participação ativa e decisiva no desenrolar dos acontecimentos de um mundo cheio de problemas'. A irrelevância das artes plásticas no desenrolar dos acontecimentos do mundo atual é negada, se não com unhas e dentes, então com ferramentas discursivas de legitimização que contém os vícios e cacoetes da indústria publicitária de antes do tempo em que se criaram os órgãos reguladores de proteção ao consumidor. Se existe o órgão regulador que torna mais difícil que se encontre escrito numa bula que o medicamento 'X' contém ingredientes que sejam 'eficazes no tratamento da prisão de ventre, diarréia, úlcera, gastrite e reumatismo, assim como nos males da bexiga, dos olhos e dos nervos', não existe um órgão semelhante que verifique o discurso promocional que serve de bula ou de instruções de uso para o visitante da bienal. Aqui alguns exemplos:
"O trabalho de Antal Lakner enfoca questões globais que abrangem desde a ecologia até o transporte urbano e os ambientes de trabalho. Encravados na realidade, os irônicos e inovadores produtos criados pelo artista fazem um uso subversivo dos meios empregados pelas estruturas sociais, econômicas e artísticas."
Sobre a obra de Lars Ramberg: " com a finalidade de enfatizar as profundas implicações sociais e políticas, obscurecidas pelos contextos oficiais da informação e da comunicação pública."
Em Segurança de Jane Alexander, "a artista aborda algumas questões preocupantes, comuns ao Brasil e África do Sul, tais como deslocamentos, a segurança, a disparidade econômica, a violência e o desemprego".
A obra de Abdessamed "questiona os limites sociais, políticos e culturais tanto nas sociedades muçulmanas quanto nas ocidentais".
Ou seja, a obra em si não passa de um ícone, que uma vez clicado (via texto) inicia um programa que é capaz de tudo, contém tudo e abrange tudo (vale dizer que esse software tem algo em comum com o carnaval: a obra-carro-alegórico desfila cantarolando o texto-samba-enredo). O fotógrafo não fotografa, mas "investiga as condições de vida de pessoas que deixaram suas casas e chegaram em lugares estrangeiros" (Ahlam Shibli, da série Mercado, 2005).
A legenda também já condiciona o humor do visitante, para evitar qualquer margem de erro de interpretação. Sobre Monica Bonvicini: "Com bom humor e sátira, a artista ataca as estruturas ocultas do poder construídas por uma cultura heterosexual machista" (Isso é uma piada! HA!). O artista é necessariamente versado nas diversas disciplinas das ciências humanas, e naturalmente afinado ideologicamente com a curadoria.
Olhar criticamente a realidade é monopólio da exposição, ao visitante só é deixada a possibilidade de gostar ou não da obra, mas não de observar criticamente a idoneidade ideológica ou intenção 'artística'. Há duas semanas foi publicada na revista de domingo do New York Times uma entrevista com John Ashcroft, até há pouco tempo ministro da justiça da administração George W. Bush. Evangélico, reacionário, próximo à extrema-direita e nada popular, Ashcroft deixou o cargo e agora é lobbysta em Washington. Aqui a parte final da entrevista:
NYT: Além de escrever canções, você também experimenta um pouco com as artes visuais. Que tipo de trabalho você faz?
J.A.: Eu faço esculturas de arame farpado.
NYT: Por que arame farpado?
J.A.: Porque estava sobrando na minha fazenda.
NYT: Bom, obrigado pelo tempo colocado à disposição para essa entrevista.
J.A.: Eu só espero que conhecendo pessoas, elas entenderão que eu não sou tão ruim quanto elas pensavam que eu fosse.
O video "A Árvore de Andrômeda (Uma Declaração) da artista israelense Yael Bartana tematiza o 'lugar problemático' Oriente Médio. Do texto: "A câmera segue o protagonista, que substitui uma bandeira israelense que está instalada no porto de Jaffa por uma oliveira". Nesse caso só a descrição da estorinha, aqui se espera que a 'mensagem de paz' esteja sub-entendida, sem bom humor nem sátira. (Que estilisticamente a qualidade do video seja o equivalente à uma novela mexicana - a câmera é lenta -, e que um problema complexo como o oriente médio mereça esse tratamento simplório e kitsch, bom, isso é problema meu).
A criançada gosta de brincar de casinha, mas chegou a hora de brincar de escolinha. A substituição do valor subjetivo (e comercial) das 'bellas-artes' pelo valor objetivo da educação (moral e cívica) é posta em prática por um processo de 'alfabetização' do público, mas não fica claro se o alfabeto é fonético ou se é um sistema ideográfico: às vezes um 'A' é definido como um símbolo que tem o som de 'a' e que combinado com o símbolo 'B' forma 'ba'; outras vezes o 'A' é descrito como um triângulo com duas perninhas e que aponta para cima e representa isso ou aquilo e contém implicações profundas que abrangem de A à Z (aponta para o céu? implica paz na terra aos artistas/curadores de boa vontade?)
O "lugar problemático", o situar e inserir a arte contemporânea no mundo contemporâneo seria um empreendimento mais frutífero se fosse reconhecido menos como 'lugar' e mais como 'não-lugar'. Um não-lugar constituido de incertezas artísticas (farpas de Abdessamed versus farpas de Ashcroft: who cares?), mas reconhecível e mapeável pelas relações de poder, influências e hierarquias que delineam esse não-lugar (leia: o conglomerado multinacional 'arte contemporânea', como qualquer outro, é também regido por interesses econômicos, conflitos de interesse, de ideologia, por vaidades, preferências, consultorias, egos, acasos, amores, traições, ilusões, intenções, especulações, acertos, equívocos, preconceitos, gatos e lebres, etc ). Se operasse abertamente a partir do não-lugar (de um paraiso fiscal?), a proposta de 'como vender o peixe' estaria bem mais próxima do seu propósito: a arte de viver junto.
Alberto Simon é artista plástico e vive em Berlim, onde se formou pela Universidade das Artes (UdK) em 1990. Nasceu em São Paulo em 1961. Em 2006 fez uma residência de dois meses em São Paulo, na EXO, a convite do Instituto Goethe, quando também realizou uma mostra individual na Galeria Baró-Cruz. Participou também da Paralela 2006.
novembro 14, 2006
Bienal ETC.: Bienong - Ou como viver junto do jeito que eu quero, por Rafael Campos Rocha
Detalhe da instalação Restore Now, de
Thomas Hirschhorn, na Bienal de São Paulo
Bienal ETC.
Bienong - Ou como viver junto do jeito que eu quero
RAFAEL CAMPOS ROCHA
A história nunca se repete, como se sabe, senão como farsa. As lutas das gerações anteriores pela Liberdade podem transformar-se em rótulos para colar em qualquer iniciativa pecuniária, podendo conseguir até mesmo a benemerência do Estado, se essas lutas se mostrarem, evidentemente, incapazes de reais modificações na estrutura social. A forma mais comum de farsa é a descontextualização e a retomada estética da História. Roland Barthes (cujo slogan faz às vezes de "tema" da Bienal) faz parte da geração de pensadores que viu o projeto socialista, amparado pela teoria marxista da história, transformar-se no pesadelo da burocracia estatal soviética e da selvageria stalinista. E é dentro desse contexto histórico que a própria História passa a ser vilipendiada como mais um discurso, uma narrativa comprometida - como todas as outras teleologias religiosas e ideológicas - com a dominação do homem pelo homem. Desconstruir essas narrativas, colocando-as no estatuto da linguagem convencionada, seria uma forma de desmistificá-las, tirando-lhes o poder de cercear, coibir, vigiar, atribuir punições. Entretanto, mesmo o estruturalismo agora faz parte da História, podendo transformar-se, ironicamente, em um discurso legitimador, como o da alienação política, para citar somente um exemplo.
Uma outra forma de farsa é transformar uma idéia política em um estilo, ou uma tendência, como dizem na Moda, com o fim de criar uma determinada demanda. É bem o caso da nova politização da arte internacional, com a sua cafetinagem das minorias e das lutas políticas em benefício próprio, transformando eventos como a Bienal de São Paulo em uma verdadeira "Bienong".
Nem todos os artistas, evidentemente, perseguem a aceitação irrestrita no jogo de aparências do métier, ou pelo menos não se comprometem inteiramente com os discursos curatoriais da moda. Ficam ali esperando a sua vez, fazendo o seu trabalho e esperando a maré favorável. Trabalhos como o de Thomas Hirschhorn, tão comprometidos com a teleologia da Liberdade do Indivíduo, tal como é apregoada no bom e velho anarquismo, são realmente um incômodo para a frivolidade do discurso do jornalismo cultural. Seu desinteresse pela instância institucional da arte reflete-se tanto em sua obra quanto em seus textos e entrevistas, como a concedida para o guia da 27ª Bienal de São Paulo. Independência, cabe notar, devidamente humilhada pela entrevistadora-curadora. Afinal, quem esses artistas pensam que são? A exposição de arte do futuro prescindirá dos obsoletos artistas-criadores, podendo se resumir aos realizadores de propostas, que por sua vez serão resultado de pesquisas de marketing.
Detalhe da instalação Restore Now, de Thomas Hirschhorn, na Bienal de São Paulo
De qualquer forma, a obra de Hirschhorn na Bienal de São Paulo deixou a desejar. Sua compartimentação por demais esquemática tirou a liberdade de fruição do observador, que sente-se, em suas melhores obras, como o participante entusiasmado de um carnaval anarquista, em que todas as máscaras sociais são cambiáveis, e toda a autoridade, inclusive a estética, se liquefaz na indiferenciação. Muito de sua opção por uma espacialização mais racional da presente obra é - como acontece com os grandes artistas - proposital. E segue o seu apelo por um novo racionalismo humanista contra a barbárie da guerra. Infelizmente, não é papel do crítico julgar as intenções, por mais simpáticas que sejam. A sua célebre formalização mínima, que se aparenta com a estética da feira de ciências do ginasial dá lugar à abordagem realmente monumental, tão contrária à singeleza do melhor Thomas Hirschhorn, tanto em sua mensagem verdadeira quanto em sua busca de um "conteúdo como ação política" (Rosalind Krauss sobre Bertolt Brecht). Sua visão é mesmo contrária à da monumentalização do tipo institucional, aparentada, assim, com a monumentalização carnavalesca, no sentido baktiniano de paródia e esculhambação dos sentimentos de classe e outros esnobismos congêneres. Sua atitude de particularidade do discurso artístico é, ela mesma, uma sentença contra as sofisticações do discurso contemporâneo que não correspondem, em absoluto, com a melhoria da vida de ninguém ou com um real desvelamento da Realidade.
O caso de Renata Lucas é ainda mais complicado para a estrutura esquemática do evento, e mesmo para o aparato técnico deste crítico. Já na sua obra no prédio da Bienal fica evidente, pela localização e apresentação discreta, quase marginal, uma tentativa de distanciamento do discurso corrente da mostra, ou melhor, do tipo de enquadramento a que foram submetidos os artistas, com as baias (não salas) de exposição levemente misturadas, como nas pseudo-teorias de gerência e marketing, sempre propondo alguma nova forma de diálogo controlado entre as seções do ambiente de trabalho. Se estou certo sobre esse distanciamento, e sobre o conteúdo fantástico (fantasioso mesmo) da obra, Renata Lucas defende uma subjetivização da situação arquitetônica, mesmo que partindo dos elementos concretos dessa situação, tanto em suas obras em ambiente fechados quanto em suas intervenções urbanas mais grandiosas. O que vemos então é um enriquecimento do Fenômeno por meio da Imaginação que não o nega (como o surrealismo) e tampouco o destitui de Sentido, como nas vertentes minimalistas. Esse enriquecimento vem na forma de camadas transparentes de significados sobrepondo-se ao Fenômeno, sem no entanto sequer nublá-lo, como na duplicação dos postes e árvores no bairro da Barra Funda, com uma calçada sobre a outra, que só se revela pelo ligeiro deslocamento físico causado tanto pela duplicação quanto pelo fato de que dois postes não ocupam o mesmo lugar no espaço. Criamos então uma relação dialética com a imagem que, de certa forma, a nega (já que permanece o Fenômeno anterior, em toda a sua força), mas que a reforça como possibilidade para o Real, em uma posição de fé (no sentido religioso mesmo) na força modificadora da Arte. Essa força modificadora, entretanto, nada tem de revisionista ou a-histórica, já que nega uma concepção antropomórfica de uma consciência capaz de modificar o mundo pela realização de uma imagem pré-concebida, como podemos aprender com a história do minimalismo americano.
Constitui-se, então, uma espécie de diálogo, algo antagônico, entre uma concepção e um mundo de voz própria, sempre indiferente, quando não abertamente avesso, à Vontade e à Visão. Dessa forma, imagem e espaço concreto coabitam a ponto de embaçar os limites da intervenção do artista, evitando, ao mesmo tempo, o naturalismo hiper-realista, ou a brincadeira cultural da meta-linguagem. Nesse sentido, Lucas trabalha com contra-imagens (se considerarmos a imagem um produto da consciência por excelência) que demonstrariam essa vontade surda do mundo, que só pode ser pressentida em atrito com a vontade do artista - que por sua vez não pode criar uma imagem que se sobreponha ao Lugar e emudeça essa Voz. Por isso o espaço dado não é para Renata Lucas somente cenário para a sua intervenção. Ele é o corpo carregado do conteúdo, cujo trabalho da consciência é o de revelar, e assim revelar a si mesma como parte do mundo, e não apartada dele. Sua obra, nesse sentido, parece mesmo anterior ao Símbolo, com sua carga histórica de efetividade linguística, aproximando-se por isso do misticismo propiciatório, cujo conteúdo não precisa corresponder a uma visualidade específica, ou mesmo a qualquer visualidade.
As alternativas de convívio baseadas em afinidades psicológicas e eletivas autênticas, e não obedecendo a um projeto "totalizador" poderiam ser o "tema" da obra de Tacita Dean, para encaixá-la nessa versão da Bienal se, evidentemente, afinidades subjetivas e estéticas fossem de interesse da curadoria. O espaço negro da projeção, tão próximo ao erotismo claustrofóbico dos sonhos, parece partilhar desse espaço de relações totalmente subjetivas que um dia foi domínio da arte. O seu filme, ambientado no antigo estúdio de Broodthaers, nada tem do tom laudatório das citações de arte, não se constituindo sequer em um comentário. Ela se sente próxima ao artista por razões de arte, em que a ética - felizmente - não tem lugar. A relação erótica e amalucada do fã (como Hirschhorn defende como a autêntica posição do artista na cultura) permeia toda a filmagem de um espaço morto habitado somente pela fantasia tesuda e voyeurística da câmera. Também o espectador não vê outra saída do que manter uma relação paranóica de desejo (ou repulsa) com a obra, resultando, de qualquer forma, em uma experiência autêntica, porque não é balizada por qualquer modelo racionalista de sociabilidade.
Essa independência pode ser vista também em três vídeos de excepcional qualidade do jovem Marcellvs, em que personagens mergulhados em um abismo zen parecem exercer atividades eternas, totalmente desligadas do andamento do mundo. Da mesma forma, parece requerir um espaço psicológico de alheamento, ou pelo menos de deslocamento, de um projeto de civilidade imposto de cima para baixo. Eles não são, por que sua função nessa sociedade parece não ser verificável, mas ao mesmo tempo eles estão lá. O que fazer com um mundo que continua existindo por fora do comando do racionalismo? Um existir inexorável, em sua marcha de continuidade. Nem mesmo o "lance" (uma sacada do tipo publicitária) infeliz do primeiro andar e a declaração poética do artista para o catálogo são capazes de estragar o despojamento grandioso dos filmes do segundo pavimento.
Um frame do vídeo de Marcellvs, enchendo.vazando
Até mesmo trabalhos aparentemente mais engajados na realidade urbana, como o maravilhoso filme de Shaun Gladwell, não procuram criar um discurso que dê um sentido racional para a experiência do dia-a-dia. O skatista que enfrenta a natureza à distância retoma o tema maior do romantismo histórico: o da pequenez do Homem frente à imensidão da Natureza. Mesmo sabendo que esse tema tem a sua determinação histórica - a do fim do humanismo cristão e do início do cientificismo - o que Gladwell retoma é a "estrutura de sentimento" da pintura romântica, atualizando-a como sendo um sentimento ainda contingente, e não teórico. Não é porque conhecemos a verdade científica, sei lá, sobre as precipitações atmosféricas no Oceano, que precisamos abrir mão de um sentimento com relação ao Objeto. É esse mergulho na contingência em busca da especificidade do sentimento, e não da generalidade da teoria, que artistas como Gladwell buscam. É evidente que a arte, ou um determinado sentimento romântico sobre a natureza, não são valores universais, porque valores universais não existem! Do mesmo modo a democracia, a civilização e a cultura são opções, não destinos. A arte está dentro, e é menor que a cultura a que pertence e sua contingência histórica. E não foi o estruturalismo, Duchamp ou a crítica pós-moderna a descobrir isso.
Em um sentido oposto ao de Gladwell, Ann Lislegaard "discute" o convívio urbano por meio de uma aproximação que eu diria anti-linguística, por se tratar justamente de uma imanência da linguagem. Se o estruturalismo é capaz de mostrar o aspecto convencional e repressor da linguagem, Lislegaard, ao desconstruí-la, parece manter uma coesão invisível entre o dizer e o existir que - mesmo que à revelia da artista - continua sendo uma crença em um Sentido que mantém atadas as partes do Fenômeno. Ou seja, se a cidade e o espaço são um construto, seu desmembramento visa o seu fortalecimento por meio da consciência, não a denúncia de sua vacuidade. De resto, sua aproximação com Ballard e com o fim do sonho de coletividade urbana tem o mesmo enfoque já defendido por mim no caso de Tacita Dean - e que Hirschhorn, com a sua teoria do fã, deixou-nos pouco a dizer.
Por fim, a potência visual das fotos de Pieter Hugo deve-se, para o alívio geral da curadoria, à força de seu Referente (a única coisa capaz de manter esse crítico interessado em uma foto, frente à mesmice de sua visualidade). Mas a capacidade de vermos, naqueles africanos em farrapos de roupas norte-americanas, uma distopia do tipo Mad Max, não pode ser antevista por sua coerência a um programa social. O mérito de Pieter Hugo está no espetacular do assunto - e esse mérito não é menor que o de Tacita Dean em criar um assunto a partir de suas associações imaginárias, mas também não é maior ou veio para substituí-lo. Uma forma de se fazer arte não necessariamente elimina a outra, mesmo tendo em vista o exemplo historicamente gêmeo da Moda, com as suas tendências que se revezam como modo de manter o desejo de consumo sempre renovado. Além do mais, se a Moda fosse tão interessante quanto ela diz que é, não teria que mudar de discurso a cada três meses.
Rafael Campos Rocha nasceu em 1970, em São Paulo, onde completou o ginásio de forma lícita. Atualmente ministra cursos de história da arte em lugares como o Instituto Tomie Ohtake e o Sesc Pinheiros, e expõe eventualmente como artista plástico em seu próprio ateliê.
Bienal ETC.: Pieter Hugo e a fotografia que nos olha, por Heloisa Espada
Bienal ETC.
Pieter Hugo e a fotografia que nos olha
HELOISA ESPADA
É curioso notar que, após décadas de discussões sobre a arbitrariedade do código fotográfico e num momento em que, mais do que nunca, a tecnologia digital põe em xeque a veracidade da fotografia, ela se faça presente na arte contemporânea sobretudo pelo viés documental. A maior parte dos ensaios exibidos na 27ª Bienal são fotorreportagens enfocando conflitos bélicos e tensões culturais em diferentes regiões do globo. O operador da câmera escolhe o assunto e o ponto de vista, mas, como era no século XIX, a imagem parece ser considerada, em primeiro lugar, como um registro inequívoco da realidade. Na série Leopoldo e Mobutu (1997-2004), de Guy Tillin, por exemplo, vemos os vestígios da guerra e aprendemos sobre o presente catastrófico da República do Congo antes de nos darmos conta das escolhas estéticas do fotógrafo, embora elas estejam ali e contribuam para a eficácia da mensagem.
No entanto, não seria legítimo questionar, mais uma vez, se essas fotos nos aproximam efetivamente das situações que explicitam? Nos anos 1970, a ensaísta norte-americana Susan Sontag defendia a idéia de que o bombardeio de imagens trágicas pela mídia levava à apatia. Cerca de 30 anos depois, no livro Diante da Dor dos Outros, contestou a si mesma argumentando que a fotografia não pode ser culpada pela indiferença dos indivíduos às calamidades sociais. Para Sontag, mesmo sem o intermédio das imagens técnicas, a própria atitude de olhar para o outro pressupõe um distanciamento que dificulta a empatia. Ela conclui que ver o sofrimento do outro, por mais próximo que esteja, nunca será o mesmo que senti-lo na pele. Por isso, o potencial de mudança proporcionado pela fotografia de denúncia é exíguo.
Os retratos do artista sul-africano Pieter Hugo em cartaz na 27ª Bienal abalam a atitude distanciada e contemplativa do espectador em relação à imagem fotográfica. Seus trabalhos enfocam quase sempre países africanos e, principalmente, a África do Sul, onde vive. De imediato, chamam a atenção pela abordagem frontal e pela postura imponente e desafiadora dos sujeitos fotografados. A seqüência Os Homens Hiena da Nigéria (2005) registra um grupo de artistas itinerantes juntamente com os animais exibidos em shows: hienas, macacos, cães e cobras. Juízes, Botsuana (2005) mostra magistrados da suprema corte de Botsuwana. Musina (2006) retrata os habitantes de Musina, uma pequena cidade sul-africana que faz fronteira com o Zimbábue.
No livro A Câmera Clara, o semiólogo francês Roland Barthes, um dos "pilares" conceituais da Bienal, afirma que, sempre que se via observado por uma câmera fotográfica, imediatamente todo seu corpo se transformava em imagem. Para ele, era impossível ignorar a lente e, por isso, a pose implicava numa encenação inevitável. Nos retratos de Pieter Hugo, tanto o fotógrafo quanto os fotografados parecem conscientes do caráter "performático" do retrato e causam a impressão de que a construção do significado das imagens provém da negociação entre eles. Em entrevista publicada no Guia da 27ª Bienal, o próprio Hugo ressalta que o processo de se aproximar das pessoas e pedir permissão para fotografá-las é um dos aspectos mais importantes de seu trabalho. Ele afirma que sua condição de homem branco na África muitas vezes o leva a ser observado criticamente pelas pessoas que fotografa. A relação estabelecida parece ser de troca e não de dominação. Ele olha e é olhado. Em conseqüência disso, o impacto causado pela autonomia dos sujeitos retratados levanta questões sobre a autoria do trabalho fotográfico: de quem é a foto? do retratista ou do retratado?
Na série Os Homens Hiena da Nigéria, há uma incômoda proximidade entre homens e animais enfatizada pela aridez dos ambientes e pelo tratamento quase monocromático aplicado às imagens. Como se fizessem parte de uma mesma natureza, os homens, os animais e a vegetação apresentam quase uma única tonalidade sépia. Suas roupas, estrangeiras ou tipicamente locais, têm um colorido opaco, mas, ainda assim, se destacam nas cenas. Os homens olham com firmeza para a câmera enquanto os animais parecem alheios. O mal-estar aumenta nas situações em que os macacos estão vestidos com o mesmo tipo de malha que os homens, o que dá aos bichos o aspecto de brinquedos inanimados. Mesmo as cobras e as hienas vestindo focinheiras aparecem junto das pessoas como se fossem animais de estimação.
Os nigerianos não têm casa e esse é o primeiro contraste entre eles e a população de Musina. Lá as famílias foram fotografadas em suas casas, junto de pequenos animais domésticos. Hugo mais uma vez dá espaço para que os sujeitos se apresentem como desejam, o que quase sempre, à revelia do naturalismo técnico, confere um caráter artificial e ao mesmo tempo revelador à imagem. Enquanto os artistas mambembes são altivos junto de seus bichos assustadores, os sul-africanos brancos aparecem submissos à câmera, em poses excessivamente rígidas.
As imagens de juízes de Botsuwana lembram retratos renascentistas. Hugo enfatiza o olhar inquiridor e a autoridade dos magistrados enquadrando-os como se fossem bustos romanos em frente de um fundo preto. Ao olhar para a fotografia, o espectador se sente também observado por ela. Se A honorável juíza Julia Sakardie-Mensah avalia a atitude do fotógrafo que vai captar sua aparência, por extensão, questiona também o interesse do observador por ela. Nas fotos de Hugo, "o outro" não é um mero objeto de curiosidade, tampouco alguém pelo qual devemos sentir pena, mas um agente que interfere na maneira como nos relacionamos com a imagem. A densidade da obra não está apenas no apelo social do assunto (o que caracteriza boa parte dos trabalhos da Bienal, diga-se de passagem), mas na maneira como o próprio referente se comporta e em como o fotógrafo nos mostra isso.
Heloisa Espada é Mestre em História da Arte pela Universidade de São Paulo. Integra o Grupo de Críticos do Centro Universitário MariAntonia e o Centro de Pesquisa em Arte & Fotografia da ECA/USP. É redatora da Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais.
Bienal ETC. Por uma inserção crítica e plural, por Fernando Oliva
Bienal ETC. - Por uma inserção crítica e plural
Projeto on-line lança ensaios inéditos de críticos, artistas e escritores, convocando os leitores à participação, na tentativa de adensar o debate em torno da 27ª Bienal de São Paulo.
Com o intuito de lançar um olhar crítico e abrangente em direção à 27ª edição da Bienal de São Paulo, o Canal Contemporâneo concebeu o Bienal ETC., projeto on-line interativo que se dispõe, por meio de uma série de ensaios inéditos, a dar início a um debate aberto sobre os significados da megaexposição, as inserções que ela efetivamente promoveu no tecido cultural da cidade e do país, e sua relação com o universo da arte no Brasil e no mundo.
Após um mês e meio da abertura ao público de sua "seção expositiva", e a um mês de seu encerramento, parece ser este o momento ideal para se tomar distância crítica e procurar adensar as discussões, na direção oposta à das críticas apressadas, do mero opinismo e dos comentários de bastidor.
Uma vez que estamos falando de um evento de dimensões gigantescas (são mais de cem artistas, ocupando uma área 25 mil metros quadrados a ser percorrida), é possível inventar uma Bienal diferente a cada visita ao Pavilhão. Neste sentido, o Bienal ETC. fez escolhas temáticas pontuais, buscando recortes conceituais que dessem conta da complexidade de um projeto cultural que buscou articular as obras de arte expostas com seis seminários, quatro publicações impressas e o pensamento de Roland Barthes, Marcel Broodthaers e Helio Oiticica, além de Gordon Matta-Clark, Nicolas Bourriaud e Renata Salecl, entre outros.
A escolha do curador por meio de apresentação de proposta e concurso, sistema mais profissional e transparente; a extensão do evento para todo um ano de seminários, no lugar de uma exposição pontual de apenas dois meses; a presença de residentes estrangeiros no Acre, Pernambuco e São Paulo; um colegiado de curadores trabalhando em conjunto com uma curadoria-geral; o deslocamento de artistas e arte-educadores à periferia da cidade; a Quinzena de Filmes; a autonomia curatorial reafirmada com o fim das representações nacionais. É incontornável o fato de que esta edição da Bienal conseguiu promover transformações profundas e necessárias - de certa forma traumáticas - em uma estrutura que se mantinha praticamente inalterada há mais de 50 anos. É necessário agora refletir não apenas sobre o significado destas mudanças, mas também sobre o papel de uma bienal brasileira no momento em que as bienais se transformam em eventos-instituições globais (e 33 novas bienais foram criadas nos últimos 10 anos, especialmente em regiões consideradas culturalmente periféricas), lutando por inserção e ressonância internacional, sob o risco de sucumbirem sob o ostracismo e o isolamento.
Os ensaios serão publicados na seção Arte em Circulação, periodicamente a cada semana. Entre os ensaístas do Bienal ETC., leremos textos da crítica e pesquisadora Heloisa Espada (que se detém sobre a questão da fotografia e do documental na exposição, particularmente as imagens do sul-africano Pieter Hugo, um dos trabalhos mais está chamando atenção do público); da professora de antropologia e estética na PUC-SP, atuando em uma perspectiva transdisciplinar (literatura e artes plásticas), e estudiosa de Roland Barthes, Mariza Werneck (que promete acabar com os mal-entendidos em torno do conceito de "viver-junto"); do escritor Marcelo Rezende (que analisa a obra de Dominique Gonzalez-Foerster e se pergunta: afinal, onde está o moderno?); do crítico e jornalista Daniel Hora (que, à luz dos problemas levantados por Nicolas Bourriaud e Claire Bishop, escreve sobre a arte colaborativa de ações como Eloisa Cartonera e Taller Popular de Serigrafia); além das visões de cunho pessoal dos artistas Carla Zaccagnini, Henrique Oliveira (que entrevista Mauro Restiffe), Rafael Campos Rocha (criador do termo "Bienong"), Ricky Seabra (que publica carta dirigida ao ativista Jimmie Durham) e Alberto Simon.
A coordenação editorial do Bienal ETC. é do crítico Fernando Oliva, colaborador das revistas Lapiz, Contemporary e C, e que escreve sobre a obra da artista holandesa Barbara Visser e suas relações com o conceito de modernismo na arquitetura e no design; sobre a atuação da artista espanhola Lara Almarcegui nos vazios de São Paulo; e sobre a experiência da canadense Susan Turcot no Acre.
Por fim, é fundamental lembrar que o Bienal ETC. é um projeto que está aberto aos posicionamentos e comentários críticos dos leitores on-line, convocando à participação e, de certa forma, ecoando a livre enquete lançada pela seção Fórum do Canal Contemporâneo, em maio do ano passado, quando a votação dos internautas antecipou corretamente o nome do projeto vencedor, da curadora Lisette Lagnado.
Textos publicados no Bienal ETC.:
Pieter Hugo e a fotografia que nos olha, por Heloisa Espada
Bienong - Ou como viver junto do jeito que eu quero, por Rafael Campos Rocha
Farpas - Relatório de um fiscal, por Alberto Simon
As coisas vistas todos os dias, por Marcelo Rezende
Psicologia da paisagem - Uma entrevista com Mauro Restiffe, por Henrique Oliveira
Sobre a subjetividade na era da reprogramação digital, por Daniel Hora
Com Barthes, na Bienal, por Mariza Werneck
Modernidade, credibilidade e ironia - Uma conversa com Barbara Visser, por Fernando Oliva
Mais do mesmo, por Carla Zaccagnini
O espectador não faz a obra, por Paula Alzugaray
Os terrenos baldios de Lara Almarcegui, por Fernando Oliva
O que o Acre tem a nos dizer - Entrevistas com Marjetica Potrc e Susan Turcot, por Fernando Oliva
Jorge Macchi, desejo de permanência, por Silas Martí
novembro 13, 2006
Alucinete's news, por Angélica de Moraes e Juliana Monachesi
Alucinete's news
UMA CONVERSA ENTRE
ANGÉLICA DE MORAES E
JULIANA MONACHESI
Duas críticas de arte percorrem algumas galerias de São Paulo no sábado à tarde da primeira semana de novembro (dia 4/11, para ser mais exata), quando todo o auê paralelo à Bienal começa a terminar, e tecem seus comentários sobre as exposições em uma conversa eletrônica bem-humorada, como foi o tour pelas galerias (Oeste, Virgilio, Baró Cruz e Triângulo), com direito a momento foto-com-máscaras-do-avaf, entre outras estripulias, afinal, crítico de arte também se diverte!
Angeli: Gostei demais dessa tua idéia, Jul, da fazer duplas para visitar exposições. A primeira, com o Guy, ficou ótima. Traz um grande frescor à prática da crítica, geralmente tão sisuda, tão ensimesmada. Fica um registro mais ágil e apropriado ao "e-meio": jogo rápido, bate bola de palavras e imagens. Cada vez mais acredito no diálogo. É algo essencial para arejar opiniões e não cair no dogmatismo. Valeu! E vamos nessa...que está bom a beça!
Jul: Você logo chamou a atenção nessa obra do Eduardo Coimbra para a questão da perspectiva; afinal, por que esse seu encantamento com artistas que lidam com a perspectiva na produção contemporânea?
Angeli: Penso que o crítico de arte fica refém da obra que mais estudou. Em 1995, mergulhei no estudo da perspectiva e das distorções perspécticas para ter repertório para organizar um livro sobre Regina Silveira. Desde então, fiquei refém desse assunto. Virou mania. É algo riquíssimo, que vem da Renascença e se desdobra até o contemporâneo. Eduardo Coimbra é um exemplo dessa contemporaneidade que deriva da perspectiva. Adriana Varejão, em suas obras mais recentes, também. Aliás, acompanho a obra de Coimbra desde o início, quando vi uma obra dele em uma coletiva de jovens no Paço Imperial do Rio de Janeiro e jamais me esqueci. Talvez pelo vigoroso acento surrealista. Eram as patas empalhadas de um cachorro, colocadas como se o animal, ausente, estivesse caminhando no chão da exposição. Canis in absentia. Atualmente a obra de Coimbra tem uma predominância construtiva, mas sempre surge aqui e ali esse fascínio pelo repertório surreal, especialmente a imagem-símbolo da nuvem e dos territórios suspensos em espaços imaginários ...
Jul: Muitas vezes em visitas a galerias eu prefiro as obras que ficam nos bastidores; me chamou a atenção esse trabalho do Coimbra porque eu já o conhecia, mas em sua versão "virtual". Literalmente: vi em uma coletiva n'A Gentil Carioca, no Rio, uma fotografia dessa estante. Colada diretamente à parede, dava a impressão de tridimensionalidade. Conhecendo agora o trabalho "original", penso naquela instalação que o Nelson Leirner fez na Britto Cimino uns anos atrás, quando ele fez vir do Rio sua enorme estante, com todos os livros e traquitanas que ele mantém em sua biblioteca, e expôs, diante dela, uma fotografia da própria, em escala natural, deixando tudo bem simétrico. No final das contas, livros não deixam de ser virtualidades, porque têm lá sua vida própria na nossa cabeça. E, no caso da estante do Coimbra, os títulos tão sugestivos, a gente nem precisa abrir os livros.
Angeli: Também tenho esse fascínio por ver os bastidores, o acervo das galerias, aquelas obras que estão nas paredes do escritório do marchand... ou na casa dele. Há sempre nesses locais as coisas mais importantes que passaram pela galeria ao longo dos anos. Em 2005, organizei uma exposição coletiva para a galeria da Raquel Arnaud quase que exclusivamente com peças que fui buscar na casa dela. Obras de qualidade museológica, fantásticas. Peguei aquilo tudo sob protestos bem-humorados dela, de que eu estava estragando a decoração para um jantar... Mas bem que ela gostou. A exposição refletiu essa extrema coerência de Raquel com a herança do concretismo e do minimal.
Jul: Adorei a pintura do Marcus André na galeria Virgilio. Adorei a escala, adorei o fato de ele ocupar a sala de exposição com uma única obra (por sua vez desdobrável em inúmeras outras), e, principalmente, me interessa nessa pintura - digo em comparação com as pinturas dele da década de 1990 que eu conheço - o quanto ela parece contaminada por um "horizonte midiático". Essas cores que tenho visto na pintura contemporânea (Henrique Oliveira, Teresa Viana, Tatiana Blass) não vêm do mundo, não são naturalistas, nem naturalizadas (ainda): são cores virtuais, decorrem de uma observação e experiência do mundo permeado pelas mídias. Mas é você a teórica da relação entre pintura e novos meios, Angélica. O que achou da obra dele?
Angeli: Marcus André é um excelente pintor, dos melhores em atividade. Admiro seu senso de composição. Essa pinturona na Galeria Virgílio é um exemplo disso: cada módulo tem uma composição absolutamente equilibrada e autônoma que, por sua vez, se articula e harmoniza com o todo. Isso é façanha de gente grande. Quanto às cores, essa tua observação é muito boa. Realmente há na pintura atual uma contaminação da paleta virtual, tons que migram dos pixels das telas eletrônicas virtuais para as telas "analógicas". Vejo uma dupla contaminação: também há aí aquela que vem da história da pintura via fauves. Mas neste trabalho as cores são detalhes. Tudo foi estruturado por meio de uma malha gráfica. É pintura/desenho. Essa característica de desenho também se pode observar na obra de José Rufino, embora seja uma escultura. Esse trabalho é fortíssimo: uma cadeira enraizada remete ao tempo coagulado, imóvel, das repartições públicas e da burocracia. Um tempo revirado e subvertido (ainda bem!) pela arte.
Jul: Como eu adorei sua interpretação sobre essa obra do José Rufino, nem vou falar dela. Mas, logo atrás da escultura tem um objeto (um ready-made retificado, digamos...), feito pelo Nino Cais, que gostaria de comentar: acho curioso que essa obra fuja um pouco da linha dele de pesquisa estética e mesmo da visualidade mais conhecida dos trabalhos dele, e, entretanto, dialogue tão bem com esculturas da Mona Hatoum, o que de certo modo ilumina toda a sua obra. Ainda sobre as obras nessa foto, lá no fundo também dá para ver os carretéis do Eduardo Frota. Vês alguma relação possível entre ele e Iberê?
Angeli: Muito bem lembrado, Jul. Nino Cais e Mona Hatoum têm tudo a ver. Lembra daquela cadeira de rodas com facas, de Mona Hatoum? Mas isso não é demérito para Nino. É sintonia com coisas relevantes do cenário internacional. Acho muito forte essa soma de cadeira com foices. Remete à cadeira de balanço, à velhice e à morte, que _não por acaso_ tem na foice seu símbolo maior. Quanto aos carretéis, sem dúvida que remete a uma gravura em metal antiga de Iberê, quase que exatamente nessa configuração. Talvez uma homenagem. Isso é uma das coisas que acho mais fascinantes em arte: quanto mais você vê, mais você vai estabelecendo relações possíveis ou prováveis. É quase um "ateliê imaginário", para parafrasear o Museu Imaginário do Malraux...
Angeli: O que atrai meu olhar para este trabalho de Osmar Pinheiro é novamente a perspectiva, aqui referida nas amplidões das estradas. Mas essa é apenas a primeira e epidérmica leitura da obra, que me seduz pela sofisticação da fatura e pela poética, sutil e poderosa. Vejo uma reflexão sobre o tempo e a vida, sobre uma existência articulada de instantes, trajetória orientada pelo objetivo. Observo como Osmar dividiu a imagem em módulos que contribuem para o todo. Lamento demais a morte prematura desse artista. Tive o privilégio de acompanhar boa parte da sua produção, especialmente desde o retorno da Alemanha, no final dos anos 1980, quando trouxe uma impecável técnica de encáustica que ficou gravada na minha memória. Lembro que Osmar fazia uma síntese muito pessoal da angst (angústia) alemã derivada do expressionismo com essa vontade solar de construção formal enraizada em nossa própria contemporaneidade.
Jul: Nas fotos acima temos, à esquerda, a escultura Sapatos de pedra e um horizonte aberto que está sempre mais além (Asas), de Isaque Pinheiro, e a obra Mala do meu corpo... (Do meu umbigo de prata/Do meu beijo de prata/Do meu dedo de prata/Do meu mamilo de prata), de Rute Rosas, dois artistas portugueses que a galeria Virgilio apresenta em paralelo à individual de Marcus André. Eu sempre me espanto com a qualidade da arte portuguesa e, mais ainda, com a minha absoluta desinformação acerca da produção contemporânea em Portugal. Não seria de se esperar, pelo histórico entre os dois países e a línga em comum, que conversássemos mais culturalmente? E, no entanto, toda exposição com artistas portugueses é para mim sempre essa experiência de espanto e estranhamento.
Angeli: Pois é, Juliana. Aí a gente vê o quanto Marcantonio Vilaça faz falta no circuito. Foi na galeria dele, então Camargo Vilaça, que tomei contato pela primeira vez com toda uma nova geração de artistas que começava a despontar no cenário internacional no início dos anos 1990. Foi lá que vi e escrevi pela primeira vez sobre Rui Chafez e Cabrita Reis, dois nomes fundamentais na atualidade. Na época, eram quase desconhecidos. É ótimo ver que a Galeria Virgílio está buscando refazer esse contato mais estreito com Portugal. Tem tanta gente boa...
Jul: Sobre a exposição assombrosa e impecável de Jac Leirner na galeria Baró Cruz, tomo a liberdade de reproduzir aqui um pequeno texto de apresentação que publiquei na Folha logo que a mostra abriu. A exposição Little Lights traz as recorrentes questões estéticas de Jac Leirner em novo formato: o uso de materiais cotidianos surge não mais na forma de cédulas de dinheiro ou sacolas de plástico, mas como 4.000 metros de fio de cobre que conduzem energia para acender uma única lâmpada. Na compahia de Dan Flavin, Gonzalez-Torres e Bruce Nauman, a artista inscreve sua "luzinha" na história da arte.
Angeli: Esse teu texto ficou ótimo, mas prefiro aquele trecho onde você lembra que "enquanto Cildo Meireles se notabilizou por inserir mensagens em circuitos paralelos ao circuito da arte, Jac Leirner sobressaiu por tirar de circulação elementos estranhos ao meio de arte e apresentá-los, resignificados, nesse circuito". Touché! Isso define com limpidez para o leitor o cerne da questão. Quanto a mim, diante de Little Lights na galeria Baró Cruz, fico pensando que também podemos ler essa obra por um viés metafórico. Gosto de enxergar nesses novos trabalhos de Jac uma demonstração de fé na arte, mesmo que para chegar a ela (as tais pequenas luzinhas) tenha sido necessário mobilizar toneladas de energia, quilômetros de determinação. Acho que pode-se ver também por aí, quase como um comentário autobiográfico de uma artista que se reinventa radicalmente à partir da pura energia interna. Um pouco além, a metáfora da própria arte na sociedade: pequenos pontos de luz no caos, mas pontos de luz absolutamente necessários para nos orientar nessa escuridão toda.
Jul: E por fim chegamos à Casa Triângulo, onde Angélica circulou ao som do barulho de chuva na singela obra de Raquel Garbelotti...
...e eu tietei descaradamente o Rogério Degaki. Tantos artistas e obras interessantes nós vimos lá na exposição de aninersário de 18 anos (viva!) da galeria que eu nem saberia por onde começar... Quais artistas você gostaria de destacar, Angélica?
Angeli: A exposição de aniversário da Triângulo está bem equilibrada. Vou destacar aquele objeto/maquete em papelão do Daniel Acosta. Gosto dessas surpresas que Daniel nos traz, ao incorporar materiais inusitados ao universo da escultura. Acho muito sensível a obra de Raquel Garbelotti, que nos devolve a fruição dos sons da natureza diante do esfacelamento sensorial que a grande cidade nos causa. A gente fica se sentindo em uma varanda no meio do mato... barulhinho de chuva! As pinturas de Paulo Whitaker e Vânia Mignone são sempre afirmação de boa arte. Tenho que destacar também essa obra incrível da Sandra Cinto. Emblemática de sua produção.
Jul: Também adorei a fotografia da Sandra Cinto. E vou recorrer a um belo texto recém-publicado para falar dela: "As fotos começaram como registros de fragmentos de seu corpo, desenhados com traços finos de nanquim. Dessa série chamam a atenção especialmente dois trabalhos. Em um deles há um pé, em outro um braço estendido, ambos em close. O pé foi posto em ambígua situação suspensa, que tanto pode lembrar ascensão espiritual, salto de entusiasmo e superação quanto o seu extremo oposto: o mais fundo desespero (o suicida na forca). O braço remete a outra das tragédias contemporâneas: a droga. São belos registros poéticos mergulhados na dor do mundo" (MORAES, Angélica. "Sobre a Arte de Cultivar Asas", in Sandra Cinto: Construção, Dardo, 2006, p. 35). A foto acima foi tirada pela Angélica lá na galeria: só mesmo a crítica de arte que mergulhou fundo no trabalho da artista para conseguir capturar a imagem da obra com tanta integridade e criatividade: em foco está o pé suspenso e, ao fundo, uma figura humana (no caso, um artista genial, o Bruno Faria, que encontramos na nossa visita à Triângulo); pode ter sido obra do acaso, mas fixar a fotografia emblemática e inserir nela o reflexo de um jovem artista, como que projetando para o futuro o paradoxo apresentado na fotografia em questão, me pareceu o desfecho ideal para nossa aventura-alucinete's pelo circuito da arte paulistana.
novembro 7, 2006
Um recorte do Reverberações 2006, por Carlota Cafiero
Um recorte do Reverberações 2006
CARLOTA CAFIERO
O convite partiu de duas amigas, as artistas plásticas Samantha Moreira e Sylvia Furegatti, que participariam do debate Ações Continuadas e Espaços Autônomos para falar sobre a experiência do Ateliê Aberto, em Campinas. De folga do jornal, a princípio eu iria somente acompanhá-las. Mas aí surgiu novo convite: escrever para o Canal Contemporâneo. Cá estou. Era o terceiro dia do Reverberações, encontro nacional de coletivos de arte, que integra o Seminário Ritmos da Urgência, sob curadoria e coordenação geral de Flávia Vivacqua. A primeira etapa do projeto foi realizada em São Paulo, entre 2 e 5 de novembro, curiosamente, no feriado prolongado - quando milhares de paulistanos promovem êxodo temporário em direção ao Litoral ou ao Interior.
O lugar foi, no mínimo, inusitado. Acostumada a freqüentar os diversos espaços culturais concentrados na Zona Sul, desta vez rumei para a Zona Norte e adentrei a outra realidade de São Paulo: a da periferia. Estava instaurado o caráter provocativo do projeto: desafiar os participantes a saírem de trajetórias conhecidas, dominadas e supostamente seguras. Mas não foi o que se viu no campo das idéias - a propósito: onde estavam os coletivos na ensolarada tarde de sol do último sábado?
No terceiro dia de Reverberações, o discurso se mostrou melhor articulado no papel. Pelo menos os textos publicados na revista Reverberações (distribuída gratuitamente no seminário) estavam muito mais interessantes. Pouca gente ocupou as dezenas de cadeiras distribuídas em um salão do Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoeirinha (próxima à Freguesia do Ó), que funciona ao lado de um terminal de ônibus que "insistia" em participar do encontro.
No início da tarde do sábado, cerca de 30 pessoas assistiram à roda de discussão sobre Arte, Estética e Participação Política, com o escritor e crítico Ricardo Rosas, editor do Rizoma (www.rizoma.net); e o arquiteto e sociólogo Carlos Roberto M. de Andrade, professor da Universidade de São Paulo (USP), no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos.
Voltando à roda de discussão, o objetivo era debater sobre temas como: A Subjetividade Criadora, Poéticas Nômades - Arte, Arquitetura e Urbanismo da Internacional Situacionista e Táticas de Aglomeração. Durante quase quatro horas, as colocações de Rosas e Andrade alternaram-se, respectivamente, entre um arrazoado acerca da espontaneidade artística dos coletivos e uma aula de arquitetura e urbanismo no século 20.
O site de Rosas é bem cuidado, com referência a todo tipo de ativismo político e provocação artística, da anarquia aos mobs, mas a palestra se arrastou na maneira pouco interessante em que ele colocou as idéias. No início, Rosas leu um longo texto de sua autoria. A falta de contato visual com a platéia e o tom monocórdico da leitura ajudaram a dispersar a atenção. Ao abrir para o debate, ambos os convidados responderam de maneira vaga às perguntas ou colocações dos participantes. Carlos Andrade, por sua vez, não se empolgou com a discussão, falando estritamente o necessário, e quando a pergunta era dirigida a ele. Faltou tesão, faltou tensão. O café oferecido após o término do debate foi a única coisa quente naquele final de tarde que começava a esfriar.
Antes de seguirmos para o Fórum Coro, às 19h, com o tema Ações Continuadas e Espaços Autônomos, assistimos à performance de Nadam Guerra, de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Ele apresentou no anfiteatro o que chama de Cinema Manual, uma adaptação do teatro de sombras, produzindo imagens e sensações estranhas e outras bastante poéticas.
Fórum
De volta ao debate, participaram do Fórum Coro a jornalista e pesquisadora Fernanda Albuquerque (RS) e a artista plástica e pesquisadora Cláudia Paim (RS); as artistas plásticas Samantha Moreira (também curadora) e Sylvia Furegatti, do Ateliê Aberto (Campinas, SP); e a associação Chave Mestra (RJ), na figura de Nadam. Antes de iniciarem o bate-papo, meninas descalças do coletivo Cia Cachorra, de São Paulo, "vestiram" um objeto feito de bambolês e panos coloridos - ao qual dedicaram a tarde toda confeccionando e chamaram de Centopéia - e convidaram o público presente para percorrer as ruas de Vila Nova Cachoeirinha no dia seguinte (domingo), batucando um maracatu. OK.
No fórum, cada convidado expôs um pouco sobre a atuação nas cidades onde trabalham e sobre seus objetos de pesquisa. Integrante do coletivo P.O.I.S (Poesia.Objetos.Imagens.Instalados), Cláudia falou sobre seu doutoramento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para o qual levantou artistas e coletivos latino-americanos que intervêm no espaço urbano. Fernanda citou suas pesquisas para o mestrado em História, Teoria e Crítica de Arte, sobre obras de arte concebidas como atos fugazes e alheios aos ditames do mercado, e destacou o GIA (Grupo de Interferência Ambiental), também para a UFRGS.
Sylvia e Samantha, do Ateliê Aberto, apresentaram o trabalho desenvolvido em Campinas, como único espaço de reflexão e produção de arte contemporânea na cidade - que completará dez anos em 2007 -, auto-gestado, e que recebe artistas do Brasil todo com trabalhos experimentais e feitos especialmente para o espaço do Ateliê. Também revelaram um ousado projeto para o ano que vem: o Artistas Resistentes (uma variação de Artistas Residentes, uma prática bastante comum em grandes instituições de arte em capitais do Brasil e do mundo. Samantha observou que é muito bom fazer residência em capitais como São Paulo, Nova York, Paris, mas não se pode dizer o mesmo de Campinas, cidade reconhecida pela falta de políticas culturais sólidas.
Nadam falou da Chave Mestra - Associação dos Artistas Visuais de Santa Teresa, formalizada em 2003 e surgida das primeiras edições do projeto Arte de Portas Abertas - realizado desde 1996, quando promove a abertura dos ateliês de arte de Santa Teresa ao público em geral. Ele defendeu a necessidade da associação para viabilizar novos projetos e dar suporte ao artista visual e entrou em uma pequena celeuma com as coordenadoras do Ateliê Aberto, que revelaram uma postura de desconfiança diante de iniciativas que visam a institucionalização do trabalho do artista, o que, para elas, seria o mesmo que se acomodar.
No final do encontro de sábado, ficaram perguntas como: o que aconteceu com o poder de articulação do CORO (Coletivos em Rede e Ocupações)? O que explicaria uma audiência tão pequena para um encontro destinado aos coletivos de arte de todo o Brasil, assunto tão em voga nas rodas de artistas independentes?
Carlota Cafiero, jornalista, Campinas - SP
novembro 4, 2006
Dez motivos para não perder a Paralela, por Juliana Monachesi
Dez motivos para não perder a Paralela
JULIANA MONACHESI
1. Tem só mais duas semanas de duração, reúne obras de 146 dos melhores artistas brasileiros em atuação hoje, consegue -na maior parte dos casos- escolher o melhor de cada um deles (a pesquisa mais recente, a ousadia mais bem-sucedida, o trabalho de virada), e aposta na convivência, às vezes harmônica, às vezes conflituosa, entre as tendências mais díspares da produção contemporânea brasileira. É uma exposição generosa, bem-cuidada e aberta ao debate, sem dogmatismos quaisquer nas entrelinhas.
2. Poder ver, logo na entrada, a crítica ácida de José Damasceno ao mercado de arte, com sua pilha de Credit Carpets. Nada mal para uma exposição patrocinada pelo próprio mercado de arte. Mais democrático e auto-reflexivo do que isso, impossível.
3. Ter acesso ao que há de melhor na pintura contemporânea brasileira e lembrar que a linguagem, cuja morte já foi anunciada ad nauseam, vai muito bem, obrigada. Alguns exemplos disso são a pintura acima, de Paulo Almeida, as telas de Mariana Palma, uma obra novinha em folha (que saudade que eu estava de ver novos trabalhos dela) de Marina Saleme, as pinturas de Luiz Zerbini, Vânia Mignone, Marco Paulo Rolla, Dora Longo Bahia, Carlos Uchôa, Fábio Miguez, Cristina Canale, entre tantos outros.
4. Apreciar, lado a lado, uma escultura-gambiarra de Alexandre da Cunha e uma pintura impecável de Paulo Pasta. Os diálogos estabelecidos pela curadoria são corajosos e, mesmo quando parecem sugerir um confronto (como poderia ser o caso no exemplo citado), acabam por criar novas possibilidades de conversa entre produções distintas.
5. Ter a oportunidade de ver em São Paulo o Pão de Açucar invertido que Carlito Carvalhosa concebeu originalmente para o MAM do Rio; para quem não tem condições de fazer a função-ponte-aérea para ver o que está acontecendo na fervilhante cidade maravilhosa, é um presente poder ver pessoalmente essa obra de grande impacto e presença assombrosa no pavilhão do Ibirapuera. Fora tudo, não deixa de ser uma transgressão do artista recontextualizar o ícone carioca dentro do nosso principal parque.
6. Conhecer mais uma empreitada do incansável Henrique Oliveira, o artista jovem mais promissor e mais cobiçado dos últimos tempos em São Paulo. Outro trabalho dele pode ser visto na Mostra Fiat Brasil, no Porão das Artes da Bienal, a partir da próxima semana. A intervenção de Oliveira estabelece um diálogo com sua produção pictórica (ou seria vice-versa?) e, desta vez, parece mais entranhada do que nunca na arquitetura.
7. Dar um sorrisinho besta ao ver que alguém colocou uma moeda na mão do Pedinte, escultura de Tiago Carneiro da Cunha.
8. Observar o edifício que abrigava a Prodam, ver o parque através das janelas e outras brechas algo capengas que a organização da Paralela optou por não esconder, dando a ver um prédio que está deteriorado, bem no meio do caminho entre um tipo e outro de uso. A fotografia da Camila Sposati, com um sinal de fumaça suave (e verde, como o parque) saindo de um barquinho abandonado, parece mimetizar o contexto onde está exposta.
9. Reencontrar a poesia do trabalho de Cláudio Cretti, da série Onde Há Pedra Aflora, com novas experimentações formais, uma obra que vai sempre se adensando e cada vez mais conjugando matéria orgânica e mármore, o canônino material da tradição escultórica, agora confundido também com lâmpadas, perdendo definição, enveredando por uma pesquisa que ainda vai trazer muitos ruídos para a história da escultura modernista brasileira.
10. Pô, ver videoinstalação nova do Eder Santos. Sempre bom, né?
novembro 1, 2006
Festa, confetes e quarta-feira de cinzas, por Juliana Moreira
Festa, confetes e quarta-feira de cinzas
JULIANA MOREIRA
Other Stories and Stories of Others é o nome da primeira exposição individual da artista mineira Rivane Neuenschwander em Nova York. O uso de confete como material criativo, alusivo em si a histórias de alegria e passagem, integra os trabalhos inéditos expostos: uma série de 38 colagens, um vídeo de 6 minutos feito em parceria com Cao Guimarães e uma instalação. Também faz parte da exposição 148 desenhos feitos por visitantes da última Bienal de Veneza, projeto que Rivane desenvolveu oferecendo ao público máquinas de escrever onde letras foram substituídas por pontos coloridos. A narrativa inferida pelo nome da exposição ("Outras estórias e estórias de outros") se consolida nos trabalhos de forma sutil e livre, bastante dissonante do atual contexto da arte contemporânea em vigor na cidade, saturada de discursos estridentes e literais demais (hipérboles de Neo Rauch e Alex Katz).
Apresentada pela galeria Tanya Bonakdar, uma das primeiras a se estabelecer no distrito de galerias Chelsea e que representa também os artistas brasileiros Ernesto Neto e Sandra Cinto, a exposição de Rivane tem sido bem recebida pela imprensa especializada. Principal crítica de arte do jornal New York Times, Roberta Smith comenta: "a estréia em uma galeria de Nova York dessa internacionalmente admirada artista brasileira combina traços que são variantes minimalistas, da Arte Op e Cinética, ecológica e Situacionista, em trabalhos que conseguem ser hipnóticos em experiência e na memória ao serem efêmeros e movidos pelo acaso".
A série de 38 colagens, chamada One Thousand and One Possible Nights, deriva de confetes feitos com as páginas do livro As Mil e Uma Noites que, sobrepostos a um fundo preto, formam constelações. Apropriando-se da mitologia árabe em que a cada noite a jovem Scheherazade sobrevive à tirania do rei distraindo-o com histórias, a artista faz menção aos 38 dias que durará sua exposição. Uma constelação para cada dia. As constelações de Rivane são plasticamente simples (confetes picotados de um livro) e concedem forma à simplicidade lúdica que é, por exemplo, olhar para o céu à noite. Esteja ou não sugerido o cenário que enfrentava Scheherazade, a quase perder sua castidade e a vida então logo em seguida, em seu calendário de constelações, instalado na entrada da galeria, pulsa uma sabedoria apurada, pois adota o tempo como desarme e, certamente, tem distraído muitos tiranos; Mercado pode ser o nome de um deles.
Sendo recorrentes em sua obra questões que envolvem controle, acaso e colaboração, a artista mais uma vez apodera-se de um elemento ordinário, aqui o confete, e deixa-se levar pelas possibilidades que lhe são oferecidas. Junto com Cao Guimarães, Rivane produz o vídeo Quarta-Feira de Cinzas/Epílogo, sobre formigas e confetes coloridos de papel espelhado. O vídeo captura em close o ir e vir das formigas, seu carnaval às voltas com os confetes reluzentes, e destaca com especial cuidado a textura ocre do microcosmo de terra batida e pedras. A trilha amplifica nuanças de sons do serrado como o gotejar metálico de uma nascente, que é uma bossa que se descompassa e cessa, e o repentino grito de alarde do quero-quero. Os confetes, por sua cor viva e pelo movimento que lhe imprimem as formigas, são animados de certa existência pós-papel espelhado e, de fato, reproduzem a hipnose de uma festa sempre a se renovar, agora em outra escala.
Com a instalação Secondary Stories, Rivane recria dentro da sala branca da galeria o eixo vertical teto e chão. A instalação ocupa todo o teto da sala principal que, sem mais, permanece vazia. Confetes coloridos do tamanho de pires, como discos de papel, soprados por ventiladores, flutuam sobre uma prancha branca translúcida de plástico adjacente ao teto. Brechas na prancha de plástico permitem que os discos eventualmente escapem para o chão da galeria. Nesse horizonte infinito de paredes brancas, a artista produz um ambiente onde os olhos somente encontram referência e repouso acima ou abaixo, e não mais à frente. O olhar desvia e com ele certas noções sutis mudam, como a do espaço que o corpo ocupa. Other Stories and Stories of Others é uma exposição que em si engendra a noção de desvio. Desvio como um caminho adjacente, outro, uma outra história.