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novembro 26, 2003

O último poema: um texto homenagem

Veja a imagem

Carlão, atrás de uma árvore, depois de uma performance coletiva no Restaurante Universitário (UEL - Londrina), realizada em setembro de 2003.

No hospício

No hospício
As noites caiam do teto
Como insetos pejados de brilho
No hospício
Os dias rolam sobre os ladrilhos
Com suas bocas cheias de flores concretas
No hospício o silêncio
Aprendeu a ficar inquieto
E os gritos desvendavam
Sonhos secretos
De multidões de criaturas
O hospício definitivamente
Não é a casa
Da loucura.
Carlos Zago


Escreveu seu último poema na poça de sangue que refletia o azul do céu, em uma tarde qualquer, dia alucinado, marca deixada para trás, rastro.
Alguém se abandonava como uma bituca de cigarro que voa da sacada do 3º andar para morrer na rua, brasa espatifada contra a sarjeta. Morreu, brother? Morreu!
Deus. A história. A arte. A filosofia. O homem. Pois é, morreram todos. Faltava acabar com o quê mais? Só o suicídio. Pai, mãe e mestres já estavam mortos. Matou todas as idéias, todos os ideais.
Morreu como um anticlímax. Coisa chata de falar. Antes de tudo era nosso amigo. E deixou poemas para a gente ler.
Embora sua arte esteja além da complexidade que a sua obra poética possa suscitar, temos as atitudes de um ser convulsionado, vivendo seu personagem como único contato que se permitia: para a profundidade da expressão, quer dizer, a autoconstrução de um mito.
Lembrava quem? Ah, deixa pra lá! Outro gesto sujo, outra forma de lidar com um cara que marcava sua presença, o tempo todo, como um meteoro incandescente riscando o céu noturno com sua face irisada. Atitude, desconcertos! A cabeça não parava de pensar, mas não em idiotices terrenas, a começar pela mídia, cagada; os amigos, um peido. Ora, dou de frente com um bruxo e já o reconheço!
Pode chamar de gênio, bobo, pateta. Artista, vigarista, tarado. Pedófilo, necrófilo, viado. Qualquer papel social dado, qualquer troca com o Estado. Qualquer tentativa de se tecer um tratado. Aqui, um documento, registro, retrato. Estabelecida a cópia, vamos alegar o quê? Coisa mais sem originalidade. Mais um suicídio de poeta. Que papo!
Morreu por Amor, Êxtase e Desespero. Mais um jovem virou estrela e se acabou em uma Londrina triste, com suas banalidades acadêmicas, seus aspectos jurídicos, burocracia, trânsito, instituições bundas. Cidade que mal viu essa flor de Lótus se destacar da multidão de esgotos onde paira uma mutilação. Párias. Pare. Pare!
A cura de uma criatura caricatura de si. Em estado absoluto. Suportado pelo vento. Lá vai a bituca desprezada rumo ao Nada! Poemas e poemas jogados fora. Iria poupar-se? Ora, por Kurt Kobain! Por Jim Morisson! Raul! Leminski! Cazuza! Noel! ________,.!!!!!!!!!!!!!!
Esses moços! Eu entendo a. Mesmo aqui no samba-canção: garotas, dêem aos seus namorados, mas lembrem-se do Insatisfeito, do Por Fazer-se, do Incompleto, o homem que tinha "rabia al silencio": me amem, se puderem. Eu caio fora dessa PRA UMA MELHOR. Fui. Scraaaaaaaaaatcccchhhhhhhh nhê innnnnnnn tum.
E voou. Para seu último poema. Sua derradeira performance como artista. O personagem assassino de seu autor. E deixou-nos sós, no escuro da noite, bocas abertas a olhar estrelas em vão.

Posted by Rubens Pileggi Sá at 2:32 PM | Comentários (2)

novembro 19, 2003

O corpo e além

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http://www.stelarc.va.com.au


O corpo e além

RUBENS PILEGGI SÁ

A questão do corpo é a própria questão do tempo. E o que é o tempo nesses termos em que estamos querendo nos distinguir, ou seja, perpassado pelo que se convencionou chamar-se arte? Já que passado, futuro e presente se superpõem em camadas indistintas. Sim, ainda que por representação. Foi essa a grande questão do cubismo: trazer à frente todas as faces do objeto representado. Como já se falava na física: simultaneidades.

O tempo como a quarta dimensão do espaço: a-cronos. Que é também música sem ritmo, melodia ou harmonia. Arte sem arte.

Desde que Nietszche propôs a morte de Deus – quando seu “Zaratrusta” chega a feira, depois de anos meditando e compreende que os homens de sua época O mataram – nada mais parece deixar de sucumbir à tentação de Tanathos.
Depois da morte do Pai, o sexo com a mãe (Freud: conceito edipiano), depois de Dada. Da morte da arte, da morte da história, o que mais falta matar? Somente com o suicídio ainda nos é permitido sonhar: “/// primeiro assassine a IDÉIA – exploda o monumento dentro de nós - & então, talvez... o equilíbrio do poder se inverterá. Quando o último tira em nosso cérebro for assassinado pelo último desejo não satisfeito – talvez até mesmo a paisagem ao nosso redor comece a mudar... /// ” (Hakim Bey – CAOS – terrorismo poético e outros crimes exemplares).

“O corpo é obsoleto” – diz Sterlac, um artista australiano que se utiliza instrumentos médicos, próteses, robótica, sistemas de realidade virtuais e internet para explorar interfaces íntimas e involuntárias com o corpo. Tendo feito mais de 25 suspensões com ganchos presos ao corpo, colocado um terceiro braço ao corpo, filmado o interior do seu corpo, inventado uma orelha adicional para ouvir RealAudio, etc. sua visão parece-nos ser a de que, no momento em que a ciência pode manipular realidades como mutações genéticas, clones, alterar cores, formas e texturas da pele, ou fazer nascer uma orelha humana nas costas de um rato, por exemplo, o corpo passa a ser mera massa inerte, carcaça a ser carregada por um dispositivo qualquer, artificial ou não.

C-O-R-P-O cor. O corpo ainda não existe, ainda não nasceu. Sua dimensão está além das possibilidades de sua manipulação. Diante da contemplação de um corpo qualquer: um cara musculoso, uma gostosona qualquer. Diante do uso do corpo por um bailarino, um ator, um esportista, por exemplo, tudo o que podemos reter é a contemplação, algo que nos foge, algo passageiro que escorre, líquido.

Desse modo, o corpo é, ele também, parte de um grande fluxo, mutável, mutante. Ele é seu próprio discurso. Seu lugar é reinventado, ressignificado a cada vez: seja em uma pintura do século XVII, em que o artista representa um grupo de médicos dissecando um cadáver (Rembrandt: Lição de Anatomia); seja quando o corpo representado é a própria tela pintada (modernismo); seja quando o artista torna-se a própria arte (além-Pollock); seja quando o corpo só tem existência na medida em que a relação com o objeto da arte seja participativa (Oiticica: Parangolé); seja quando ele se torna um conceito (arte como idéia de arte); uma ausência que o torna ainda mais presente; ou seja quando ele se perde de si e se torna parte do cotidiano, do próprio corpo coletivo, agora tomado como corpo a ser desenvolvido, a se fortalecer em outras instâncias que podem se chamar arte, ativismo, ou aquilo que está diante do seu nariz é você quem inventa o que é. Desde que a idéia de um ego seja substituída por um after-ego. Ou por um crime poético que lhe valha o nome.

Rubens Pileggi Sá é artista plástico e lançou em 2003 o livro Alfabeto Visual com os textos da coluna de mesmo nome, publicada semanalmente na Folha de Londrina.

Posted by Rubens Pileggi Sá at 1:45 AM