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agosto 27, 2005
Um passeio pela exposição de Bruce Nauman, por Juliana Monachesi
Um passeio pela exposição de Bruce Nauman
JULIANA MONACHESI
"Circuito fechado" não me parece o mais apropriado dos títulos para uma exposição de vídeos e filmes de Bruce Nauman. Apesar de o artista ter trabalhado com circuitos fechados de vídeo, obras das quais há um exemplar na mostra em cartaz até 18 de setembro no CCBB do Rio, a maior parte de sua produção em vídeo não opera com esta lógica, nem no sentido estrito nem em sentido figurado. São obras abertas, que podem ser vistas de diversas maneiras, nenhuma delas conclusiva.
Tomemos os primeiros vídeos, apresentados nas duas primeiras salas: "Manipulating a Fluorescent Tube" [Manipulando um Tubo Fluorescente], de 1969, "Thighing (Blue)" [Coxeando (Azul)], de 1967, "Pulling Mouth" [Puxando a Boca], de 1969, e "Bouncing Balls" [Batendo Bola], de 1969. São trabalhos em que o artista utiliza o próprio corpo como matéria escultórica. Dado o caráter orgânico e mutável desta matéria, as "esculturas" resultantes são bastante efêmeras, o que justifica o uso do vídeo para perenizá-las.
Uma artista brasileira que vem à mente é Laura Lima e suas experiências com homens-carne e mulheres-carne.
Nas duas salas seguintes há duas instalações, das quais tratarei mais adiante, seguidas de outros cinco trabalhos em que o corpo do artista é também protagonista, mas agora divide as atenções com um segundo ator: o espaço. Esteja ele investindo contra uma quina de parede ("Bouncing In the Corner" [Batendo no Canto], de 1968-9), caminhando com extrema dificuldade ("Slow Angle Walk (Beckett Walk)" [Caminhada Lenta em Ângulo (Caminhada Beckett)], de 1968), mimetizando poses da estatuária clássica ("Walk With Contrapposto" [Caminhada com Contrapposto], de 1968) ou fazendo experiências em seu ateliê ("Playing a Note on the Violin While I Walk Around the Studio" [Tocando uma Nota no Violino Enquanto Ando pelo Estúdio], de 1967-8, e "Dance or Exercise on the Perimeter of a Square (Square Dance)" [Dança ou Exercício sobre o Perímetro de um Quadrado (Quadrilha)], de 1967-8), a experimentação do corpo no espaço prevalece.
Nestes trabalhos, o vídeo já não se presta a perenizar uma "obra" efêmera, mas, antes, a testemunhar uma prática artística que, não fosse a possibilidade do registro em vídeo, permaneceria oculta e restrita à intimidade do ateliê. Poderia-se evocar, aqui, do contexto brasileiro atual, Amílcar Packer e suas fotografais e vídeos que flagram uma performance privada.
Daí em diante, na exposição, tudo é narrativa ou metanarrativa. Nauman emplastra o rosto e o corpo com maquiagem colorida em videoinstalação com quatro canais. Intitulado "Art Make-Up" (1967-68), o trabalho é um comentário acerca da arte, da sobreposição de camadas da pintura ou de sentidos da arte em geral, uns se anulando aos outros (tanto no caso da pintura quanto no da leitura crítica). "Enquanto ele se mascara, literalmente, o título implica que, ao fazer isso, ele também se cria e se transforma", anotam as curadoras Nessia Leonzini e Lilian Tone. Nauman coloca dois atores diante da câmera conjugando certos verbos com complementos de fundo moral, que se tornam agressivos ou irritados conforme têm de seguir recitando as frases ("Good Boy Bad Boy" [Bom Menino Mau Menino], de 1985).
Nestes exemplos de filme narrativo e/ou metanarrativo, o recurso videográfico se presta à mediação: trata-se de performances concebidas para serem encenadas diante do vídeo; são trabalhos propriamente de vídeo (ou película), pensados para a especificidade deste meio. Sobre artistas pensando a especificidade dos meios, os exemplos são infindáveis, portanto não faz sentido apontar paralelos com a produção brasileira. A lista seria infindável.
Dentre as experiências narrativas, destaca-se "Clown Torture" [Tortura do Palhaço], de 1987. A imagem patética do palhaço, submetido a torturas supostamente risíveis, como ter de segurar com o cabo de uma vassoura um aquário encostado no teto -a sobrevivência do peixe dependendo da frágil resistência do palhaço-, ou ficar preso eternamente em um jogo de palavras, guarda semelhança com a empreitada do próprio Nauman em sua "Caminhada Beckett": fadados ao fracasso, os personagens de ambos os vídeos persistem.
O fracasso e o patético beckettianos, nós os encontramos na produção de Adriano e Fernando Guimarães -que foi abordada pelo Canal Contemporâneo no "Quebra de Padrão"-, nas "performances" de Laura Lima e, novamente, nas obras de Packer.
Talvez o mais interessante da exposição, entretanto, sejam os dois projetos de instalação que dependem do corpo do espectador para se realizarem plenamente: trata-se de "Live-Taped Video Corridor" [Corredor de Vídeo Gravado ao Vivo], de 1970, e de "Video Surveillance Piece (Public Room, Private Room)" [Obra de Vídeo para Vigilância (Sala Pública, Sala Privada)], de 1969-1970. No primeiro, o visitante percorre um estreito corredor até chegar à sua própria imagem capturada por uma câmera e transmitida para um dos monitores que se encontram no final do "túnel". A obra fala da impossibilidade de apreensão da auto-imagem, já que quanto mais o interator se aproxima do monitor, mais se afasta da câmera. Na outra obra, que consiste num circuito fechado propriamente dito, tem-se acesso físico a uma sala, que é supostamente pública, e acesso via monitor à sala que é, por oposição, privada. Mas fica a dúvida acerca de qual espaço fica de fato mais devassado.
agosto 19, 2005
O Lingüista, por Fernando Gerheim
O Lingüista
FERNANDO GERHEIM
Tornei-me um lingüista no momento em que aquela professora de gramática disse que a frase era um período composto de sujeito, verbo e predicado. Como alguém pode falar uma coisa estúpida como essa? Eu a teria agredido, se o mal-estar não fosse maior. Nunca consegui esquecê-la e na situação em que me encontro, atrás das grades, tendo me tornado um dos maiores lingüistas do mundo, desconfio que fui e ainda sou movido pela revolta contra a idéia que ela quis incutir em mim.
Fui aprovado não porque aprendi gramática, mas porque comecei a falar um pidgin particular. Para os outros, passei a encher as frases de redundâncias e reticências, até torná-las sem informação. A literatura me parecia a coisa mais estúpida do mundo, uma espécie de necrofilia verbal.
O fato de Saussurre não ter deixado nada escrito, e seu pensamento ter sido colocado em livro pelos discípulos, me fez começar a deslizar os 's's pelo céu da boca, repetindo: "O silêncio de Saussurre, o silêncio de Saussure ..." Só me interessava pela fala. Mas logo passei a desprezar também o pai da lingüística, bem como à bobagem neurológica que domina a pesquisa de linguagem atual.
Quando comecei a trabalhar com crianças em fase de alfabetização não imaginava que chegaria a esse ponto. Depois compreendi que não havia outro modo de levar minhas experiências adiante. Laura foi a primeira que adotei, mas evidentemente uma criança só não bastava. Tirei várias das ruas, dei a elas casa, comida e a oportunidade de participarem de uma experiência literária sem precedentes.
Minhas pesquisas me conduziram a um caminho inesperado. Alguns lingüistas me acusaram de usar métodos pouco científicos, mas a crítica literária ficou estupefata e o consumidor habitual de cultura de massa, contrariando as expectativas, transformou O silêncio de Saussurre em best-seller.
Ninguém suspeitava que no fim daquele corredor havia um porão amplo, limpo e iluminado, transformado em laboratório, onde as crianças escreviam minha próxima obra. Laura, a única que nunca havia posto uma palavra no papel, acabara de atingir a puberdade. Não sei qual a relação entre as duas coisas, mas no dia em que seu lençol amanheceu manchado, o papel encheu-se de letras numa caligrafia frenética. Cheguei à conclusão de que foi em Laura que a influência de meus métodos heterodoxos teve maior efeito: vida e literatura mantiveram-se autônomas e, ao mesmo tempo, fundiram-se completamente.
A escrita está na moda, mas eu estudo línguas mortas, dialetos subsaarianos e idiomas eslavos ameaçados de extinção. Não é a junção de texto e imagem, seja na sinestesia simbolista, no sonho surrealista ou na gestalt concretista, o que mais me interessa. Nem a caligrafia à oriental. Um dos resultados literários de que mais gosto está em Uromance, que contém, entre outras coisas, o equivalente de distúrbios patológicos como ecolalia, gagueira e mesmo afasia. Mais uma vez, foi a vertente literária dessas pesquisas que obteve maior repercussão. Enquanto a descoberta das relações entre desvios fonéticos e textuais, publicadas à parte num estudo científico, foi contestada por alguns de meus colegas, sua exploração poética recebeu aclamação geral.
Não sou um esteta sádico, como os criadores que cegam o passarinho para o canto ficar mais bonito, mas fiz alguns experimentos neuroliterários: dei um teclado ao autor-cobaia e interrompi a comunicação entre seu cérebro e seus olhos. Exímio digitador, ele escreveu uma narrativa em que os predicados comandavam os verbos e estes atuavam sobre o sujeito:
"Aqui veio ele. A porta abriu-o. Foi entrado na cozinha. O nada não lhe tem. A mesa fumegava no café. Foi sentado e dito: 'Uma fome acordou comigo.' 'A que horas o trabalho tem de estar em você?' 'Uma reunião me marcou cedo.' Ela foi olhada para ele, sorrida e pedida: 'Leite-me o açúcar'."
Um crítico escreveu que "o leitor é um náufrago ao qual toda bóia lançada é uma miragem".
Outra criança, submetida à mesma experiência, começou a juntar os substantivos de sua vivência segundo um critério incompreensível:
"Sinal pote cabelo borracha capa unha sola rêgo parede rádio pisco vinco tapete carga miolo claro fichário estação quadro café ordem lista tomada palito penteado copinho estante bota disquete salto beiço. (...)"
Um crítico chamou a atenção para o fato de que o único verbo no texto era "pisco", o que ele interpretou como um sinal da cumplicidade com o leitor diante de um discurso sob suspeita. Escrita cega me manteve na lista dos mais vendidos. Alguns lingüistas se esforçaram para fazer as teorias que elaborei a partir das mesmas experiências passarem despercebidas, enquanto a obra poética foi traduzida em várias línguas e mereceu destaque nas revistas literárias mais importantes.
Creio que a verdadeira obra, porém, está viva em meu laboratório. Seria eu um autor? As instituições seriam a farsa, só vencida por outra farsa? Tudo não passaria de transformação de idéias em slogans? Devia ter esganado a professora de gramática?
Não, as crianças não se consideravam vítimas de uma perversa disciplina imposta pelo algoz-criador. Eu era mais que um pai para elas. O laboratório não estava escondido no porão para que elas não fugissem, mas para que os outros não entrassem. Evidentemente, todo esse processo criativo custava caro, mas além dos direitos autorais e do salário de professor universitário herdei o suficiente para ser chamado de milionário. Aliás, milionário excêntrico.
Meus métodos são princípios muito simples para não ser enfeitiçado pela linguagem ou aprisionado pela gramática. Laura não sabe nada do mundo, muito menos de literatura. No entanto, dia a dia fico mais impressionado com o que ela escreve. O fato de interceder no modelo de produção é uma decorrência da liberdade de criação, não o contrário.
Uma questão que sempre intrigou os filósofos é saber que linguagem criaria um grupo de pessoas que crescesse totalmente isolada da sociedade. Um ser humano sozinho seria um novo Kaspar Hausen, incapaz de falar, mas um grupo sem tradição nem relação com outras gerações transmissoras de cultura, que linguagem criaria, se é que criaria alguma? Produzi condições artificiais para responder a essa pergunta.
Construí uma cabana destacada para abrigar o grupo e privei-o do contato com adultos, fornecendo tudo o que necessitavam sem manter relação direta com eles. Em alguns momentos, simulei condições de excesso e escassez, mas em geral mantive uma quantidade de suprimentos suficiente para evitar disputa. Suspeitava que, nessas condições, a educação era prescindível e que pôr os instintos no poder não resultaria numa pura competição. Queria saber como seria um grupo social sem as noções de família e propriedade, em que também não houvesse incesto - pois ele estaria privado da presença de país e de pais. Que tipo de linguagem produziria tal grupo?
Também fui processado por agredir um estúpido semiólogo que disse que a linguagem produzia meros signos. O grupo de crianças em meu experimento não fala para comunicar nada além da própria linguagem em sua plena potência. Os signos visuais foram criados antes dos orais, e surgiram vários tipos de escrita diversas da linguagem seqüencial combinatória do alfabeto. Eu tinha nas mãos o embrião de algo de valor inestimável. Havia criado a proto-sociedade sonhada por todos os idealistas utópicos e vim parar aqui! Os idiotas não poderiam compreender!
A fundação da casa é uma viga de ferro lambuzada de graxa, diagonal, que parece uma engrenagem de máquina. Um dos garotos de rua que eduquei gravou umas palavras em torno do pilar numa espiral até o chão, e temos que girar em volta da viga para ler:
Não alfabetizei as crianças segundo o método fonético e visual (ensinando o som das letras e mostrando as figuras correspondentes aos objetos nomeados), mas considerando os cinco sentidos. A linguagem para elas também possui gosto, cheiro e textura. Uma menina alfabetizada segundo esses princípios fez uma palavra "SOM", de cinco centímetros de espessura, e embutiu um gravador. A palavra dizia, quando a gente se aproximava: "IMAGEM".
Outro menino fez uma palavra "JÁ" de grãos de um material levíssimo, aglomerados graças à uma estrutura de fios de nylon. Ele pendurou-a no ar, num quarto vazio, sem janelas, e saiu, fechando a porta vagarosamente. Quando eu entrei, o deslocamento de ar fez com que a palavra se pulverizasse diante de meus olhos.
Uma menina parecia desfiar no espaço as pautas de uma folha de caderno. Ela esticava uma linha preta de costura através de seis lâminas de acetato transparente penduradas no ar, onde estavam inscritas palavras pretas, e a menor brisa ou a aproximação do espectador fazia as linhas se moverem. Na primeira folha de acetato estava escrito "centro" e nas seguintes "furo", "dentro", "mundo", "vento" e "curso" com a letra "s" solta. As palavras eram ligadas pelas linhas em movimento permanente, formando desenhos voadores.
Na festa de aniversário de uma das crianças um menino fez um refresco incolor e pôs cubos de gelo. No interior das pedras estava escrito, com letras impermeáveis: "solução". Bebíamos. Outro enfiou a palavra "silêncio" no congelador.
A atividade no laboratório era incessante. Um grupo de crianças criou uma língua zaum, emitindo onomatopéias, ruídos, gritos, arrotos e peidos, mas mesmo aí eu notava um pensamento construtivo. Outro grupo escrevia tanto no papel quanto no computador uma prosa que insinuava seus próprios e novos caminhos. A casa era uma fonte borbulhante da qual, evidentemente, só uma pequena parcela chegava ao público.
O corredor que levava ao laboratório era largo e no final havia uma parede em que palavras, ou menos que isso, partículas verbais, acendiam e apagavam em néon colorido como um letreiro de farmácia. Eram sete pequenos círculos ou losangos, que lembravam fórmulas químicas, cada um formado por quatro ou cinco sufixos ou prefixos verbais, girando no sentido anti-horário. Esses círculos cinéticos moviam-se sobre uma espécie de pirâmide formada por linhas horizontais que acendiam e apagavam de cima para baixo, uma de cada vez:
Em nossa sociedade grafologocêntrica, o analfabeto é um alienígena. Ensinei Bisnape a ler. Ele era motorista de ônibus prestes a se aposentar. Vivia olhando melancólico ou irritado para qualquer folheto ou jornal que lhe caía nas mãos. Certa vez, quando foi ao oculista, ficou impressionado com a tecnologia da ciência ótica. O oculista receitou-lhe óculos e ele passou a olhar o mundo como quem olhava peixes no aquário. Bisnape me contou que, quando começou a decifrar palavras, seu modo de ver o mundo se transformou de uma maneira parecida. Em vez de apenas contemplar, ele passou a decifrar enigmas. Mas decifrar, ele disse, citando um livro que lhe emprestei, era outro "véu de Maya".
Um adolescente que se integrou à pesquisa compôs um poema para ser lido debaixo d'água. Quando a lâmina transparente e flexível boiava, as palavras pareciam escritas sobre uma folha líquida; quando a lâmina afundava, pareciam impressas debaixo d'água. Além da estrutura rigorosa e do gosto por imagens concretas, havia um forte erotismo. Eu gostava de entrar no banheiro e ler, dentro da banheira cheia d'água, o poema submerso:
musa pura antes, durante
e depois que a desfruto
a imaginação é múltipla
mas com ela eu não simulo
na cama além do teto com a lua
deserta e branca circulo
nua e sem sexo em seu círculo concreto
a uma cratera lunar me uno
de noite na cama desperto
lúcido e cego pro futuro
amo eu próprio e o próximo
deseja o corpo avulso
de noite na cama descubro
os dons do corpo que possuo
amo o próximo e eu próprio
no escuro me possuo
um líquido o corpo derrama
como as lavas do Vesúvio
na erupção do vulcão do prazer
pelas próprias mãos num fluxo
um aroma penetrante emana
das entranhas do corpo em decúbito
a imaginação é múltipla
e num único sou muitos
como uma criança de rua nua
de reflexos me cubro
o nu secreto além do teto subo
e a uma cratera lunar me uno
de noite na cama deserto
lúcido e cego pro futuro
amo o próximo e eu próprio
como um herói trágico convulso
de noite na cama escuto
os sons do corpo que possuo
amo o próximo e eu próprio
me toco como um músico
como uma criança nua quase adulta
nos reflexos descubro
um secreto sigilo dos sexos
e um claro enigma em anúncios
o corpo à noite desperta
sem pijama sobre o chão duro
a imaginação é um luxo
para todos gratuito
um aroma penetrante emana
das entranhas do corpo em decúbito
o real é módico
mas na verdade é pluto
um líquido o corpo verte
na cama do sexo úmido
para matar a sede
meu próprio corpo engulo
Quando eu entrava no laboratório e lia o que Laura havia escrito ficava assombrado. Ela parecia querer formular proposições impossíveis. Em alguns momentos, lembrou-me o exemplo de Chomsky para a forma gramaticalmente correta de uma contradição: "verdejantes idéias brancas dormem furiosamente". Em outras, era como se Laura escrevesse numa língua que ela mesma criara, nos fazendo ver coisas até então invisíveis:
"neblina concreta névoa (maciça desigual) escura sombra de espuma vaga petrificada na queda (pausas) dúbio objeto abrupto contorno (membrana) de vapor úmido ((escuta curvas)) gradações de tons infinitos na noite em negrito disssstaante pequena velocidade exemplo 3 trrrrrrrrr órgão roncador respirando gafanhoto isso não se faz deixe a minha roça em paz o IPCA usado como método para medir a inflação teve alta de 0,34 % em novembro, as tarifas de ônibus subiram mais de 1 %, no ano, alta de 8,7, pouco acima da meta de 8 e meio por cento, no mercado financeiro o dólar, em queda, foi cotado a R$ 2.935, a Bovespa teve forte alta: 2,28 %, batendo um novo recorde de valorização, e se aproximando dos 21 mil pontos, velocidades esssscorregadias se oferecem, exemplo 4 ondulação de 45 chaminés-escuridão-braços glugluglu siiiim eu vou-ou eu vou-ou-ou você vai-ai-ai eu vou-ou-ou flak pata flak e pra quem sabe que a festa não pode parar, e vai rolar a festa vai rolar, você pode comprar também através do nosso site taaaaaaaaaaa naaaaaaaaaaaaa ahhhhhhhhhhhhhhh naaaaaaaaaaaaaaaa amanhece nas planícies do Seringuete, olhos curiosos observam a diversidade da vida na savana, Sara passa horas atenta ao menor movimento, ela é testemunha de um drama que a visível abundância de caça parece desmentir, aqui o elegante guepardo, o mais rápido dos predadores, literalmente morre de fome, esplêndido mamífero de olhos amarelos, já foi no passado a companhia preferida de faraós, príncipes e reis, em relação ao homem é o menos agressivo dos felinos, mesmo dentro de seu território, Sara constatou que as reservas africanas já não são suficientes para assegurar a sobrevivência do guepardo uma cratera invisível me suga no começo do século passado eles eram 1.000.000 em todo o mundo, restam apenas alguns milhares para fora dessa caixa acústica trezentos no parque do Seringuete, o guepardo precisa de uma área de caça de setecentos quilômetros quadrados, aqui esse trecho é dividido por dez, pernas longilíneas, garras que não se retraem, quarenta e cinco quilos de músculos sem uma grama de gordura e me calo controlando as quatro bocas do fogão TUM TURUTUTUTU TUM TURUTUTUTU TUM TURUTUTUTU TUM bom corredor mas pobre estrategista, o guepardo passa as maiores dificuldades para comer, sua arrancada de quase 120 quilômetros por hora nem sempre dá resultado, as pequenas gazelas, suas presas preferidas, identificam o inimigo a centenas de metros vôo em direção ao alvo música breve como a lebre esferografa no ato da caça a voz gravada salta na luz azulada e os leões mostram o seu lado mais feroz, uma zebra de quatrocentos quilos está sendo devorada, quando amanhecer só os ossos serão encontrados (...)"
A escrita caudalosa de Laura foi chamada pelos críticos de cutup da era dos bits e tornou-se mais um best-seller. Vocês podem indagar: que tipo de vivência teria uma pessoa como ela, isolada da sociedade, para produzir boa literatura? Respondo: a de alguém sem falsos ídolos. É verdade que o livro contou com uma promoção extra. Ao escutar a sentença lembrei imediatamente da professora: eu era o sujeito, mas o verbo estava na voz passiva e o predicado era injusto. Como lingüista, sei bem o perigo das sentenças que pressupõem uma realidade prévia. Laura e os outros também. Fim irônico para quem sempre preferiu a diferença à semelhança, base do enunciado universal da lei. Fui condenado por rapto de menores e exploração de trabalho intelectual infantil. Os bons tratos serviram apenas como atenuante. Mas vejo, através das barras de ferro, o poema que Laura projeta na cidade com um canhão de laser.
lâmpadaluadoposte
vigília sob o que dorme
G R A N D E
noitilha dormente
em cartaz a maravilhosa
C I D A D E
das pilhébrias da mente
Fernando Gerheim é escritor
(designer: Fábio Bola. Outros trabalhos em http://planeta.terra.com.br/arte/bola/bala/)
agosto 11, 2005
Conversa de vernissage, por Juliana Monachesi
Conversa de vernissage
JULIANA MONACHESI
Sábado passado rolou a abertura da exposição do argentino Julio Grinblatt na galeria Baró Cruz. Eu fui. E bati o seguinte papo com o artista, que vive em Nova York desde 1997 e fala português muito bem, obrigado:
(Vai uma reprodução bem livre da conversa, de memória)
Este lugar aqui é o mesmo que o Gursky fotografou, não?
Não. Quer dizer, é, mas a fotografia dele é super manipulada, quase não sobra nada do que o lugar propriamente é. Se você puder colocar as imagens lado-a-lado depois, vai perceber isso.
(A foto do Andreas Gursky é de 1997 e tem o título "Times Square"; fui checar no "Art at the turn of the millennium", sem ter a imagem do Grinblatt ao lado, mas deu para perceber que o lugar é uma ficção)
Bem, mas que fotografia mostra algo como é?
Nenhuma. E isto é assim desde sempre, a imagem digital só deixou as pessoas mais conscientes do fato. A série Cielito Lindo trata disto; parte do pressuposto de que a ampliação mecânica é sempre uma invenção.
(Cielito Lindo são ampliações feitas a partir de um mesmo negativo, o registro de um céu azul. O artista leva o negativo a diferentes laboratórios em diversos países e pede que ampliem o céu mais bonito possível)
Estas fotografias (da série "Pasillos", entre as quais está a do prédio na Times Square) são do tamanho de um negativo quase; seu interesse é discutir o próprio meio?
Elas são um pouco maiores que um negativo. Mas meu interesse está sim no meio; por isso é que as imagens têm materialidade; com a desmaterialização da fotografia pelos meios digitais muita gente deixou de considerar que a fotografia tem um corpo.
(As imagens são pouco maiores do que um negativo, mas são ampliadas em um papel fotográfico com o triplo de seu tamanho, o que faz com que tenham uma "margem" branca maior do que a imagem em preto-e-branco; e são penduradas a uma pequena distância da parede, o que acentua sua materialidade)
A idéia de registrar estes espaços públicos de fluxo totalmente vazios tem relação com sua mudança para NY?
Eu comecei a série assim que me mudei, mas não foi nada programado; gosto de fotografar sem elaborar nenhum discurso prévio. Eu me dei conta de que estava focalizando estes espaços, anos depois, olhando dezenas de contatos. É assim que eu trabalho com a fotografia, como editor.
(Julio Grinblatt é desses artistas de absoluta honestidade com sua própria produção. Assim que sistematiza o que está fazendo, passa a fazer outra coisa; isto, claro, em séries de trabalho passíveis de serem feitas "sem saber" o que se está fazendo, o que seria impossível em "Cielito Lindo")