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dezembro 23, 2005

As aventuras de Guille e Belinda em Porto Alegre e o enigmático significado dos sonhos da 5ª Bienal do Mercosul, por Juliana Monachesi

mercosul.jpg

As aventuras de Guille e Belinda em Porto Alegre e o enigmático significado dos sonhos da 5ª Bienal do Mercosul

JULIANA MONACHESI

Não sem um certo atraso, gostaria de narrar aqui minhas impressões acerca da 5ª Bienal do Mercosul. Vi muito pouco (ou nada) de repercussão crítica a respeito da mostra, que terminou em Porto Alegre no dia 4 deste mês. Qual o motivo do silêncio? Ouvi todo tipo de comentário, a favor e contra, destacando isto ou aquilo, mas de reflexões mesmo -por escrito- não me lembro de ter lido nada. Sinto falta do debate. Penso (e não apenas eu) que nós, do meio de arte, poderíamos criar mais espaços para o debate, além de aproveitar melhor os espaços já existentes, como este próprio fórum [o Canal Contemporâneo], para aprofundar as discussões sobre o estado da arte contemporânea brasileira.

Mas... sobre a Bienal... uma sensação me acompanhou durante a visita a quase todos os espaços em que a exposição ocorreu. A sensação de que esta foi uma Bienal muito tímida. A força simbólica e a escala dos armazéns, no Cais do Porto, não foram enfrentadas. Em vez de colocar as obras para dialogar com o lugar, foram construídas grandes e pequenas salas brancas, tentando aplicar a ideologia do cubo branco a um espaço totalmente contaminado por uma história, uma paisagem e uma temperatura abafada que se impõem inegavelmente. Em outro local da mostra, uma situação semelhante aconteceu: para aqueles que vivenciaram o impacto de se deparar com as esculturas monumentais de Carlito Carvalhosa e Pazé, na 3ª edição da Bienal do Mercosul, preenchendo e tensionando todo o hall principal do Santander Cultural, a presença dos concretistas e neoconcretistas neste mesmo espaço, quatro anos depois, pareceu acanhada.

Os adjetivos podem soar exagerados, mas a timidez e o acanhamento na forma de lidar com o espaço expositivo nos dois casos citados torna-se mais evidente quando se leva em consideração que o tema desta 5ª Bienal do Mercosul era justamente "o espaço na arte". Dividida em quatro núcleos, ou "vetores temáticos", que mostraram o desdobramento da escultura à instalação ao longo do século 20 [Da escultura à instalação], a inserção da arte no ambiente urbano [Transformações do espaço público], a espacialização da superfície pictórica [A persistência da pintura] e a exploração do espaço virtual pelos artistas contemporâneos [Direções no novo espaço], é bastante contraditório que a mostra não tenha explorado nem esgotado conceitualmente os próprios locais em que se deu.

Em vista daquilo a que se propõe a presente resenha, serão deixadas de lado as duas exposições especiais que integraram a 5ª Bienal, uma em homenagem a Amilcar de Castro e outra, intitulada Fronteiras da linguagem, com obras de artistas de fora do Mercosul convidados por sua relevância internacional para a arte contemporânea [Ilya Kabakov (Ucrânica), Marina Abramovic (Sérvia), Pierre Coulibeuf (França) e Stephen Vitiello (Estados Unidos)].

Outro problema sobressaía na visita à mostra em Porto Alegre: o anacronismo da divisão por linguagens. Por que um núcleo de obras tridimensionais, outro de pintura e outro de novas mídias? É fato que o curador-geral da 5ª Bienal do Mercosul, Paulo Sergio Duarte, frisou desde o início do projeto a importância do caráter educativo de uma exposição como esta (leia-se fora do eixo, latino-americana, de periodicidade bienal etc.), e -para tanto- empreendeu um importante esforço de organizar núcleos históricos (também segmentados de acordo com o suporte) em paralelo à mostra contemporânea, mas não seria um desserviço, inclusive do ponto de vista educativo, apresentar a produção artística deste modo em tempos de hibridação generalizada entre linguagens?

Em texto para o primeiro número da Revista Bienal Mercosul (1), Paulo Sergio Duarte já anunciava: "Histórias da arte e do espaço: um tema que não traz novidades, nenhum penduricalho saído do balaio pós-moderno. Se não traz novidades teóricas no seu tema, a 5ª Bienal do Mercosul é, entretanto, bastante audaciosa. Permeia um tema, digamos, clássico da história da arte a estratégia de promover uma interação entre a cultura, mais especificamente as artes visuais, e a educação como um dos eixos de ação permanente da Fundação Bienal". O curador termina o texto, espécie de carta de intenções, assim: "Um projeto educativo permanente, dedicado aos grandes capítulos da arte moderna e contemporânea, aberto ao público e não apenas a especialistas, será o grande diferencial da Bienal de Porto Alegre em relação às outras mais de 50 bienais de arte existentes, hoje, no mundo" (2).

A título de exemplo, no núcleo A persistência da pintura puderam ser vistas várias obras de Fábio Miguez e Antonio Dias, deste último a Bienal fez quase que uma pequena retrospectiva, mas em ambos os casos as pinturas estavam em "salas monográficas". Não ganhariam, as obras e o público, se estas mesmas pinturas fossem exibidas em diálogo e confronto com esculturas, instalações, vídeos e fotografias presentes na mesma 5ª Bienal do Mercosul? Afinal, a produção contemporânea, independente do suporte escolhido pelo artista para se manifestar, está inserida em um mesmo contexto, que é a vida e a arte no século 21. Protegidas em suas respectivas salas, as densas pinturas de Miguez e o abrangente panorama da poética de Dias -nome seminal da arte brasileira, aliás- ficaram isoladas de seu contexto e, por conta disto, empobrecidas em termos da multiplicidade de leituras que poderiam suscitar.

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Na minha opinião, o melhor desta quinta edição da Bienal se concentrou na Oficina do Gasômetro, no Memorial do Rio Grande do Sul e no Paço dos Açorianos, apesar de estes dois últimos espaços reunirem poucos trabalhos, dando a impressão de que não couberam nos locais tradicionais do evento, e atraírem, por isso, pouca atenção e menor afluxo de público. O subsolo do Paço abrigou talvez a obra mais instigante de toda a mostra: uma instalação sonora de Paulo Vivacqua que, entre os artistas inseridos no vetor Transformações do espaço público, foi aquele que mais radicalmente interferiu no contexto da cidade.

No Gasômetro e no Memorial, principais endereços do vetor Direções no novo espaço, cinco artistas podem ser destacados como as melhores surpresas da 5ª Bienal do Mercosul: Alessandra Sanguinetti (Argentina), Fredi Casco (Paraguai), Javiera Torres (Chile), Manuela Viera-Gallo (Chile) e Mauricio Guillen (México). A série fotográfica The adventures of Guille and Belinda and the enigmatic meaning of their dreams [As aventuras de Guille e Belinda e o enigmático significado de seus sonhos], de Sanguinetti, retrata duas meninas -que a artista conheceu em viagem pelos remotos campos da Argentina- encenando fantasias e mitologias associadas à arte e à passagem da infância à vida adulta. Depois de descobrir suas "protagonistas", Sanguinetti acompanhou e retratou a dupla de primas ao longo de sete anos. Um artigo (3) na Art in America de fevereiro deste ano analisa a primeira individual da artista nos Estados Unidos.

Casco também trabalha com fotografia, em seu caso, imagens apropriadas, que ele compra em um mercado de pulgas em Assunção. São registros de atos oficiais ocorridos entre 1960 e 1970, durante a ditadura de Alfredo Stroessner, que o artista manipula espelhando um mesmo personagem várias vezes em uma fotografia -como a indicar a sensação advinda de vigilância e constrangimento constantes sob um regime autoritário-, fazendo intervenções tais como substituir os olhos de generais e seus asseclas por sombras ou vestir algum rosto presente em uma recepção social com uma máscara de gás. O título do trabalho é Los desastres de la Guerra Fría (2003). Uma foto da série pode ser conferida no site da ArtNexus (4).

O artista mexicano Mauricio Guillen é quem assina Night shift (5), de 2004, o vídeo mais emocionante apresentado na 5ª Bienal do Mercosul. A obra mostra um segurança de uma empresa que fica isolado do mundo em uma guarita localizada dentro de um terreno cercado e, durante o turno da noite, realiza pequenas tarefas e passa maior parte do tempo parado, sem nada para fazer e ninguém com quem conviver. A trilha sonora acentua a asfixiante solidão do personagem retratado de longe, em uma vigília (ou vigilância) empreendida pelo artista. Já as chilenas Manuela Viera-Gallo e Javiera Torres participaram com vídeos em que se apropriam, respectivamente, do filme Vertigo, de Hitchcock, e da obra-prima de Stanley Kubrick, 2001, realizando com eles interessantes trabalhos de ecologia midiática (ou reciclagem cultural).

E, para não dizer que não falei de flores, havia muito de instigante nos outros vetores temáticos da Bienal também. Destaco, no segmento Da escultura à instalação, as obras de Afonso Tostes [que pode ser vista, na foto que abre este texto, ao fundo, na parte externa de um dos armazéns no Cais do Porto; a escultura no primeiro plano é de Angelo Venosa], Elaine Tedesco e Rivane Neuenschwander; no núcleo A persistência da pintura, chamavam a atenção os trabalhos dos artistas mexicanos Boris Viskin e Franco Aceves Humana.

Notas:
1. Publicação sobre a mostra que circulou encartada na revista Bravo! a partir de abril deste ano; em princípio, a cada dois meses e, depois que a Bienal foi inaugurada, em setembro, a publicação passou a circular mensalmente. Além da revista Bravo!, o encarte também integrou edições da revista Aplauso.
2. "Um espaço da educação", in Revista Bienal Mercosul, nº 1, abril de 2005, publicação integrante da revista Bravo! nº 91.
3. Assinado pela crítica de arte Jean Dykstra, o texto está disponível em http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m1248/is_2_93/ai_n12937308
4. No endereço http://www.artnexus.com/ImageBig/2005/u0005513
5. Veja alguns stills do filme no site do artista: http://www.mauricioguillen.com/night-shift.html

Posted by Juliana Monachesi at 12:19 AM | Comentários (1)

dezembro 16, 2005

Arte de pelúcia, por Juliana Monachesi

Raul Mourão, Vicente Rozados e Raquel Schwartz põem a pelúcia a serviço da crítica, mas tornam-se reféns da insondável e avassaladora fofice do material

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Arte de pelúcia

JULIANA MONACHESI

Nos vôos da TAM durante o mês de dezembro uma situação curiosa tem acontecido: para "comemorar o Natal com seus clientes", a companhia aérea sorteia bichinhos de pelúcia entre os passageiros do vôo. São seis personagens criados para homenagear a fauna brasileira e conscientizar as pessoas sobre a preservação de animais ameaçados de extinção. Os bichinhos de pelúcia têm nomes próprios, vejam vocês: Bibo é o mico leão dourado, Tatá é o tamanduá, Mirtes é "a" jacaré, Joca é o lobo guará, Capi é a capivara e Escotilha é o peixe-boi. Na hora do sorteio o avião põe-se em um estranho estado de agitação, as crianças ficam alucinadas. Já presenciei outros sorteios de brindes em viagens aéreas, mas nunca nenhum que provocasse tal alvoroço.

O que diabos há nos bichos de pelúcia que mexe tanto com as pessoas, sejam crianças ou adultos?

A obra mais visitada da 5ª Bienal do Mercosul, que terminou recentemente em Porto Alegre, foi, pasmem, uma instalação de pelúcia. Intitulado Ilusión, o trabalho da artista boliviana Raquel Schwartz era uma casa toda revestida de pelúcia cor-de-rosa. Um ambiente de dois andares forrado de pelúcia do chão ao teto, contendo sofá, almofadas, mesa, cadeira, copos, pratos, talheres, fogão, panelas, cama, banheira, papel higiênico etc., tudo em tamanho natural, tudo revestido com a pelúcia cor-de-rosa. Em qualquer dia de visitação ao armazém A3 do Cais do Porto, onde a obra estava, mesmo durante a semana, filas se formavam para entrar na "casa" de 396 m² e 540 metros de pelúcia.

Raquel Schwartz é conhecida por aqui. Apresentou na 25ª Bienal de São Paulo, em 2002, a obra Cárcel de Ilusiones, que também atraiu muita atenção. Era uma jaula... de pelúcia cor-de-rosa, com espelhos posicionados no piso e no teto, dando um efeito de infinito. Em ambos os trabalhos, a proposta da artista é construir metáforas sobre a realidade e os contrastes de seu país. Em entrevista ao site artewebbrasil (1), a artista afirmou, acerca do trabalho de 2002: "Cárcel de Ilusiones hablaba sobre la migración masiva de gente del campo a la ciudad en busca de mejores posibilidades de vida y se encuentran muchas veces en una cárcel de ilusiones donde mas bien encuentran todo tipo de vejámenes y problemas, y el sueño se trunca como ilusión falsa. La obra simboliza en su formalidad una caja urbana, era como estar en un ascensor infinito. Con los barrotes flexibles, o sea con la posibilidad de salir cuando quieras".

Mas por que utilizar pelúcia? Seria uma metáfora do "sonho cor-de-rosa" que representa a evasão do campo rumo às cidades? Mais adiante na entrevista, Raquel explica seu projeto para a Bienal do Mercosul: "La instalación Ilusión apela a los sentidos, recurriendo a la memoria, a las sensaciones y al juego infantil, al peluche. A través de esta instalación propongo poner en evidencia el dilema de la familia del siglo 21, la contra posición de los valores y la violencia en un mismo espacio; la obra busca un dialogo entre la atracción y la repulsión, entre la seducción y el miedo, entre ilusión y realidad, recreando la casa, pero de juguete, de peluche rosa, como objeto de ilusión y deseo".

Aqui temos alguns indícios mais interessantes: as dicotomias atração/repulsa, sedução/medo e ilusão/realidade dão pistas sobre o apelo deste material. Inextricável ao universo infantil, associado de um jeito ou de outro para quase todo mundo a memórias afetivas de um tempo irrecuperável ou que nunca chegou a ser, o ursinho de pelúcia é algo como o "objeto A" de Lacan, o elo perdido e impossível de simbolizar. Uma obra de arte feita de pelúcia, ainda que tenha como propósito a crítica, como que elimina magicamente qualquer possibilidade de reflexão, tira de cena a consciência. Um bichinho de pelúcia sendo sorteado no avião, assim de surpresa, como que dispara nas pessoas o desejo de recuperar algo. Algo impossível de recuperar. Daí a frustração por não ser sorteado. Daí o vazio quando se é o sorteado.

Vicente Rozados 8.JPG

Duas exposições atualmente em cartaz, uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro, encontram-se nesta encruzilhada. Em São Paulo, na galeria Thomas Cohn, o artista argentino Vicente Rozados realiza sua primeira mostra individual. No Rio, Raul Mourão apresenta o projeto Luladepelúcia na galeria Lurixs. Rozados reencena fábulas, ícones da história da arte e mitologias urbanas e rurais em obras feitas de pelúcia sobre MDF. Visitar a exposição é uma experiência única e imperdível (para quem não viu, a mostra está em cartaz apenas até amanhã, das 11h às 18h; vale a pena arrumar um tempinho e passar na galeria Thomas Cohn, que fica na av. Europa, 641). As cenas construídas pelo artista nos transportam a um outro tempo. O percurso lúdico e onírico é invadido a cada passo por pequenas subversões de sentido, ruídos surrealistas, perversões do suposto universo infantil.

Cito alguns exemplos: Um peão suspenso no movimento de domar um touro aparece circundado de vasinhos de flor, flutuando ao seu redor; uma gueixa sob uma árvore é observada por miniaturas de crianças que fazem as vezes dos "frutos" da árvore; a leiteira de Vermeer surge, com uma máscara de gás, derramando o leite de seu jarro no ouvido de um rapaz adormecido. Quando observado em detalhe, é um mundo estranho este habitado pelos personagens de Vicente Rozados, mas, paradoxalmente, o ambiente criado por estas sedutoras peças de pelúcia colorida pontuando todo o espaço resulta alegre e singelo.

O Luladepelúcia de Raul Mourão é isto mesmo que o nome diz: bonequinhos de pelúcia que representam nosso Presidente da República. E, como o assunto é longo -e cabeludo-, deixo para terminar este texto em breve.

(continua...)

raulmourao.JPG

NOTAS:
1. Disponível em http://www.artewebbrasil.com.br/5bienal/raquel.htm

Posted by Juliana Monachesi at 3:38 PM | Comentários (1)