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agosto 28, 2021
A inconstância do olhar sobre o mundo por Bernardo José de Souza
A inconstância do olhar sobre o mundo
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
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Tudo começa com um olho. Quem olha para onde, para quem?
Há sempre três olhares convergindo em um mesmo retrato: o do autor, o do público e o do retratado — admitindo-se que este último saiba ou intua o feito fotográfico. Mas mesmo que dado personagem esteja alheio à captura de seu retrato, seu olhar é forçosamente tomado de empréstimo em meio à triangulação de perspectivas que vem forjar um mundo próprio, cujas capas de sentido sobrepõem-se simultaneamente dentro e fora da imagem. Este plano externo, ou “campo cego”, como diria Roland Barthes, esta esfera extra fotográfica que resta invisível ao espectador, responde pela dimensão narrativa implícita à obra de Mauro Restiffe — um palimpsesto de histórias plasmadas no celuloide, algumas simétricas, outras assimétricas, conjugadas no painel humano que dá corpo a esta exposição.
Ora velada, ora aparente, essa dinâmica de olhares orquestrada pela fotografia encontra sua raiz na pintura, mais explicitamente no quadro As Meninas, de Velázquez. Ali, descortina-se o embate entre sujeito e objeto, entre público e obra de arte, mediado pelos olhares do pintor e dos retratados, ambos colidindo sobre o espectador. Tal qual esta obra prima, responsável por instaurar a consciência moderna da representação artística, as imagens de Restiffe, em vez de capturar um tempo morto, vão propor um jogo de cena no qual todos operam como agentes discursivos, um imbricado na mirada do outro — desta forma, o espectador é tragado pela imagem, absorto em uma dimensão situada entre o passado e o futuro.
Já quando informados pela tradição fotográfica do século XX, herdeira de Cartier-Bresson, poderíamos ser tentados a pensar tal hiato temporal como o momento decisivo, mas não se trata aqui exatamente disso, bastante ao contrário, eu diria. Os momentos retratados pelo artista dão conta de um fluxo, de um porvir, do transcurso de tantas biografias, seus sonhos e projetos de vida, sua iminente realidade. As fotografias de Restiffe, portanto, não são maiores que a vida, mas se constroem na sua justa medida — o que não significa dizer que não haja em sua obra o desejo de um relato histórico, ou melhor dizendo, de histórias, algo que se evidencia sobremaneira nos grandes panoramas políticos da vida pública brasileira, exemplarmente traduzida no projeto ora em exibição na Bienal de São Paulo, no qual a posse do presidente Lula é situada vis-à-vis a de Bolsonaro, num perverso e decisivo espelhamento de realidades. Em ambas as séries, o fotógrafo vai emergir como agente político, orientando sua lente às arquiteturas de poder, movido pelo afã algo marxista ao qual cumpre desvelar a superestrutura em suas dinâmicas institucionais. O corpo social torna-se, portanto, objeto de sua obra.
Emblematicamente, a este plano “reportagem” em terra brasileira, soma-se uma outra investigação, igualmente marcada pela política, embora de natureza cultural diversa. As viagens a Rússia travadas pelo artista nos anos de 1990, e novamente em 2015, condensariam uma galeria de personagens de outra sorte, propondo uma renovada mirada antropológica e relação com a história. Mas em que pese o caráter investigativo dessa imersão junto ao povo que experimentara a revolução e dela se desfez quando ruíram as utopias comunistas pari passu o muro de Berlim, em 1989, em tais jornadas o artista se preocuparia menos com o macro e mais com a micropolítica, com as vidas que se tornaram invisíveis sob a cortina de ferro: suas rotinas, seus espaços privados, sua intimidade.
Pois a presente mostra na Fortes D’Alloia & Gabriel se processa na esteira das viagens russas, igualmente orientada para os sujeitos da história, ou para os indivíduos e suas muitas histórias. Esta série intermitente de retratos atuais (que todavia retrocedem às viagens russas), parte do farto arquivo que vem sendo compilado pelo artista ao longo da vida, e acena com a sedução de personagens ávidos por seus destinos, ou entregues a eles com graça, paixão ou mesmo resignação. Trata-se de figuras a um só tempo frágeis e sólidas, reais, senão de todo donas de seus destinos, agentes humanos sobre a paisagem, quer construída, quer natural.
Mais do que do passado, o arquivo trata do futuro. Registrar, para além de preservar a memória, significa redimensioná-la em plano constante. E assim funciona com o acervo de imagens de Restiffe: um conjunto de personagens, de pessoas, aliás, investidas de desejos, em trânsito, movidas pela curiosidade — esta mesma curiosidade dividida por nós, espectadores da malha humana retratada, tão sensível, tão estoica no curso de suas existências. Do lado de cá do torvelinho humano gravados no filme, nós nos encontramos, como extensões das biografias que espiamos à la voyeurs, antevendo a glória ou o desastre, que a todos nos alcança em algum momento no tempo.
Diria, ainda, que há algo de cinematográfico na obra deste artista, um tempo dilatado, uma espécie de cinema de fluxo que extrapola o campo fotográfico, uma vez que faz verter das imagens uma carga vital, capaz inclusive de animar as naturezas mortas a pontuar a sequência de retratos, pois delas também emana uma atmosfera provisória que nos convoca a vislumbrar narrativas para além da beleza plástica das imagens, de sua composição formal — a rigor, como de resto, de todas as demais fotografias, sejam elas bucólicas, eróticas, reflexivas, políticas ou demasiado íntimas.
Entre figuras públicas, algumas mais ou menos públicas e outras anônimas, a obra de Restiffe versa sobre o caráter provisório da história. E este acervo de histórias e memórias preocupa-se tanto com o tempo presente quanto com o deslanchar do futuro. De decisivo, apenas o desconhecido em seu jogo de espelhos entre o antes e o depois, entre o público e o privado, entre a macro e a micropolítica, entre sonho e a instável realidade.
Por fim, para arrematar este breve texto, faltou falar de uma imagem em particular, do olhar incisivo do artista em seu autorretrato em branco e preto: aqueles olhos negros que passeiam com intimidade sobre outros corpos e paisagens, aquele olhar-punctum que destila admiração e surpresa com o mundo ao redor, sempre nos remetendo alhures, ao que a fotografia não capta, mas enseja ou insinua. Ao não estabelecer um código fechado para suas imagens, o artista nos convoca a uma deriva pelo etéreo, por aquilo que poderia ter sido e ainda não foi, mas que talvez seja em algum momento da vida senão relegado ao esquecimento, à mais recôndita memória.
Evoé!
The Impermanence of Looking at the World
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
Everything begins with an eye. Who looks where, or at whom?
Three gazes always converge in a portrait: the author, the spectator and the portrayed — assuming that the latter is aware or senses the photographic act. But even when the person is unaware of the portrait, their gaze is forcibly appropriated in this triangulation of perspectives that forges its own particular world, whose layers of meaning are simultaneously juxtaposed inside and outside the image. This external plane, or ‘blind field’ as Roland Barthes put it, or this extra-photographic sphere that remains invisible to the spectator, is what makes for the implicit narrative dimension in Mauro Restiffe’s practice — a palimpsest of stories molded into celluloid, some of them symmetric, others asymmetric, brought together in the human survey that shapes the exhibition.
This dynamic of gazes — at times veiled and at times apparent – orchestrated by photography has its roots in painting, more explicitly in Velázquez’s Las Meninas, where we see the clash between subject and object, between audience and artwork, mediated by the gaze of the painter and of the portrayed, colliding with the spectator. In the manner of Velázquez’s masterpiece, which sets out our modern awareness of artistic representation, Restiffe’s images, rather than capturing a dead time, propose a staging in which everyone functions as discursive agents, where each one is intermeshed with the gaze of the others. Therefore, the spectator is sucked in by the image, absorbed in a dimension located between past and future.
Now that we are informed by the 20th century photographic tradition, descending from Cartier-Bresson, we could be tempted to think of this temporal hiatus as the decisive moment. However, this is not what is exactly at play here, perhaps quite the opposite I would say. The moments portrayed by Restiffe contend with a flow, with a future, the passing of so many biographies, filled with dreams and life projects, their impending reality. Restiffe’s photographs, therefore, are not greater than life, they are built at its exact measure. This does not mean that his work is exempt from the desire to be a historical account, or the desire to tell different stories, something that is clearly seen in his exemplary large political panoramas of Brazilian public life currently being exhibited at the São Paulo Biennial, where President Lula’s inauguration faces Bolsonaro’s inauguration in a perverse and decisive mirroring of realities. In both series, the photographer emerges as a political agent, turning his lens to the architectures of power, guided by a somewhat Marxist eagerness to reveal the superstructures of institutional dynamics. The social body thus becomes the object of his work.
Emblematically, this plane of ‘reportage’ on Brazilian soil is supplemented with another layer of investigation, which is equally marked by politics albeit of a different cultural nature. The trips to Russia made by the artist in the 1990s, and later in 2015, condense a gallery of distinct characters, proposing a renewed anthropological gaze and a link to history. However, notwithstanding the investigative character of his immersion within a people that had experienced revolution and left it behind once communist utopias crumbled pari passu with the Berlin Wall in 1989, in his journeys, the artist was less concerned with the macro and more interested in the micropolitics, the lives that became invisible under the iron curtain: their routines, private spaces, and intimacies.
The present exhibition at Fortes D’Alloia & Gabriel is conjured in the wake of Restiffe’s Russian travels, similarly looking at the subjects of history, or at individuals and their many histories. This intermittent series of current portraits (that reach beyond his travels to Russia) emerges from the rich archive that the artist has been compiling over his life. It greets us with the seduction of characters who are eager for their destinies, or who have given in to their destines with grace, passion or even resignation. These are simultaneously real, fragile, solid figures, and even if they are not the full masters of their destinies, they are human agents acting on the landscape, be it built or natural.
More than the past, the archive deals with the future. To make a record, more than preserving memory, is to constantly give it a new dimension. And this is how Restiffe’s image archive works: a group of characters, of people, full of desires, in transit, moved by curiosity — the same curiosity that we share; we, the spectators of the portrayed human fabric, so sensitive and so stoic in the course of our existences. From this side of the human whirlwind printed on film, we meet, as if we were extensions of the biographies that we peek into like voyeurs, foreseeing glories and disasters that everyone will face at some point in time.
I would also say that there is something cinematographic in Restiffe’s work, a dilated time, a sort of flow-cinema that reaches far beyond the photographic field. A vital load pours out of the images, a load that is in fact capable of animating the still-lifes interspersed in the sequence of portraits, as from them also emanates a provisional atmosphere calling us to look at the narratives beyond the images’ plastic beauty, their formal composition — which, strictly speaking, applies to every photograph, whether they are bucolic, erotic, reflexive, political or excessively intimate.
Recording public figures, some more or less public, or even anonymous, Restiffe’s work deals with the provisional character of history. This collection of stories and memories is concerned with both the present and the unfolding of the future. The crucial aspect here is the unknown within a game of mirrors between before and after, public and private, macro and micropolitics, dream and unstable reality.
Finally, as a way of closing this brief text, I must talk about a particular image, the artist’s incisive gaze in his black and white portrait: those black eyes that intimately stroll over other bodies and landscapes, the punctum-gaze that distils admiration and surprise when faced with the world around it, always taking us elsewhere, to the place that photography cannot capture but yearns for or insinuates. By refraining from establishing a closed code for his images, Mauro Restiffe invites us to be adrift in the ethereal, somewhere that could have been but still hasn’t, somewhere that perhaps, at some point in our life, will be relegated, if not to oblivion, then to the most recondite of memories.
Evoé!