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maio 24, 2005
A máquina do sonho por Rubens Pileggi Sá
Auto-retrato de René Magritte (1898-1967): Delírio Surrealista e pensamento mágico
A máquina do sonho
RUBENS PILEGGI SÁ
[este texto foi escrito inspirado na escrita automática dos Surrealistas e no método de (não) reconhecer as horas pelos aborígines da ilha Aran]
Entre a loucura e a normalidade - Há anos freqüentava o consultório do psicólogo sem conseguir identificar a menor partícula de seu eu. Um dia, falando coisas desconexas, disse que dirigia um carro e... seu terapeuta interrompeu-lhe a fala - antes que seu discurso se perdesse no vazio abstrato das palavras e outro raciocínio incompleto trouxesse novas imagens soltas - para estimulá-lo a falar desta experiência de conduzir, dirigir, guiar, levar em frente algo em sua vida.
Aquilo poderia ser o ínício da construção de uma identidade há muito perdida, onde o dirigir um carro tinha a ver com a própria condução da vida. Em que vários mecanismos de atenção são acionados para se cumprir uma tarefa. A partir de um pequeno estímulo, talvez fosse possível encontrar a chave para que seu paciente começasse a pensar em si como algo íntegro, cumprindo várias funções, em razão de algum movimento que tivesse sentido e direção.
Se uma pessoa acredita que foi D. João VI, Napoleão, ou se é capaz de descrever cenas que diz ter vivido em outras vidas, ou inventa qualquer fantasia que lhe venha à cabeça, por que deveríamos querer encaixar em rótulos de normalidade e sanidade mental o seu delírio? Para nos sentirmos normais em relação ao outro? Ou porque não conseguimos acolher o que ainda resta de vivo e não formatado, nem padronizado, naquilo que nos é sinalizado? Não estaria aí a chance de ampliar nossa humanidade ao tentar compreender o ponto de vista do outro?
Caos e criação - Vivemos em uma época em que se espera pelo novo o tempo todo. Mas essa novidade só é aceita imediatamente quando proveniente de uma ordem racional e evolutiva. Quando a novidade suspende nossas certezas e convicções é logo tachada de absurdo ou loucura.
O Caos sempre ofereceu material de sobra para as mais diferentes formas de expressão humana. Para os poetas, pintores, músicos, artistas em geral, profetas, videntes e místicos, o caminho que vai do caos à ordem e da ordem ao caos sempre foi marcado com os evidentes traços da loucura e do delírio, sem jamais deixar que a ordem e a razão determinem o fluxo do inexorável, que faz parte da vida, assim como o acaso, as intuições, as premonições e as sensações. Afinal, tudo é parte de um mesmo ciclo cósmico, da mesma unidade.
Às vezes, é justamente no estado de delírio, simplesmente movido por uma inquietação ou desejo interno incapaz de ser explicado, que nos tornamos mais fecundos, a ponto de parir, deste estado, uma obra, uma nação, uma cultura, ou uma identidade pessoal estruturada e consciente de nossa presença neste mundo. Essa, talvez, nossa maior missão no planeta. Ainda que, para quem nem ao menos consegue executar uma tarefa simples, como se comunicar, vislumbrar-se em uma cena dirigindo um carro, passa a ser a possibilidade da conquista de um movimento, ainda que mínimo.
E, deixar de avançar nesse momento, ainda que imersos no sono da inconsistência ignorante dos nossos gestos, pensamentos, atos e reflexões, seria como permitir que o tempo aprisionasse nossos desejos de transformação, fazendo de um movimento nascente algo repetitivo, autômato e mecânico e não uma qualidade a ser apreciada como poesia inserida no dia-a-dia. Até porque, em que outro lugar estaria a arte, senão na carne da matéria?
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.
maio 9, 2005
Retardando o tempo por Rubens Pileggi Sá
"Uma e três cadeiras", de 1965, de Joseph Kosuth: o significado da obra como parte dela.
Retardando o tempo
RUBENS PILEGGI SÁ
Dizem que uma certa tribo mede o tempo pelo tempo que uma coisa, em comparação a outra, leva para ser feita. Por exemplo: se alguém pergunta quanto tempo leva para escrever um texto, a resposta pode ser o tempo de um casal fazendo amor. Ou, o tempo que se leva para chegar à rodoviária de um determinado lugar é o mesmo tempo que um cuspe leva para secar, se cuspido agora.
O tempo, medido pelo relógio é apenas uma das medidas possíveis para o tempo vivido. O tempo, medido pelo relógio, não é o tempo que se experimenta, mas o tempo que justifica a produção de mercadorias, o tempo dos negócios, o tempo da economia. O tempo da natureza segue o fluxo do sol, da lua, das marés, das estações, do tempo de preparar a terra, plantar, adubar e do tempo de colher. Mas não quer dizer que isso vá acontecer na abstração do dia tal, mês tal, tal horário, etc. O tempo sabe se administrar sozinho e não precisa de uma máquina para controlá-lo.
Quando Marcel Duchamp, no início do século passado viu um motor em funcionamento, teria dito: "isso não vai acabar bem!". Segundo a escritora de arte Rosalind Krauss, em seu ensaio "Duchamp, ou o Campo do Imaginário", toda a obra do artista seria uma "obra em atraso", no sentido de "estar em atraso" e o de "paralisar", "capturar", "retirar", de se "extrair algo do fluxo temporal". Suas obras falam das marcas deixadas daquilo que aconteceu e que sobrevivem como uma fotografia, um registro de algo passado, um instantâneo acontecido impossível de ser capturado senão por seus indícios, como as marcas circulares deixadas por um copo com gelo sobre uma superfície qualquer.
Talvez o indício mais ancestral que conhecemos seja os rastros dos animais deixados no chão, na areia, na terra. Nossa escritura provavelmente nasceu daí. É a captura de um significado que nos informa que nossa caça ou nosso caçador por ali passou. E nos coloca em estado de atenção e alerta. Nossa memória ganha, assim, uma prova que pode durar por alguns instantes (ou milênios) antes de perder-se, apesar de não possuir o acontecido, porque esse é sempre conjugado no gerúndio, o acontecido está sempre acontecendo...
A arte conceitual começa com uma obra chamada "uma e três cadeiras", de 1965, de Joseph Kosuth. Em uma parede está afixada a definição de um dicionário sobre a palavra cadeira, uma foto de uma cadeira e uma cadeira de verdade. Para quem estuda semiologia, um prato cheio, pois, ao se aproximar do significado que o título da obra nos remete, nos vemos atrás de "pegadas" que fazem da questão visual muito mais uma percepção de tempo "em atraso", do que, propriamente, da representação de uma cadeira e suas possíveis "materialidades".
A medição do tempo não é uma exclusividade dos ponteiros do relógio, nem de impulsos elétricos que nos informam a que horas o trem sairá. Podemos, como os pertencentes daquela tribo citada, vivenciar uma "suspensão temporal de tirar o fôlego" quando nos entregamos à sensação de algo arrebatador, que não precisa de uma explicação lógica e a linearidade do tempo é simplesmente abolida. Um segundo ou um milênio passados no relógio não fazem mais sentido, simplesmente vivemos o fluxo, onde contemplar e agir são partes da mesma dimensão. Não há criadores, nem obras, nem espectadores, nem arte, nem nada. Aliás, nesse momento nem pensar sobre o que quer que seja, pensamos. Apenas estamos vivos, fazendo amor, cuspindo, escrevendo ou lendo, nos deixando levar, é óbvio, por indícios.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.
maio 2, 2005
Menos é mais por Rubens Pileggi Sá
Menos é mais
RUBENS PILEGGI SÁ
"América do Sal
América do Sol
América do Sul"
extraído do poema "hip, hip, hover", de Oswald de Andrade
Condensar - Na tradição dos poetas concretistas (movimento literário lançado na década de 1950), menos é mais. Ou seja, contra a falácia caudalosa dos xaroposos poemas sentimentais, a secura e a linguagem sintética dos signos gráficos produzindo uma linguagem verbal, vocal e visual (verbi-voco-visual) de alta voltagem mental. Afinal, para esses poetas que se apropriaram do pensamento de que poesia é coisa, matéria, menos é mais. Ou, como colocado por Ezra Pound, em seu "abc da literatura", poesia em alemão é "dichten", cuja tradução, em latim seria, "condensare", condensar, em português. Ou seja, linguagem sintética, concisa.
Estética oriental - Em matéria de saber fazer render mais com menos, os japoneses são mestres. Seja na agricultura, fazendo render o máximo com um mínimo de terra, seja na indústria, diminuindo o tamanho dos aparelhos eletrônicos, aos bonsais, que são árvores minúsculas e até os hai-kais, um tipo de poema de apenas três versos, mas extremamente ricos em significação. Significação que chega ao extremo, no caso da pintura, onde o vazio é sempre um lugar a ser contemplado e não a ser preenchido, como se faltasse algo ao espaço.
A estética oriental muito influenciou a arte ocidental, desde os impressionistas, que compravam e admiravam as gravuras japonesas e não há movimento artístico de vanguarda, desde então, que não apele para a síntese, em seus programas e manifestos. Da Bauhaus ao minimalismo.
Mínimo múltiplo comum à arte - Se a escola Bauhaus, criada na Alemanha antes do nazismo, tinha por compromisso padronizar e racionalizar a produção, para facilitar o acesso à massa, o minimalismo, nascido nos EUA, por sua vez, tinha por princípio atingir o grau zero de toda a informação, para se chegar a um "mínimo múltiplo comum" de toda operação estética, em oposição à ironia da "pop art", que era o movimento dominante da época. De todo modo, qualidade e quantidade nem sempre caminham, exatamente, juntas.
De Leonardo da Vinci, sabe-se apenas de um pouco mais de uma dezena de quadros. E, ainda assim, a maioria sem terem sido terminado. A Mona Lisa é um deles. E quem há de negar-lhe a genialidade?
Mondrian, que é um dos mais influentes artistas da primeira metade do século vinte, quis chegar à essência do quadro, pintando apenas quadrados com as cores básicas (amarelo, azul e vermelho) mais o preto e o branco, criando o movimento chamado Neoplasticismo.
Mas é na frase do pintor russo Maliévitch, a época da revolução bolchevique - que pintava quadrados brancos sobre telas brancas - que vem à tona, hoje, por trás de todo esse discurso estético sobre menos é mais: "não mais pintar para a burguesia". Era preciso inventar outros parâmetros também no campo na ação artística. E pensar o espaço - delegado apenas ao funcionalismo arquitetônico - tornava-se uma função também da pintura e da escultura.
Campo ideológico - Decorre, então, desse discurso sobre a experiência do espaço, que a questão não se esgota apenas no campo estético, artístico, mas, também, do trabalho envolvido no fazer, seja ele de que ordem for - assentar uma argamassa ou criar um conceito. Porque não se trata apenas em fazer algo, mas de saber o que se está fazendo, ter consciência desse ato. O trabalho não se justifica apenas pela quantidade gasta de energia para ser realizado, nem, hoje em dia, de sua aparência externa, simplesmente. Ele precisa ser sustentado pelo que tem a dizer quando vem a público. Quais são as suas conseqüências em relação ao meio onde é produzido, por exemplo. Senão, torna-se como o rico fazendeiro justificando seu latifúndio em nome do trabalho árduo de anos e anos de labuta, em um país onde a ganância gera a fome de milhões de pessoas e a concentração de terra é a maior do planeta.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.