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dezembro 11, 2003
O amor físico
Foto tirada de desenho anônimo, feito no asfalto, por crianças - RPS.
O amor físico
(para ler ouvindo Je t'aime... moi non plus, de Serge Gainsbourgh)
RUBENS PILEGGI SÁ
Transcendência e imanência podem ser apenas um modo para se encontrar conforto na matéria e no espírito quando se deseja perder de vista o risco que é ESTAR vivo. A razão tem seus mistérios. E quando mais avaliamos nossa chance lógica de pensar o que pode nos acontecer, menos vivemos, porque conceituar, dar nome às coisas pode ser tirar delas a poesia. Portanto viver a transcendência na imanência é como saborear cada minuto como infinito e este como passagem. Tudo está em circularidade. Toda matéria tende à entropia dentro desse Caos que se chama Vida. Toda alma quer ser carne.
Há um ditado infame que diz: "para curar um amor platônico, o melhor remédio é uma trepada homérica". Uma blague que nos remete diretamente aos Helenos (aqueles sacanas!) e assim lembrar Platão e sua idéia de ideais e transcendência, de onde o cristianismo tirou sua base.
O amor físico, carnal, pode parecer muito superficial para um cristão, por exemplo. Principalmente para a religião católica, que vê no apego à matéria um pecado a se libertar.
Mas não somos apenas espíritos insaciáveis. Menos ainda matéria com as almas condenadas ao inferno. Sentimos a felicidade e a infelicidade do momento e só. Desejamos a intensidade, embora, cada vez mais, a sociedade se veja diante de um dilema que é o de desejar sem correr perigos. Impossível, a não ser sustentando o (falso) moralismo das relações previsíveis e aparentemente seguras, baseadas na repressão. E tudo o que é reprimido tende a se liberar de forma explosiva.
Um dos fundadores do concretismo, o poeta Augusto de Campos, tem uma frase lapidar nesse sentido: poesia é risco. Na década de 1990, foi projetado sobre os prédios da avenida Paulista, em São Paulo, esse seu poema, à luz de raios laser, que passava de um movimento impreciso de uma linha se formando no espaço até o ponto das letras se tornarem inteligíveis.
Star! Estar demanda uma experiência que enriquece a idéia que temos de Ter ou Ser. Porque Estar não se apega ao tempo, mas ao fluxo do movimento do mundo. É algo que parece tão fácil perceber, mas, ao mesmo tempo, um exercício de entrega em que cada evento é sempre uma nova experiência. E é essa concretude a mais sujeita a ilusões. Quantos artistas reconhecidos como anti-institucionais, por exemplo, defensores do fluxo e do processo, acabam se tornando artistas oficiais de plantão anti-institucionais! E com discurso anti-acadêmico e tudo. Com um cordão de puxa-sacos para aplaudir. É. Ser do contra às vezes rende... (obviamente isso não é um fenômeno que ocorre só na arte).
Mas e o amor? Amar não é correr riscos? Risco de dor e prazer. Risco ao se jogar de corpo e alma em uma relação que não pode exigir absolutamente nada um do outro senão a entrega.
O Kama Sutra é uma prática oriental de conseguir o maior prazer físico pelo maior tempo possível e, ao mesmo tempo, elevar o espírito pela prática sexual. Mas, e nós, ocidentais, mal iniciados até em vídeo de sexo pornô? Porque não aceitamos o sexo sem amor? Amor talvez seja um termo muito forte, talvez paixão. Ou afeto. Por que entre o sexo e o amor pode haver só o desejo, se isso satisfizer aos parceiros e se houver consenso e consentimento. É isso que permeia a idéia do que seja arte. Porque arte não é apenas quadros para pendurar na parede da sala de estar. É, antes de tudo, uma atitude perante a existência.
O amor físico é como uma pedra qualquer em meio ao rochedo, no meio de uma paisagem. Ela já não necessita ganhar espírito pelo cinzel do escultor, para se transformar em arte. O espírito já é nela encarnado. E mais: não se necessita arrancá-la de seu lugar de origem para transformá-la em obra. Ela já é obra enquanto parte do processo da natureza. Uma deusa no meio da terra. Sem metafísicas: simplesmente porque mais do que ter sua forma reconhecida como bela, de ser ela a pedra que a todos revela sua nobreza concreta, ela faz parte de uma passagem onde tudo lhe toca e é tocado. Sem outra subjetivação senão a de ser pedra. E isto lhe basta enquanto matéria.
Rubens Pileggi Sá é artista e lançou em 2003 o livro Alfabeto Visual com os textos da coluna de mesmo nome, publicada semanalmente na Folha de Londrina.
Loucura, milagre e a arte de se locomover por brechas
Profeta Gentileza (anos 90) em ação nas ruas do Rio de Janeiro.
Loucura, milagre e a arte de se locomover por brechas
RUBENS PILEGGI SÁ
"Os loucos são como os beija-flores. Estão sempre a dois metros do chão."
Artur Bispo do Rosario
A figura do louco está associada com uma imagem romântica, de dimensões lúdicas, quase abstratas, como se ele estivesse "fora do mundo" , não tivesse um lugar de existência, quase como não se tivesse que pensar sobre sua condição na sociedade.
Nomeamos as coisas para que possamos compreendê-las, mas ao nomeá-las, perdemo-las, pois que elas são substituídas por um código, por uma numeração, uma "identidade reconhecível" que é apenas uma intermediação da coisa mesmo, conosco. Não mais elas, mas algo entre elas e nós.
Louco é quem, por amor, é capaz de cometer atitudes extremadas. De quem, por paixão, entrega-se a uma missão. Alguém que, sabe-se lá por quê, comete atos aparentemente sem sentido. Louco é quem aceita as regras da loucura para disputar um jogo que sabe, de antemão, quem será o vencedor da partida. Louco o santo, o poeta, o amante. O passageiro de um ônibus lotado, o motorista dentro de um carro com ar condicionado, o pedestre atravessando o sinal fechado. O ir e vir do trânsito na cidade sem que ninguém se pergunte o que, de fato, faz ali. O engraçado da loucura é que, por mais risível que sejam seus efeitos, ela não possui nenhum humor.
Falar de arte e loucura é como chover no molhado. Se a dimensão da loucura, do absurdo, da inutilidade, do contra-senso, não tiver assento na "alma" de todo e qualquer artista (artista como abreviação de uma multidão de "loucos"), então há algo errado que, com certeza, vai fugir dos parâmetros estabelecidos, fazendo isso se tornar, novamente, uma atitude artística. De Van Gogh, Artaud a Bispo do Rosario, Jardelina, Gentileza. Dos dadaístas, anarquistas aos doidos/santos/profetas do agora. Sempre com um ingrediente de espiritual, mágico, encantador, inspirado, perpassando a dimensão do Ser.
E esse "ingrediente" faz com que o "louco" se aproxime da figura do "xamã" , do mago, do bruxo, mesmo que o milagre proporcionado seja apenas uma canção: "todos choram/ mas, só alegria/ me perguntam o que é que eu faço/ e eu respondo: milagres" (Cazuza).
E, junto à loucura - que implica também em ousadia e desprendimento por parte daquele que a usa (quando por ela não é usado) - os milagres são coisas inexplicáveis da vida, e a gente só sabe deles depois que acontecem.
O milagre dá ao jogador o lado exato que deveria cair o dado. Unge o amante com o amor do ser amado. Transforma o esforço de linguagem em aliado, faz o poema ser brotado. Oferece ao santo o sacrifício, para que sua missão tenha resultado. Ela acontece todos os dias, todas as horas, o tempo todo, muitas vezes sem que a nossa atenção esteja voltada a esse fato.
Mas, se a loucura é um estado em que, por si só, não produz consciência, o milagre, por sua vez, também não altera o estado de realidade das coisas. Mesmo a arte, hoje, da forma como é concebida, não consegue tocar as pessoas, sensibilizando-as. Ou, se o faz, seu resultado é quase inócuo. Assim, é preciso compreender e aceitar os fatos como eles nos são apresentados, como se o mundo fosse um palco, e a loucura, o milagre e até a própria arte fossem personagens que nos indicassem passagens para nos locomovermos entre frestas e brechas. Entre os vãos existentes nas rachaduras da realidade em que vivemos.