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março 31, 2005
Regras éticas e estéticas na criação de arte
Obra colagem de Kurt Schiwitters: Dadaísmo como profecia de um futuro sombrio.
Regras éticas e estéticas na criação de arte
RUBENS PILEGGI SÁ
Pensar na criação artística como um evento de fluxos, processos e continuidades onde a "obra de arte" seja apenas um instante de uma força motriz em eterno movimento e, principalmente, sem abandonar a questão ética e estética do foco, fazendo com que poética e política sejam indissociáveis, continua sendo um dos assuntos mais pungentes e urgentes sobre arte, desde o advento do modernismo, mais ou menos no final do século 18.
Quando se questiona noções como autoria, genialidade, originalidade, criatividade, tentando pensar a poética a partir de outras configurações como a criação coletiva, interfaces entre arte e vida - onde uma e outra se nutrem, confundem e se misturam - e direitos e propriedades, de modo geral, o que se pretende, de fato, é ampliar as possibilidades de criação além do que espera o bom gosto oficial e do que já está formatado como padrão para se pensar a arte em nossos dias.
Assim, não só a feitura da imagem passa a pertencer a um mundo onde tudo pode se transformar em arte, como também o próprio ato de realizar algo passa a ser um evento artístico, também. Por exemplo, incluindo espaços onde não se pensava poder abrigar arte, antes. Ou, com materiais perecíveis, recicláveis. Ou, até mesmo, com o próprio corpo.
Mais, fundindo e hibidrizando linguagens, onde os limites do que é pintura, escultura, desenho, teatro, dança, vídeo, etc. não sejam mais estanques, mas complementares. E, até, onde texto e ação se fundam, imagem e palavra se confundam. A arte já não é somente para "representar" o mundo, mas significá-lo, também. E hoje vivemos com tanta informação e material disponível que se torna tarefa indispensável manter-se atento ao tipo de trabalho que se pretende desenvolver, ainda mais quando se procura atravessar as brechas, vãos e rachaduras que nossa "sociedade de espetáculo" acaba proporcionando. Ou seja, cada vez mais a arte se transforma em "cosa mentale", como já dizia o renascentista da Vinci.
Com tanto material disponível, era de se esperar que uma hora aquela idéia que tínhamos de gênio, de originalidade, de esperança no novo, no moderno, fosse se esgotar. E, então era preciso reciclar as idéias para manter viva a chama da criação.
A colagem, já disse a crítica Rosalind Krauss, inaugura um pensamento onde a arte passa a trabalhar com vários materiais distintos à disposição do artista. E, a partir daí a idéia de colagem se amplia até o ponto de misturar não somente materiais, mas, qualquer forma com outra. Seja no nível das linguagens, seja um rato com uma orelha nas costas, como as recentes pesquisas no campo da genética. O que parecia somente uma brincadeira dadaísta do começo do século passado, tornou-se uma sombria profecia contemporânea.
Quando falamos em plágio, roubo de idéias, imitação, cópia, por exemplo, não queremos dizer, com isso, que tudo está liberado ao bel prazer de quem quiser se apropriar do trabalho alheio, mas de que esta é uma possibilidade de trazer para o mundo da arte e das idéias algo mais que um simples golpe comercial que se tornou regra no mercado. A cópia deslavada do trabalho e da pesquisa alheia.
Talvez, em arte, por uma questão de formação cultural, esse tipo de mecanismo se torna até mais grosseiro, porque se espera do artista alguma envergadura moral e senso crítico de seu trabalho. E, para não confundir o público, mostrando como exótico algo retirado de seu contexto e, vendido como arte em galerias, exposições e museus, por exemplo. Tirar uma árvore da mata e expor suas raízes em uma vitrine, como raridade, pode tornar seu autor com a fama de esperto, mas nunca um artista capaz de pensar sua época. Ainda estamos em tempos onde o marxismo é fundamental para entender o capitalismo e, somado ao enorme desperdício dos recursos naturais, isso de ser contra a própria criação, como se ela também não fosse o "deus ex machina", um golpe de teatro.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.
março 19, 2005
Quando as aparências se diferem
Reprodução de foto de Sherrie Levine, de 1994, de um quadro de Van Gogh: conceito original para pensar uma cópia
Quando as aparências se diferem
RUBENS PILEGGI SÁ
Algo em comum - É a cara do pai. Tem o nariz da mãe. Puxou a tia. Todo mundo tem alguém parecido fisicamente ou espiritualmente igual a nós. Algo em comum que possa nos unir, ou nos afastar de vez de certas coisas, certos hábitos ou até, de certas pessoas. "Alguma coisa nós temos em comum"!
E o que é esse algo em comum? Esse "algo em comum" é o que nos identifica um ao outro. Seja por questão de espaço, interesses de qualquer natureza, percepção de certos fenômenos, ou até nas aparências. E é aí que as aparências se enganam!
Mas se - como dizem - aparência não é tudo na vida, ao menos ela nos identifica quem é o seu portador. Como quem quer aparentar ter mais do que tem. Ou, como quem não se parece mais com a fotografia de sua própria identidade e é barrado por falsidade ideológica. Identidade é tudo!
Identidade Nacional - Um dos conceitos chaves para se entender a cultura nacional foi forjado no modernismo brasileiro graças às influências européias que estavam pipocando no começo do século passado, particularmente em Paris. Era de lá que os filhos da alta burguesia voltavam trazendo na bagagem idéias novas em um cenário que carecia de mudanças. O país deixava de ser exclusivamente agrícola.
A idéia era repensar a cultura local a partir "do caldeirão das raças" formado por negros, europeus e índios, valorizando o que era da terra e se apropriando do que interessava em relação à produção artística, tecnológica e intelectual que havia no velho mundo. Como disse Oswald de Andrade: "só me interesso pelo que não é meu", resumindo a ideologia da Antropofagia Brasileira. Assim como os extintos índios Tupinambás comiam carne de gente em rituais de "retirar a força do inimigo" e essa força "tornar-se" deles, nossos modernistas também passaram a utilizar a mesma estratégia em relação à cultura estrangeira. Até aí nada de novo!
Copiar ou não copiar? - Então quer dizer que a nossa identidade é a cópia? Quer dizer que vale tudo nesse jogo de "ensinar o que eles sabem e tomar o que eles têm", como diz o cáustico ditado? Sim e não é a resposta.
Sim, porque nenhuma imagem, nenhum texto, nenhuma idéia, nenhuma ciência, nenhuma nova tecnologia, nenhum conhecimento humano, nenhuma sabedoria, nenhuma cultura, surge sem que existam condições, contexto e História que as sustentem, que as estruturem. A própria natureza repete seus ciclos, "se copia", favorecendo a época do plantio e da colheita.
E em nossa época, com a disponibilidade de informações ao nosso alcance, repetir, copiar, misturar e combinar parece ser o que de mais original podemos criar. Do clone ao transgênico. Do "scratch" do Hip Hop às plagio-combinações estéticas da música popular.
E a resposta à pergunta acima é, também, não. Porque nesse jogo de vale tudo onde os interesses financeiros, mercantis, comerciais, econômicos se sobrepõem à ética e à vida, o roubo passa a valer como parte do jogo, como se fosse natural deixar que o capital humano fosse propriedade apenas de uma pequena parcela de privilegiados que podem desfrutar dos benefícios da tecnologia.
Em razão disso, o grupo italiano Wu Ming criou o conceito "copy left" em contraposição ao "copy right" dos direitos autorais exclusivos. Quer dizer, é permitida a cópia, desde que para fins não comerciais. Desde que não se ganhe dinheiro sobre a produção intelectual, artística e científica de outrem. Desde que se agregue valor cultural ao produto utilizado. Vale dizer, desde haja comum acordo entre as partes envolvidas. Diálogo.
Hábitos culturais - Aliás, por falar em cópia, quando alguém copia o trabalho de outro alguém, pelo menos há uma reverência pela criação do outro. E quem o faz precisa ao menos se esforçar para fazer igual ou melhor que o original. O pior é quando arrancam o original do seu contexto e o vendem como posse de quem quer que o tenha se apropriado. Seja propriedade intelectual, seja um peixe arrancado do rio. Parece que quando as regras não estão claras, não há regras, já que nossa "tradição" extrativista torna "natural" a apropriação indébita. Crime instituído pelo hábito!
O pai da criança - A questão sobre direitos autorais, realmente, envolve desde grandes gravadoras e produtoras que vêem seus faturamentos caírem com as possibilidades de reprodução de sons e imagens, particularmente pela internet, até movimentos artísticos e filosóficos que, inclusive, incentivam a apropriação do conhecimento como produto comum, de acesso a quem queira utiliza-lo. E isso é um fato quem ganhando corpo em nossa sociedade. O que falta esclarecer, ainda, é que nem sempre o pai biológico da criança é o verdadeiro pai, porque a personalidade e o caráter da criança serão moldados de acordo com a sua formação e é essa a regra ética que deve ser levada sempre em consideração.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.
março 6, 2005
A natureza pura da impureza
"O Abapuru", ou "o que come gente", de 1928, de Tarsila do Amaral: obra chave do modernismo brasileiro.
A natureza pura da impureza
RUBENS PILEGGI SÁ
Em uma palestra, há anos, em São Paulo, na biblioteca Mário de Andrade, o poeta Roberto Piva falava sobre um monge budista que tinha fama de mulherengo, vagabundo e beberrão. Esse monge se defendia dizendo que, se ele gostava tanto de mulher, era porque na outra vida ele tinha sido uma. Se nada fazia, era porque ele já tinha sido um peixe. E, se ele gostava de beber, era porque tinha sido uma abelha em encarnações passadas e gostava de se inebriar com o perfume das flores, com o doce do mel, com o fermentado das uvas.
Essa explanação sobre o tal monge fazia parte de um discurso sobre xamanismo e mudança de alma de um corpo a outro. Como todos sabem, o xamã é o feiticeiro, o pajé da tribo que entra em contato com o mundo dos mortos para trazer mensagens para o mundo dos vivos. É o porta-voz entre mundos diferentes.
Em uma palestra do antropólogo Viveiros de Castro, ano passado, na Universidade Estadual de Londrina, falou-se sobre mitos indígenas, xamanismo e da crença que os índios têm de que uma onça pode ser um companheiro da tribo ou ser ele próprio transformado em onça.
O problema, dizia Viveiros de Castro é "na hora em que a onça vai beber água", ou seja, o ponto de vista da onça. Ela pode simplesmente ver não outra onça, mas um apetitoso porquinho do lado dela, dando bobeira. Aí prevalece a lei do mais forte. Se o índio vencer a batalha, sua onça era uma crença verdadeira. Se a onça vencer a peleja, valeu a crença dela.
Fora a galhofa que salta desse tipo de história, o que está em jogo é um pensamento de mundo, ou mundos, cujos mitos não temos noção completa de seu significado. E só podemos agir por especulações. Em suma, quando uma coisa entra em contato com outra, o que é que resulta daí? Se algo passa a ser completamente outro, perde-se a idiossincrasia, a diferença. Por outro lado, se a mudança, a passagem, não se fizer completamente, como dizer que algo realmente mudou? Um desses casos é o contato de brancos ocidentais com culturas autóctones, invariavelmente impondo seu modo de vida consumista industrializado. O resultado desse contato, no entanto é - ou deveria ser - que uma cultura mais flexível se tornará não outra cultura, mas um híbrido entre uma e outra.
Pensar no que é o Brasil, por exemplo, onde a convivência de etnias diversas ocorre sem grandes traumas (se excetuarmos o que foi com os índios e os negros, por exemplo), ou na apropriação de elementos de outras culturas - como faz a capoeira regional ou a umbanda - então podemos dizer que nos interessa o contato com outros povos sem perder o que de mais "naturalmente" nosso existe, que é, justamente, o hibridismo, a miscigenação, enfim, o que não é nosso. O impuro tornado autêntico, próprio.
Mas, se algo se transforma em outro para tornar-se ele mesmo, então nada muda. Porque um e outro são o mesmo e a matéria não se perde, apenas se transforma, muda de direção, desloca-se de seu conceito original. Tudo se torna, por sua vez, híbrido. E a única pureza, paradoxalmente, é o hibridismo.
É exatamente isso o que a arte brasileira contemporânea reivindica. Melhor, é isso desde, pelo menos, o início do modernismo. Não uma arte "original", "autóctone", "primitiva", fechada dentro de seus códigos, indisposta ao diálogo, mas uma arte, justamente, em sintonia com temas e linguagens das mais diversas fontes. Conectada tanto com a arte realizada na Palestina quanto, por exemplo, nos Estados Unidos. Mais, que hoje consegue se viabilizar e se tornar visível graças à abertura e caminhos realizado por artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark, via Oswald de Andrade, que já dizia, começo do século passado, que "só interessa o que não é meu", como "lei do antropófago".
Aliás, como "lei antropofágica", tanto na linguagem como no tema de trabalhos de arte, seja na literatura, na plástica ou no cinema, podemos pensar nas montagens do cineasta russo Sergei Einsentein, onde duas seqüências de cenas resultavam em uma terceira que não era a soma das duas anteriores, mas um desfecho de uma narrativa, assim como é a poesia japonesa do hai-kai com seus três versos curtos, sintéticos e precisos, de alta voltagem poética. E também no livro "Meu tio o Iauaretê", de Guimarães Rosa, em que o personagem acaba se transformando em onça, atacando finalmente o interlocutor/leitor curioso por saber quem é aquele sujeito contando histórias ao pé da fogueira.
Como disse o Tempo ao príncipe Rama, no livro sagrado Hindu, Ramayana, "O caminho de Rama": "É tudo um, Rama, todo o tempo que já foi ou que será é um... o começo e o fim são difíceis de se ver e são um, Rama... - O Tempo sorriu. - E também minto muito, Rama... devo reconhecê-lo..."
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.