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abril 29, 2004
Carta desistência para um colunista de arte
"Shoot" (1971). Performance de Chris Burden: "Às 19:45 fui baleado no braço esquerdo por um amigo. Era uma bala blindada de um rifle calibre 22."
Carta desistência para um colunista de arte
Rubens Pileggi Sá
Caro amigo: Pego-me, às vezes, em um beco sem saída que me obriga a repensar tudo o que já foi feito e pensado em arte e não consigo achar um meio de continuar a desenvolver algo que possa parecer, ao menos de longe, original e entusiasmante a ponto de criar uma situação que possa ser lida/vista/usada como algo interessante. Em outras palavras, falta-me, às vezes, inspiração para fazer o quer que seja, ou esteja ligado à arte. Tudo parece velho, gasto, usado, feio, ou, quando muito, insosso.
Abro um livro de Arte Pop e, fora uma ou outra coisa que ainda me faz sentir excitado em ver aquilo, o resto pertence a uma época e a um movimento que não quer dizer nada além de uma mera exibição de coisas de um período que já passou, como peças de um museu de cera.
Tomo às mãos um livro de arte contemporânea, folheio suas páginas e digo a mim mesmo que tudo já está dito, tudo feito, não há mais nada de novo para se fazer. Aquilo não me traz mais prazer, como acontecia quando da descoberta desse mundo que se descortinava, antigamente.
Leio, desatentamente, sobre as discussões e debates da categoria, suas infindáveis reuniões para chegar a um acordo quanto à liberação de verbas para a classe, ou, senão, manifestações e protestos contra isso ou aquilo, e nada disso me parece suficientemente sério para que eu possa me entregar de corpo e alma nesse tipo de tarefa. Toda semana recebo pelo menos um ou dois abaixo-assinados, aos quais não dou a mínima importância.
Mesmo os meus trabalhos, meus projetos artísticos, parecem não significar mais aquele modo diferente de ver e responder ao mundo que eu creditava como significativo no contexto atual em que vivemos.
Chamam-me para ir ver exposições em cartaz de quem quer que seja e aquilo me parece uma perda de tempo enorme. Pedem para que eu me atente a um certo tipo de detalhe, ao tratamento dado aos cabelos das Madonnas, ao fundo dos quadros, à maneira como foi pintada tal tela, etc. e isso tudo me cheira a mofo. Não tenho mais paciência para a história, para as descobertas científicas ou tecnológicas, nem para as novidades do momento. Seja qual for a área de conhecimento. Não consigo mais me sentir curioso com os destinos da civilização, ou empolgado com qualquer descoberta, eis a realidade.
Um beco sem saída. É isso. Não tenho como deixar de admiti-lo. A relação que sempre me interessou discutir entre arte e vida chegou a tal ponto de saturação que a arte, de fato, já não me interessa mais, e a vida, por essa razão, perdeu todo seu encanto, já que era esse o lugar onde se operava a magia da arte. E, além disso, se tudo é arte, nada também o é, portanto, não há razões para ficar perdendo tempo com isso, porque o enigma foi descoberto e o brinquedo já não tem mais graça.
Tentei, você sabe, partir para a relação com grupos de arte como uma alternativa criativa. Dividir as autorias, inventar "sabotagens poéticas", como prega aquele autor, o Hakim Bey, em livros como "Caos" e "TAZ - zonas temporárias autônomas", enfim, criar um trabalho coletivo, sem dono, sem a tirania da obra ou da autoria. Mas o fato é que as idéias não caem do céu e, com o tempo vai-se desanimando - cada um quer, pensa, faz e tem necessidades diferentes dos outros - e caindo em um certo marasmo que se torna fatal para esse tipo de consórcio.
Cumplicidade - Eu sei que você vai dizer que tinha me avisado para esse xeque mate que eu acabei por levar nessa partida de xadrez em que o pensamento é só uma das questões em jogo, mas eu nunca tive vocação e habilidade suficiente para me transformar num virtuose e - você me conhece - eu acho isso muito chato, porque depende apenas de treino, como se o artista fosse uma espécie de competidor que tivesse como meta bater algum recorde ou chegar a algo ideal. Além do que, essa idéia de artista operário que tem um trabalho a cumprir sempre me pareceu absurda para quem tem como meta, justamente, a criação. E a criação em arte supõe uma tal liberdade, que o prazer e o fazer devem andar sempre juntos. Obrigação lembra à escravidão! Pelo menos é isso o que eu penso.
Gostaria que você me compreendesse e me convidasse para uma boa troca de idéias. Quem sabe não fizesse um pouco de sol nesse dia cinzento em minha cabeça e alguma esperança qualquer saltasse diante de meus sentimentos tão tristes de que, ao renunciar à arte, isso me levaria, obrigatoriamente, a renunciar, também, a vida. Como a amizade não acaba, conto com a sua cumplicidade. Seu ***.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual. (O livro está a venda na Livraria do CANAL)
abril 26, 2004
Uma visão de artista
Detalhe da exposição "Mémisis", de Artur Barrio, ocorrida em Londrina, em 2001, onde se lê: "o espectador não faz a obra". Foto de Fernanda Magalhães.
Uma visão de artista
RUBENS PILEGGI SÁ
Parece até karma de artista. O sujeito morre incompreendido, mas as idéias ficam. E de que o artista foge da realidade, trocando-a pelos seus delírios. O artista, no imaginário popular, como o louco, o demiurgo, o xamã, o iluminado pelos deuses, nascido para morrer pobre e sem reconhecimento pela sua obra, em vida. O defunto era uma pessoa boa, dizem, quase que sinceramente, os necrófilos. A noção de que o artista está em outra dimensão é, muitas vezes, reforçada pelos próprios artistas, mas é apenas a visão estereotipada de um certo tipo de romantismo.
Um caso contado foi que o poeta Carlos Drummond estava sentado em uma mesa de bar, tomando seu café, quando foi abordado por alguém que se auto-intitulava poeta e que gostaria de saber da opinião do autor de poemas como "e agora, José?" se este achava que os poemas que trazia nas mãos poderia fazer dele alguém reconhecido como poeta. No alto de sua experiência, o velhinho lhe disse que já era muito escrever poemas. Quem tinha de dizer ou não se alguém era poeta eram os leitores. E não quem tivesse a tal pretensão de se julgar um.
Artista, quem é? E como é que a arte pode acontecer entre nós? Porque se não há leitores, público, espectadores, também não haverá leitura, espetáculo. Nada poderá ser chamado OBRA. Se o outro é quem diz quem sou eu (como na historinha acima), então a relação deve ser complementar, para que aquilo que denominamos ARTE possa acontecer.
Aliás, essa é uma longa história: parangolé, Borges, Leminski, objetos sensoriais, etc. Ou seja, tudo o que já foi dito, lido, visto e ouvido, desde, pelo menos, o final dos anos 50. E que vai, por exemplo, da noção do público como participador, até a abolição de um lugar específico para a arte.
Quer dizer, arte não é só o que está determinado a ser arte (às vezes nem é), mas aquilo que cada um pode ver como tal: um pôr-do-sol ou uma hecatombe. Um lixo jogado no chão ou uma partida de futebol, por exemplo. E mais: quando, a partir de um olhar, consegue-se estabelecer múltiplas outras relações de significados que se desdobram além do acontecimento ou da imagem vista. Relações que estão além da obviedade que os sentidos estão captando no momento, como as palavras que se abrem para outras dimensões de leitura; das imagens que contêm força além de sua aparência; ou de movimentos que se desenvolvem dentro de outros movimentos, abertos a inúmeras situações.
A arte não é de todo mundo que vê, lê e sente algo como sendo arte - estando dentro de um espaço institucional ou não - e nem do artista como um gênio incompreendido, como se este fosse alguém vivendo em uma dimensão fora da realidade, mas ela é e está nessa capacidade de transformar uma coisa em outra, de trazer à luz algo que, muitas vezes, já estava naquele lugar, naquele momento o tempo todo, sem que ninguém ainda tivesse percebido. Ela é fruto da inteligência, de um tipo de inteligência especial, sensível, mas não deixa de ser do mesmo tipo de inteligência necessária para as descobertas científicas. Afinal, a gravidade existia antes de Newton!
É isso que faz a arte tão presente em nosso mundo. Mas que nos obriga, também, ao esforço contínuo de pensá-la não só como algo real, mas como parte do real, ao mesmo tempo. E o fato de alguém ser chamado de poeta, de artista, não muda nada a essência de um poema inspirado na vida. O que muda sempre é a nossa maneira de encarar os fatos, buscando evitar estereótipos de como alguém é ou tem de ser.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual. (O livro está a venda na Livraria do CANAL)