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agosto 5, 2021
Heloisa Hariadne: Ouvindo o que se é para ser e estar presente nas cores da vida por Carollina Lauriano
Heloisa Hariadne: Ouvindo o que se é para ser e estar presente nas cores da vida
CAROLLINA LAURIANO
Em 1989, no auge do mais recente conflito civil do Peru, o grupo coletivo de dramaturgia Yuyachikani criava a peça Contraelviento, uma narrativa que reconta o testemunho de uma indígena sobrevivente ao massacre de Socos, no qual 32 pessoas da comunidade de Ayacucho foram dizimados por policiais, no ano de 1983. Em quéchua, o termo Yuyachikani define o conhecimento e a memória do corpo, rompendo os limites entre sujeitos pensantes e sujeitos que são pensados.
“Eu estou pensando”, “eu estou lembrando” e “eu sou o seu pensamento” são três traduções para o termo que, mutuamente, estabelecem relações de diferenciações subjetivas entre o eu e o outro, ao passo que cada um dos sujeitos são formados a partir de contextos sócio/político/econômicos, traumas históricos e experiências os quais foram/estão inseridos. Dessa forma, começamos a traçar paralelos entre as memórias do corpo e as inscrições históricas que passam a delimitar sistemas de organização de uma lógica de funcionamento do mundo, que, por muitas vezes, inibe uma compreensão individualizada das subjetividades.
Em Ouvindo o que se é para ser e estar presente nas cores da vida, Heloísa Hariadne trabalha, em sua primeira individual na Galeria Leme, a noção de memória-corpo presente no contexto da palavra Yuyachikani. Suas pinturas partem de uma investigação pelas memórias que o corpo da própria artista carrega. Nesse retrato íntimo de seus interesses – que passam pelo desejo de repensar a conexão entre o humano e a natureza, a consciência alimentar, a biologia, a ancestralidade e o resgate de saberes dos povos originários – Heloisa cria narrativas de um corpo poético que busca construir seus espaços de liberdade frente a noções pré-estabelecidas. Suas pinturas evocam uma relação cósmica e filosófica de uma temporalidade espiralada, nas quais os movimentos exprimidos pela artista sugerem sempre que, para alcançar o futuro é necessário o resgate de algo que é anterior a nossa existência.
Atravessadas por uma profusão de cores e uma intensa repetição dos elementos expressivos de suas composições pictóricas; na exposição as pinturas são mediadas pela presença e ausência da figura humana. E essa tomada de decisão reflete sobre a própria invizibilização de práticas performativas diversas que foram – e ainda são – negligenciadas pela oficialidade dos registros históricos. Aqui, o corpo assume, conscientemente, um papel subjetivo da elaboração de memória, que guarda em si gestos, oralidades, lembranças traumáticas, performances e repertório. Não obstante, na figura humana a gestualidade fica evidenciada, conferindo à ela um caráter expressivo, no qual a textura empregada acentua uma materialidade que traz à forma uma identidade própria cheia de complexidades e ambiguidades.
É dessa percepção que Heloísa cria sobre seu próprio corpo, que ela inscreve narrativas próprias que buscam um lugar de ruptura aos limites da norma. Ao colocar em movimento intencionalmente coreografado os elementos poéticos de suas pinturas, a artista sugere que a história precisa estar em um processo perene de transformação, questionando a necessidade de uma harmonia regenerativa entre corpo, memória, ancestralidade, natureza e o mundo estabelecido. Ao encenar suas próprias memórias enquanto poética, ela trabalha intimamente o emocional de um corpo que questiona ele mesmo e os espaços ao seu redor. Dessa forma, Heloísa Hariadne encena a memória do corpo para que ela não seja esquecida.