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julho 24, 2006
O tamanho dos nossos sonhos, por Rubens Pileggi Sá
Óleo sobre tela do pintor romântico alemão Kaspar David Friedrich (1774-1840)
O tamanho dos nossos sonhos
RUBENS PILEGGI SÁ
A idéia mais rasa e corrente sobre ser artista é aquela que diz que para ser artista tem que se trabalhar na rede Globo de televisão. Para muitos, se o artista não trabalhar na Globo, "ainda não chegou lá", como se diz.
Mesmo para quem a história da arte passa por livros e enciclopédias ilustradas, a arte e os artistas são grandiosos e o que fazem é espetacular e fascinante. Uma história contada pelo prisma do vencedor, sobre vencedores.
Poucas vezes prestamos atenção em outras vozes, como daqueles que se adaptaram (ou tiveram de se adaptar). E, menos ainda, dos que foram massacrados, resistindo até ao último dos seus filhos.
Convenhamos, é fascinante conhecer a história de um Picasso e sua relação com as mulheres, sua inteligência plástica, seu engajamento político. É fabuloso lembrar que Napoleão foi um grande imperador, assim como Alexandre e os Césares, na antiguidade. É emocionante saber que Toni Ramos ficou com a Glória Pires, no final da novela.
Essas coisas todas nos influenciam. Não queremos nada além, ou, não sabemos nada além do que essas grandes personalidades invocam em nós, como mitos e arquétipos a se seguir. Mas, ao nos distanciarmos um pouco dessa veneração, podemos desdobrar outras questões, que residem mais no fundo de nós mesmos, que dizem respeito à identificação que o oprimido tem com o opressor; o excluído com sua condição de marginal e; o pobre, identificando-se com o discurso do rico, espelhando-se em uma realidade que será sempre contrária aos seus desejos e anseios.
O escritor Pedro Nava disse uma vez que "a experiência é um farol que ilumina para trás", como se dissesse que a experiência de um não vale para a vida do outro. Ou, que a experiência, por si só, não resulta em sabedoria. Que, às vezes, podemos nos tornar mais amargos, ranzinzas, mesquinhos e estúpidos com o passar do tempo, sem aprender com aquilo que experimentamos.
Sabemos que a palavra crise significa oportunidade: oportunidade de mudança, de transformação, de crescimento. Sabemos também que pessoas cometem o mesmo erro porque continuam a levar suas vidas sempre do mesmo modo. Não se permitem mudanças, mas querem que o mundo se adapte ao que elas são. Espelham-se em realidades que não são as suas. E depois apelam a Deus ou ao Diabo. Ou aos remédios. Deixam-se dominar. Perdem a alegria de viver.
Uma das prerrogativas do discurso contemporâneo é, justamente, a afirmação da convivência entre diferentes camadas de relações, que oram se afastam, ora se cruzam, ora se sobrepõem, dando-nos a possibilidade em viver segundo nossas próprias subjetividades, nossos próprios desejos. De viver em coletividade sem perder a individualidade.
Hoje em dia, vivendo sob o domínio dos meios de comunicação - ainda que imposto - é preciso saber tirar proveito dessa situação, de modo a afirmar que é possível sobreviver neste planeta (e em sua sobrevivência) sem que isso redunde em "padrão Globo de qualidade". Até porque muitas das empresas que hoje patrocinam projetos ambientais estão interessadas em marketing. Interessadas apenas em lucro, como sempre.
À parte os grandes nomes da história e seus feitos heróicos. À parte os Napoleões de hoje e de antigamente. Os Picassos e Pollocks da arte. Aos van Goghs que hoje custam milhões. Aos Toni Ramos globais. À parte tudo isso que nos obriga a responder com clareza o que queremos para o nosso destino. E das dificuldades em viver segundo o figurino socialmente aceito, agradecemos em ser aquilo que somos e aceitamos nossa condição de resistir sorrindo, porque aprendemos, resignadamente, com a experiência, que o mundo existe para os que virão, para os seres inocentes e para as crianças. E sua invenção passa pelo sonho visionário dos artistas e poetas, esses grandes homens, do tamanho de cada um de nós.
julho 5, 2006
A virada social na arte: Uma nova vanguarda?, por Juliana Monachesi
A virada social na arte: Uma nova vanguarda?
JULIANA MONACHESI
As práticas colaborativas na arte configurariam uma nova vanguarda no cenário da produção contemporânea? Esta é a pergunta que muitos teóricos, críticos, artistas e interessados em geral vêm se fazendo ao longo dos últimos meses no Brasil e no mundo. Veja-se a edição de março da revista norte-americana Artforum, por exemplo. Em artigo intitulado "The social turn: collaboration and its discontents", Claire Bishop enumera experiências de "arte experimental engajada no contexto público", tais como a Social Parade do artista Jeremy Deller para mais de 20 organizações sociais em San Sebastian (2004), a clínica de aborto flutuante A-Portable, do ateliê Van Lieshout (2001), o projeto da artista Jeanne van Heeswijk de transformação de um shopping center abandonado (Roterdã, 2001-2004) em centro cultural, entre outros. Bishop relata a eclosão de práticas artísticas coletivas que ficam no limiar entre arte e eventos sociais, publicações, performances ou workshops. E coloca a pergunta: quais seriam os parâmetros críticos para analisar uma tal produção do ponto de vista estético?
"Estas práticas estão menos interessadas em uma estética relacional do que nas conquistas criativas da atividade colaborativa -seja na forma de trabalhos com comunidades pré-existentes ou de estabelecer uma rede interdisciplinar própria. (...) e mesmo figuras bem-sucedidas comercialmente como Francis Alÿs, Pierre Huyghe, Matthew Barney e Thomas Hirschhorn voltaram-se para colaborações sociais como uma extensão de suas práticas conceituais ou escultóricas. (...) Todos estes trabalhos estão ligados à crença na enriquecedora criatividade da ação coletiva e das idéias compartilhadas", escreve a crítica da Artforum. Ela recorre a textos hoje canônicos de Miwon Kwon [One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity] e Nicolas Bourriaud [Relational Aesthetics] para apresentar o problema: "Arte é um lugar que produz sociabilidades específicas" e as práticas participativas na arte re-humanizam ou desalienam a sociedade fragmentada pela instrumentalização repressiva do capitalismo.
Obras que aportam uma tal resistência (ao sistema da arte e ao sistema sócio-político e econômico) estariam imunes a julgamentos estéticos? Bishop responde "sim": O tipo de crítica séria que surgiu em relação à arte colaborativa demonstra que a "virada social na arte contemporânea" produziu uma "virada ética na crítica de arte", ou seja, artistas são "julgados" pela maneira com que trabalham junto às comunidades que elegem. Eles exploram os envolvidos nos projetos ou de fato promovem um trabalho colaborativo consensual? Para a curadora sueca Maria Lind, o grupo turco Oda Projesi, que trabalha junto a comunidades próximas diluindo ao extremo a "autoria" da obra ao delegar todas as decisões aos participantes, configura uma prática mais ética do que aquela protagonizada por Hirschhorn em seu Bataille Monument, em que os participantes foram pagos para executar o "monumento" ao invés de co-criarem a obra -o que, para Lind, configuraria uma espécie de "pornografia social".
Bishop segue então defendendo que as experiências do Oda Projesi não são arte e que um trabalho como o de Phill Collins [They Shoot Horses, 2004, reproduzido na imagem acima], que em uma residência em Jerusalém pagou nove adolescentes para protagonizar uma maratona de dança em Ramallah, dançando durante oito horas ao som de pop hits das últimas décadas. "Os adolescentes são hipnóticos e irresistíveis ao se moverem da animação exuberante ao tédio e, finalmente, à exaustão. As letras banais da trilha sonora adquirem conotações pungentes à luz da resistência dos jovens tanto à maratona quanto à interminável crise política na qual estão presos. (...) A decisão de Collins de apresentar os participantes como adolescentes globalizados torna-se clara quando consideramos as questões ouvidas ao assistir o vídeo em público: 'Como é que os palestinos conhecem Beyoncé? Como é que eles estão usando Nike?' Ao evitar uma narrativa diretamente política, Collins demonstra como este espaço é repleto de fantasias geradas pela disseminação midiática de imagens do Ocidente", escreve Bishop.
Não é preciso ir mais longe no brilhante artigo de Claire Bishop nem conhecer de perto os trabalhos do grupo turco ou do tal Phill Collins para concordar: promover piqueniques em pequenas comunidades carentes na Turquia não é arte, apropriar-se do clássico livro de Horace McCoy [A Noite dos Desesperados], por sua vez transformado em filme por Sydney Pollack [They Shoot Horses, Don't They?, 1969], e adaptar o desespero vivido pelos pobres miseráveis que dançam até o limite de suas forças por uns poucos trocados para a especificidade de um território em guerra ininterrupta, apresentando os paradoxos da convivência entre local e global ali, é -indiscutivelmente- arte.