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setembro 12, 2005
A documentarização da videoarte, por Paula Alzugaray
A documentarização da videoarte
PAULA ALZUGARAY
"É importante ligar as pessoas à sua história?". A pergunta, lançada pela artista alemã Christine Meisner no vídeo "Recuperação de uma imagem", em cartaz até 10 de outubro na exposição Fim de Romance, na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, sugere uma direção para se pensar a apropriação de documentação histórica praticada por artistas contemporâneos. Estratégia assumida por ela, Christine, e por artistas como o libanês Akram Zaatari, que no vídeo "In this house" literalmente desenterra a memória do passado recente de seu país. Ao promover uma escavação em busca de um documento escondido em um jardim por militante socialista, o vídeo-documentário de Zaatari, apresentado no 15º Festival Internacional de Arte Eletrônica VideoBrasil, reconstitui um pensamento soterrado por décadas de guerra civil no Líbano.
"A memória prende-se ao concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto. A história lida apenas com contínuos temporais, com as evoluções das coisas. A memória é algo absoluto, a história só conhece o relativo".
Anotada a lápis em páginas de caderno, essa citação de autor desconhecido está pregada na parede da instalação de Christine Meisner, na Pinacoteca. As anotações indicam o caminho indireto escolhido pela artista para recriar as circunstâncias do regresso de um escravo liberto para a África, no final do século 19. A instalação "No que resultou", constituída de um vídeo e vários desenhos, esquemas e anotações, não procura reconstituir a história do ex-escravo João Esan da Rocha, que ganhou a alforria na Bahia e virou um próspero comerciante em Lagos, na Nigéria. Ao produzir sua narrativa a partir de episódios lembrados e imaginados, Meisner recusa a idéia da veracidade dos fatos e descarta a história escrita como absoluta. O artista que trabalha com a história o faz para apontar sua relatividade.
"Lido com a inverdade. A partir de onde algo é mentira. As declarações de testemunhas que não foram fundamentadas em fatos. Mas são verdades para as pessoas que as contam. Elas acreditam nisso, é o seu lado da história, aquilo que elas são", anota Meisner no caderno desfolhado e pregado à parede da instalação.
Pelo fato de suas pesquisas em Recife, Salvador e Lagos terem buscado - de uma maneira "nada científica e completamente caótica", segundo ela me explica - as histórias pessoais, extra-oficiais e paralelas das "testemunhas", Christine recusa-se a conceber seu trabalho como uma forma de documentário. "O vídeo conta a história de um escravo liberto, mas não é uma documentação. É uma história criada, que documenta a atualidade dos lugares por onde ele possa ter passado. Imaginei quais seriam seus pensamentos e desejos. A preocupação é identificar qual a minha posição, como artista, quando me aproximo da história. A meta da arte é produzir um tipo pessoal de conhecimento", define.
Christine Meisner criou uma forma pessoal de organizar sua pesquisa. Esse seu arquivo teórico foi intitulado "O outro lado do que já se pensou". Assim como o caderno de notas de Christine, há muitas outras poéticas contemporâneas que passam pelo mapeamento e pela documentação da história. Entre eles, o The Atlas Group Archive, do artista libanês Walid Raad, e o Arab Image Foundation, parceria de Raad com Akram Zaatari. No Brasil, poderíamos pensar em como a série "Arquivo Universal e outros Arquivos", de Rosângela Rennó, articula essa questão.
Sem dúvida, produzir documentação não é o mesmo que produzir documentário. No entanto, a documentação produzida pela arte contemporânea não está contida em pastas e gavetas. No trabalho de arquivistas como Raad e Zaatari, a documentação não está organizada necessariamente em arquivos, mas em instalações multimídia, filmes, vídeos, ensaios visuais e literários, performances, documentários. Os percursos e as narrativas praticadas pelo documentário contemporâneo estão, portanto, longe de seguir preceitos científicos.
Os métodos documentais do The Atlas Group, por exemplo, são dotados de rigor anti-científico. Seus arquivos são organizados em três tipos: "Tipo A: pastas que contém documentos que nós produzimos e que atribuímos a indivíduos e organizações imaginárias. / Tipo FD: pastas que contém documentos que nós produzimos e que atribuímos a indivíduos e organizações anônimas. / Tipo AGP: pastas que contém documentos que nós produzimos e que atribuímos ao Atlas Group".
Classificado como "Tipo A", o "Fadl Fakhouri File" inclui um caderno de notas com 145 recortes de fotografias de modelos de carros que eram usados como carros-bomba durante as guerras civis libanesas entre 1975 e 1990. Descrito pelo arquivo como o grande historiador das guerras libanesas, o dr. Fadl Fakhouri está para a história contemporânea do Líbano assim como Marcelo do Campo está para a recente produção artística brasileira. A reconstituição da obra em super-8 do estudante de arquitetura na FAU-USP, Marcelo do Campo (1969-1975), é uma ficção de Dora Longo Bahia para jogar uma luz sobre as práticas artísticas ativistas paulistas durante a ditadura militar. A incerteza da autenticidade desses documentos - tanto de Fadl Fakhouri quanto de Marcelo do Campo -, pouco importa quando constatamos que um arquivo criado corresponde tanto à realidade quanto qualquer outra documentação.
No documentário "In this house", apresentado no Videobrasil, Akram Zaatari não inventa histórias como faz seu colega Walid Raad. Mas a carta de justificativa, escrita pelo militante Ali para os donos da casa ocupada à força durante os anos de guerra, poderia perfeitamente ser uma ficção. O vídeo é representativo da linha de atuação da Arab Image Foundation, que pesquisa a memória dos países do Oriente Médio e do norte da África. "Tento não inventar. Algumas vezes, me permito introduzir elementos da imaginação, mas não neste caso", afirmou Zaatari em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo Na mesma entrevista, ao declarar que as experimentações formais da videoarte chegaram a um limite, o artista reafirma o uso do documentário como ferramenta política.
"Vivemos numa parte do mundo na qual a história é um território de discórdias que não raro culminam em guerras. Uma parte do mundo na qual as imagens muitas vezes foram usadas como elementos de evidência para favorecer uma versão dessa história em detrimento de outra", escreveu Zaatari no catálogo do 14º Videobrasil (2003), que dedicou um módulo às práticas artísticas do Líbano. "Imagens existentes têm sido do interesse de muitos artistas libaneses que usaram arquivos, anúncios, fotografias pessoais e outros documentos visuais existentes para refletir sobre e entender o mecanismo com o qual as imagens são feitas ou difundidas, a fim de questionar a história e outros fenômenos complexos que as cercam".
As tramas variam, segundo os entrelaçamentos entre (video)arte e documentário. Trabalhos podem sobrepor várias camadas de informação, sejam elas ficcionais, poéticas, verídicas ou apenas baseadas em fatos reais. De qualquer forma, o documentário praticado hoje pelo artista - e pelo videoartista - procede de maneira a desviar e evitar qualquer linearidade de pensamento que induza a uma verdade. Muito além das experiências formais, esses artistas têm em comum a (des)orientação pela busca de revisões da história.
"A memória coletiva tende a retocar o passado, introduzir cortes, complementá-lo, de forma que, convictos da exatidão de nossas lembranças, nós lhe atribuímos um aspecto que a realidade nunca teve" (citação de autor esquecido, do caderno de notas de Christine Meisner).