|
fevereiro 19, 2006
ARTnews identifica dez novas tendências na arte contemporânea, por Juliana Monachesi
A edição de fevereiro de 2006 da revista nova-iorquina ARTnews traz como matéria de capa um ousado top ten das tendências que estariam ditando a produção artística contemporânea. Editada com mão leve, apostando não em categorias rígidas, mas em "tendências" como a espiritualidade, o "mockumentary" -documentário que mescla fato e ficção-, o maneirismo pós-moderno, o neo-psicodélico, entre outras espirituosas classificações para a arte atual, a reportagem é dividida em dez ensaios escritos por dez diferentes críticos e colaboradores. Impelida, em princípio, a fazer uma espécie de fichamento destes textos aqui no arteemcirculação, acabei optando por traduzí-los na íntegra por dois motivos: trata-se de bibliografia bastante relevante para pensar os caminhos e descaminhos da arte contemporânea, e cada um dos artigos apresenta uma miríade de novos artistas que convém conhecer. Segue, então, o primeiro da série (que, torçamos, chegue a bom término qualquer dia destes), sobre a espiritualidade na arte contemporânea, assinado por Kay Larson, que é um escritor independente e editor.
Mantendo a fé
KAY LARSON
da ARTnews
Onde há muito falatório sobre espiritualidade, observou certa vez o místico Thomas Merton, é como se houvesse falcões pairando em torno de um cadáver. Para matar a espiritualidade, basta fazer muito barulho. O "espírito" que Merton celebrava era vivo e vital; de outra forma, era putrefato.
Meio século depois, o espírito mais em evidência entre certos artistas é o iconoclasmo. Para os cínicos anti-establishment, a espiritualidade é um assunto que convida a um tiro à queima-roupa. Um exemplo de tiro certeiro é Oil on Velvet (1988), de Jim Shaw, uma pintura coberta de sangue em que o Snoopy aparece dançando sobre um tapete rasgado de veludo que retrata a Última Ceia. O trabalho de Shaw foi incluído em 100 Artists See God, uma exposição organizada por John Baldessari e Meg Cranston em 2004 -ainda em circulação pela Independent Curators International- que capturou a confusão atual em torno do conceito de Deus, por vezes retratado como uma deidade kitsch que está ligeiramente desbancando Papai Noel na esfera da cultura popular.
Tripudiar da iconografia tradicional pode parecer agradável, mas uma visão simplista como esta da religião perde de vista uma mudança substancial no humor nacional. A verdadeira ação está acontecendo de forma mais silenciosa. E está ocorrendo no âmbito de mídias estabelecidas: vídeo, instalação e outros formatos pós-1960 e pós-minimalistas.
Para muitos artistas, a mente mundana é o repositório de imensidades. No âmbito da vida diária existem fenômenos da mais radical sutileza: as associações que acompanham qualquer pensamento único; a penumbra das sombras interiores às imagens que o olho capta; o sublime das sensações de relance que escapam; as erosões da passagem e da mudança.
Trabalhos de pioneiros como Marina Abramovic, Laurie Anderson, James Turrell e Bill Viola, que escavaram suas próprias mentes e corações, tornaram-se exemplares da aventura interior. A trajetória de Viola desde 1980 o levou ao zen e à arte japonesa e a uma amizade arrebatadora com um destemido espírito livre, Daiju Tanaka, um sacerdote zen. Viola explorou, mais tarde, a paixão cristã e a Renascença. Uma fricção espiritual não denominacional inflama o recente díptico em tela de plasma Ablutions, no qual os torsos negros de um homem e uma mulher são, cada qual, divididos por uma ardente e hesitante coluna de água tão incompreensível quanto a fluida força da vida.
Ablutions [imagem acima] está preocupado com a purificação, mas também se lê como um enunciado aberto sobre a misteriosa luminosidade que corre através de nós. "As coisas na vida que são inomináveis ou inexplicáveis são o tipo de coisa que me atrai", diz Viola. "Minha arte resulta de questões, não de respostas. Portanto, realmente não me incomoda que nós tenhamos um conceito" -como o de espiritual- "que na era pós-moderna realmente cai por entre as fendas. Isto não pode ser explicado sob a dura luz do materialismo científico. Eu acredito que isto seja algo positivo e dadivoso".
Esta observação de que o que fazem tanto a arte como a espiritualidade é examinar possibilidades parece ser atrativo para muitos artistas, quer eles adotem ou não o rótulo "espiritual". Para Mierle Laderman Ukeles, Janine Antoni, Kimsooja [imagem no alto], Lee Mingwei, Sanford Biggers, Ken Aptekar e inúmeros outros assuntos da vida informam assuntos da arte sem que haja um intervalo ou separação entre eles. E as escolhas de curadores estão recaindo sobre o tema em exposições como The Five Faiths Project, vista no ano passado no Ackland Museum of Art em Chapel Hill, Carolina do Norte, e a que está por acontecer The Missing Peace: The Dalai Lama Portrait Project, exibindo obras de mais de 70 artistas, entre os quais incluem-se Abramovic, Anderson, Aptekar, Biggers, Dove Bradshaw, Long-Bin Chen e Viola.
"Eu acredito que os humanos possuem poderes ilimitados de criação que advêm de terem sido criados à imagem do divino", afirma Ukeles, uma judia praticante cujas performances já invocaram o mikvah, ou banho ritual, e cujo "Manifesto for Maintenance Art" [Manifesto pela arte sustentável] em 1969 foi o começo de um compromisso de vida para curar o mundo por meio da transformação e reciclagem de seu lixo. Ukeles dedicou-se consistentemente a colaborações com pessoas comuns, em particular com aquelas que têm como tarefa manejar o que o resto de nós rejeita. Ela diz que sua visão espiritual do potencial humano "é em grande medida parte do meu trabalho -talvez o aspecto central de todo o meu trabalho".
De maneira similar, a sul-coreana Kimsooja e Lee (que passou seis verões em um mosteiro zen), criado em Taiwan, fizeram trabalhos sutis e belos que enfatizam simplicidade, compaixão e empatia -qualidades que refletem suas raízes culturais budistas, mas também as grandes idéias universais.
Antoni, de criação católica, examinou a vida monástica cristã e temas como a transubstanciação, assim como técnicas de meditação asiáticas. "Na transubstanciação, a transformação do pão em corpo de Cristo e do vinho em sangue, há uma certa noção de modificar materiais através de algumas reações psicológicas e emocionais", diz ela. "Uma das minhas grandes questões é: como um objeto acumula poder?" Ao lamber e consumir suas esculturas de chocolate, ela as estava incorporando ao seu próprio corpo. "Tudo isto é de uma perspectiva católica cristã", afirma. "Mas para mim é onde todos estes pensamentos se cruzam. Eu estou criando uma mistura de tudo, e o que quer que faça sentido para mim eu incorporo. Eu não deixei minha verdadeira religião para trás, e eu também estou interessada em mitologia hindu e cantos de mantras kirtan."
Para Arlene Shechet, que honra igualmente seu ancestral judaísmo e seu adotado budismo, o direcionamento para o espiritual significa "encontrar sentido e combater a ironia". Lutar contra a ironia no ateliê, acredita ela, é estar "mais ferozmente acordada -consciente no sentido alargado". Cristais em forma de stupa (mausoléu budista) servem atualmente de metáfora visual para seu objetivo [imagem acima]. Em 1992, quando ela começou a fazer esculturas de Buda em hydrocal (gesso em pedra), o vocabulário do mundo da arte estava dominado por imagens explicitamente sexuais e temáticas de gênero. "Você podia mostrar a imagem mais suja do mundo que não iria chocar tanto as pessoas como um pequeno e humilde Buda iria", conta Shechet, que expõe na galeria Elizabeth Harris em Nova York, na Shoshana Wayne em Los Angeles, e na Hemphill Fine Arts em Washington, D.C., onde seu trabalho pode ser visto até o dia 25 deste mês. Suas práticas a levaram a ter curiosidade sobre aquela aversão e ela pensou: "Uau, há alguma coisa a ser tratada aqui". Suas obras são vendidas por valores entre US$ 1.000 e US$ 15 mil.
O caminho de Biggers levou a resultados poderosos, misteriosos e inesperados. Seus avós eram assíduos freqüentadores da igreja na comunidade afro-americana, mas ele não "despertou", em suas palavras, até depois da universidade, quando ele decidiu, em um impulso, ir para Nagoya, no Japão. Durante dois anos, estudou japonês e zen, e viu-se rabiscando mandalas em seu bloquinho. "Eu comecei a ler mais a respeito dos ensinamentos e isto se tornou uma filosofia de vida para mim", diz ele.
Em sua arte ele anuncia seu entusiasmo pelo hip-hop, pelo jazz e (ultimamente) pela cultura islâmica -o mais recente foi um tapete de reza islâmico feito de areia colorida no chão do Triple Candie [um centro cultural no bairro do Harlem] em Nova York, um trabalho que mescla mandalas tibetanas de areia, Islã e arte processual [imagem abaixo]. "A feitura em si da obra envolveu várias pessoas, todas em silêncio, todas ajoelhadas, todas derramando areia", ele conta. "A experiência tornou-se quase que uma meditação." A marchand de Biggers é Mary Goldman, em Los Angeles. Seu trabalho alcança valores que vão de US$ 3.000, por gravuras, a US$ 30 mil, por instalações e esculturas de grandes dimensões.
Biggers diz: "Você vai àquele espaço onde seu corpo e sua mente trabalham por si, e o trabalho vai emanando de você sem um controle consciente. Esta é uma experiência inefável para mim, e a coisa mais próxima disto que posso encontrar é aquilo que mestres espirituais chamam de experiência espiritual". Trata-se de uma finalidade, ele argumenta, uma vez que artistas que não se declaram espirituais podem chegar ao mesmo estado meditativo. "Espiritualidade", afirma, "é a palavra que usamos para resumir a necessidade que nós temos de estar mais em contato conosco".
Tradução de Juliana Monachesi