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junho 16, 2004

Seca criativa na chuva

nunoramos.jpg

Vista parcial da obra "Morte das casas", do artista Nuno Ramos, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo: água desce da clarabóia 20 metros abaixo.


Seca criativa na chuva

Rubens Pileggi Sá

Não é só no contrapé do tempo que nos enroscamos sem conseguir realizar o que pretendíamos. Às vezes, por falta de disciplina ou, mesmo de criatividade, deixamos que oportunidades passem. Esperávamos por algo que deveria ser feito caísse do céu, mas do céu, tem caído é muita chuva, ultimamente. Procurar a solução dos nossos problemas além do que está ao nosso alcance pode gerar a frustração e a amargura de ter que recomeçar tudo outra vez, sem ter chegado a qualquer conclusão. Como se diz: só a fé não resolve! Eu me explico: tentando escrever um texto sobre criatividade, percebi, em certo momento, que não tinha o que dizer. Quer dizer, não que não tinha o que dizer, mas tudo parecia tão longe de mim para ser dito naquele momento, que o texto começava soar falso, insincero. Não era o caso de discorrer sobre a teoria da criatividade, mas de ser criativo o suficiente para entregar um texto.

Para piorar a situação, tinha cinco ou seis coisas a fazer no mesmo instante, para entregar no mesmo dia e não havia me programado direito. E, ainda por cima, chovia. Chovia muito. Ou seja, tudo certo para dar errado: a chuva atrapalhando sair de casa, a falta de planejamento para resolver problemas, o nervoso que isso dava, o "espírito" que não abaixava, as idéias que não batiam e a "falta" de criatividade. Bem feito! Quem mandou deixar para última hora? Minha consciência me condenava. Telefonei desmarcando a entrega do texto e fiquei de mau-humor, mordido, ferido em meu orgulho de pessoa criativa. Algo ruim de sentir, sem dúvida. Até porque, em outras ocasiões, consegui escrever na correria e deu tudo certo. Agora tudo tinha ido água abaixo! Eu disse água abaixo? Mas porque eu não escrevi sobre a chuva? Sobre o fluxo das idéias escorrendo pela superfície da realidade? Sobre tudo o que estava encharcado? Sobre os sentimentos que a chuva traz?

Enfim, poderia ter escrito sobre o meu próprio recolhimento, ou mesmo sobre a frustração em não conseguir escrever o texto em um dia molhado como aquele. E tinha do que falar. Por exemplo, sobre a instalação que o artista Nuno Ramos realizou no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, que vale a pena comentar. Através de um sistema de bombeamento de água, o artista cria uma chuva dentro do edifício, no centro da cidade, como se fosse uma cachoeira despencando no meio dos quatros andares do antigo prédio restaurado. Algo pungente, forte, bonito de se ver e espetacularmente estranho. Quem quiser ver a exposição, que conta com outros trabalhos também, tem até o dia 20 de junho para ir à São Paulo.

Agora, tentando agarrar uma réstia de sol nesse dia frio, fico pensando que usar a criatividade é saber fazer acordos com o tempo. E, depois, fluir, como faz a chuva.

Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.

Posted by Rubens Pileggi Sá at 4:03 PM