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junho 16, 2021

Nigredo por Pedro Cesarino

Nigredo
por Pedro Cesarino

Thiago Rocha Pitta - Nigredo, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 19/06/2021 a 14/08/2021

“É triste e sem remédio a sorte dos mortais…/ Esboça-se a ventura em traços imprecisos,/ os males chegam logo, como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro” [1]. Com essas palavras, a profetisa Cassandra vaticinava o assassinato de Agamênon e a destruição de sua casa real, maculada por crimes pretéritos. A dinâmica trágica, tão bem explicitada pela voz dos profetas, implica na negação da herança criminosa por sujeitos que se imaginam senhores de seus atos, embora não passem de joguetes de forças maiores que, cedo ou tarde, cobrarão pelo dolo causado. Thiago Rocha Pitta prenuncia em suas obras o avanço da catástrofe que, antes de 2020, já mostrava os seus sinais. Na noite de 2 de setembro de 2018, o incêndio do Museu Nacional surgia como aviso sinistro do que estaria por vir nos atuais tempos de pandemias virais e fascistas. Embora recente, o incêndio é resultante de outros tantos crimes acumulados (e jamais devidamente expiados) desde que as naus portuguesas aportaram por aqui. É esse acúmulo que parece impor a Thiago uma inflexão histórica nas obras aqui reunidas, que elaboram, contra o pano de fundo do não humano já explorado pelo artista em outros trabalhos, os impactos do cenário de terra arrasada em que vivemos.

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O apodrecimento da terra e de seus corpos, consequência direta do saque colonial, implica na passagem pela via obscura, cujo portal é iluminado pela falsa luz de um sol refletido – a luz lunar. Encontramo-nos diante dos umbrais, nas fronteiras tornadas indiscerníveis pela coloração crepuscular que dissolve os corpos, toma de assalto a respiração, empurra nossos ânimos para as profundezas de uma cova que julgávamos não ter escolhido. Saturno, com sua densidade melancólica, é quem preside o nigredo, a putrefação e a morte envolvidas nesta primeira etapa alquímica. Sua contrapartida é a imagem de uma deusa da água que emerge do mar, igualmente noturno, mas redimido pelo maravilhoso. O céu que a recebe e que é seu próprio corpo, contudo, não é aquele infestado pelas chamas que tragam dos subterrâneos o carbono antigo, permanentemente transformado em lucro – essa suprema perversão alquímica de que somos prisioneiros. A bem da verdade, a redenção pelo maravilhoso não será possível enquanto o crime não for expiado. Lembremo-nos: no dia 2 de fevereiro, cultua-se na Bahia a única grande festa popular brasileira integralmente dedicada a uma deusa-mãe, e cujo nome permanece sendo de origem africana: Yemanjá.

As séries melancólicas de Thiago Rocha Pitta, se bem que prenunciem os crimes e seus efeitos deletérios sobre um tempo cada vez mais incerto, o fazem a partir do que excede e limita o humano. Eclipses são avisos de tempos sombrios, dir-se-ia, mas poderiam muito bem não ser nada disso. Afinal, porque tais fenômenos precisariam figurar como imagens de nossas relações internas? Por que deveriam de alguma maneira significar? Eclipses são pura exterioridade, a indicar os paradoxos de um pensamento que não consegue sair de si mesmo. Os presságios que eles supostamente transportam poderiam ser apenas projeções de um sujeito desesperado sobre aquilo que lhe é completamente alheio, ou então mensagens realmente emitidas por fenômenos que nos escapam. É nessa ambiguidade que reside a sua potência, pois não se pode decidir se os augúrios são expectativas nossas ou se, ao contrário, são impostos de fora para designar nossa infeliz condição. Deve haver, portanto, alguma correlação entre as duas posições para que o sentido se torne possível, ou então estamos afundados em um horizonte de fenômenos indiferentes que não tardarão por apagar os traços imprecisos de nossas angústias. Uma porta não estaria aberta ou fechada se o fogo já tivesse corroído o seu batente. Conquanto insistimos em ser essa estrutura de contenção, não temos como escolher entre as duas alternativas.

Um filósofo dizia que apenas a contingência absoluta, com a qual o tempo coincide, é que designa o possível, essa dimensão que em muito escapa ao que é pensável. Ora, aquilo que extrapola o pensamento é, também, o que transborda o humano, mesmo quando este imagina ser capaz de controlar o que o excede. O saque, derivado de tal ilusão do controle, termina por conduzir à catástrofe, uma espécie de vingança do possível com relação às pretensões do pensamento. A extração do carbono pelas refinarias se quer interminável, feito incêndio perpétuo a corroer o céu da Baía de Guanabara. Mas o tempo a dissolverá, junto com os desfeitos que ela propiciou ao criar este mundo possível que nos habita. Um meteorito que antes caiu sobre essa terra agora dela se afasta – por desgosto ou por indiferença, como saber? Se tal hesitação fundamenta dilemas filosóficos que parecem aqui encontrar uma potente expressão estética, ela não serviria entretanto para desviar o foco do que, mais especificamente, nos compete: não esquecer que a justiça é o lume em meio ao céu nublado pelos incêndios.

1 Ésquilo, Oréstia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Tradução de Mário da Gama Kury.


Nigredo
by Pedro Cesarino

Thiago Rocha Pitta - Nigredo, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 19/06/2021 til 14/08/2021

“The fortune of the mortals is sad and without remedy…/ The venture is sketched out in imprecise lines,/ the misfortunes soon arrive, like a wet sponge,/ and in an instant they irreversibly erase the blackboard.” [1] With these words, the prophetess Cassandra foresaw the murder of Agamemnon and the destruction of his royal castle, stained by past crimes. The tragic dynamic, so well explained by the voice of the prophets, spells the annulment of the criminal inheritance by subjects who imagine they are the lords of their actions, even when they are nothing but the playthings of higher powers, which will, sooner or later, settle accounts for the swindling. In his works, Thiago Rocha Pitta foretells the advance of the catastrophe which, before 2020, was already showing its signs. On the night of September 2, 2018, the fire in the Museu Nacional arose like a sinister warning of what was to come in the times of viral and fascist pandemics. Although recent, the fire was a result of many accumulated (and never duly expiated) crimes since the first Portuguese ships arrived at these shores. It is this accumulation that seems to place Thiago at a historical turning point in the works featured here, which express, against the backdrop of the nonhuman previously explored by the artist in other works, the impacts of the scenario of the ruined land in which we live.

The putrefaction of the land and of its bodies, a direct consequence of the colonial pillaging, implies the passage along the dark path, whose portal is illuminated by the false light of a reflected sun – the lunar light. We find ourselves before the shadows, in the realms made indiscernible by the crepuscular coloration that dissolves the bodies, takes our breath away, pushes our spirits into the depths of a grave we never thought we had chosen. Saturn, with his melancholic density, is who presides over the nigredo, the putrefaction and the death involved in this first alchemical stage. His counterpart is the image of a goddess of the water that emerges from the sea, also nocturnal, but redeemed by the marvelous. The sky that receives her and which is her own body, however, is not the one infested by the flames that devour the ancient carbon from underground, permanently transformed into profit – that supreme alchemical perversion of which we are prisoners. The actual good thing, the redemption by the marvelous, will not be possible while the crime is not expiated. We must remember the festival held on February 2 in Bahia – the only large popular Brazilian festival wholly dedicated to a goddess-mother, whose name continues to be from an African origin: Yemanjá.

The melancholic series by Thiago Rocha Pitta, while they foretell the crimes and their deleterious effects on an increasingly uncertain time, do this on the basis of what surpasses and limits the human. Eclipses are warnings about shadowy times, one could say, but they also might not have anything to do with this. After all, why do these phenomena need to figure as images of our inner relationships? Why should they somehow signify? Eclipses are a pure exteriority, indicating the paradoxes of a thinking that does not manage to get outside of itself. The predictions that they supposedly convey could be mere projections of a desperate subject concerning what is completely outside and apart from him, or they could be messages actually emitted by phenomena that escape from us. It is in this ambiguity that their power lies, as it cannot be decided whether the auguries are our own expectations or if, rather, they are imposed from the outside to designate our unfortunate condition. There should be, therefore, some correlation between the two positions in order for the meaning to become possible, or else we are then submerged in a horizon of indifferent phenomena that will soon erase the imprecise lines of our anxieties. A door would be neither opened nor closed if the fire has already consumed its frame. Insofar as we insist on being that structure of containment, we have no way of choosing between the two alternatives.

A philosopher once said that only the absolute contingency, with which time coincides, is what designates the realm of possibility, that dimension which lies utterly beyond the conceivable. That which lies outside our ability to conceive it is, also, what inundates the human, even when that human imagines that he is capable of controlling what is beyond him. The pillaging, an outcome of that illusion of control, winds up leading to catastrophe, a sort of revenge of the possible in relation to the pretensions of thought. The extraction of coal by the refineries would like to go on forever, like a perpetual conflagration consuming the sky over Guanabara Bay. But time will dissolve it, together with the faults that it ushered in when it created this possible world that inhabits us. A meteorite which previously fell on this earth is now moving away from it – whether out of disgust, or indifference, how is one to know? If that hesitation underlies philosophical dilemmas which seem to find here a powerful aesthetic expression, it will not, however, serve to shift the focus of what, more specifically, we should be looking at: to not forget that justice is the light in the sky clouded over by the fires.

1 Ésquilo, Oréstia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Translation into Portuguese from the original Greek by Mário da Gama Kury.

Posted by Patricia Canetti at 1:04 PM