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junho 3, 2021
Bruno Miguel: A Beautiful Image por Ulisses Carrilho
Smile at least / You can’t say no to the Beauty and the Beast
David Bowie
Palavras ou imagens são sempre provocações. O inconsciente não cessa de se inscrever: o fabulado e o imaginado se fazem presentes a cada salto dado pelo sujeito. No fluxo contrário, o real não se deixa inscrever – esgueira-se, escapa e acontece no mundo. Faz-se perceber na vida da matéria, apresenta-se como fenômeno sentido. Na pintura de Bruno Miguel, entre os códigos dos quais lança mão e as fartas doses de cor, em tinta e objetos, sobre a superfície de suas pinturas, há também uma dupla ocorrência: de maneira flagrante, percebemos um artista que apresenta hipóteses à história da pintura e, concomitantemente, a um regime das imagens que não acontece apenas no entorno do objeto de arte, mas no campo ampliado das visualidades. O título da mostra, tomado por empréstimo da inscrição na pintura que abre a exposição, deixa essa relação evidente: falemos sobre a imagem.
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Muito embora o artista perambule por referências biográficas em seu trabalho, essa vontade não é memorial, não resulta do desejo de versar sobre um mundo particular do indivíduo. Parece lembrar que a matéria primeira da arte se constitui justamente por um salto entre uma imagem que é criada e outra que é percebida. Bruno Miguel é professor na Escola de Artes Visuais do Parque Lage há mais de uma década e é flagrante o seu interesse em elaborar uma pesquisa poética que investiga a formação de um certo olhar: o artista busca apurar uma sensibilidade em relação às imagens que já estão no mundo. Em outra oportunidade, seria interessante apurar essa hipótese à luz de sua série “Marina Ajuda Bruno”, que merece atenção e oportunidade de exposição, pois levanta uma discussão urgente que reajusta não apenas a ideia de função na arte, mas também a problemática noção da qualidade. Será que, frente a uma sociedade corrompida pelo excesso, pela saturação, pelo espetáculo e pela excludente e elitista ideia de que haveria, a priori, um “bom gosto”, as visualidades não apuradas pelo sistema artístico mereceriam menor oportunidade de investigação?
No discurso do artista, nota-se insistentemente ganas de versar sobre um mundo externo a ele: sobre imagens que o circundam, imagens de objetos que coleciona, mas que estão também impregnadas no seu corpo. Tais imagens não são convocadas pelo artista por um simples interesse de representação das mesmas no campo pictórico. Bruno Miguel explora, por meio da pintura, as imagens de um mundo fraturado pela desintegração; acelerado pelo entretenimento; enganado pela promessa da globalização.
Muitos dos objetos impregnados nas camadas de tinta sobre tela ou nas resinas que aludem às diferentes configurações de plásticos-bolhas são objetos de consumo: patches comprados em larga quantidade, indiscriminadamente, em plataformas de compra na Internet. De origem militar, usados desde os anos 1800 na Inglaterra, para fins bélicos, os patches começaram a se popularizar na década de 1930, como forma de identificar exércitos e patentes – questões da ordem de pertencimento. No final dos anos 1950 e nos primeiros anos da década de 1960, foram adotados por “adolescentes rebeldes” na baila do movimento MOD, que teve origem em Londres, na Inglaterra. O símbolo usado pelo movimento, um alvo, é originário do símbolo usado nos aviões da RAF, braço aéreo das forças armadas do Reino Unido, durante a Segunda Guerra Mundial. E foi assim que eles foram introduzidos na indumentária do rock’n’roll, onde se popularizaram na cultura popular. Rapidamente os patches começaram a ser veículos para expor ideias, posição política e amor por bandas. Os pequenos objetos são espécies de escudos que operam culturalmente, gerando pertencimento e denotando ou confrontando identificações. Tais emblemas são partes fundamentais dos trabalhos que vemos na mostra.
Em “Against Interpretation”, livro de Susan Sontag, no seu ensaio “One Culture and the New Sensibility”, encontro linhas em ricochete à profusão dos tais caminhos concomitantes que dão corpo às pinturas de Bruno Miguel. A arte é compreendida como um instrumento que modifica nossa consciência e organiza novos modos de sensibilidade. Viveríamos, segundo a autora, uma asfixiante pressão pela interpretação, que aniquila nossa sensibilidade a partir de uma visão causal, lógica, reacionária e interpretativa do mundo. Tal ideia cientificista, segundo algumas das hipóteses de Sontag, invadiram o campo artístico-literário na modernidade. Como resistir à lógica e confiar naquilo que sente o indivíduo perante um estímulo? É possível superar a ideia de gosto e gozar com o que o corpo vê, percebe e sente?
Na série de pinturas que vemos, o artista oferece, em telas, campos cromáticos repletos de referências a um mundo que, apesar de não ser externo à arte, é frequentemente subestimado por artistas, em nome de uma sofisticação e de um apuro intelectual. Com sorte, a pintura de Bruno Miguel insubordinadamente resiste a essa ideia, instaurando um campo onde é possível elaborar outras hipóteses, outrora já afirmadas pelos teóricos da cultura: uma ideia de cultura mais generosa, encharcada de complexidade, pouco binária. As várias manifestações da cor e da forma eclodem na tela sem a pretensão de confirmar a tradição, mas de atualizar os problemas nela elaborados. Suas estratégias artísticas, no entanto, também não desconfiam da pintura. Ao contrário disso, o artista ostensivamente confia nesse procedimento.
Não à toa, este texto começa pela inscrição e pela irrupção daquilo que não se deixa inscrever. Nas inscrições pintadas pelo artista, ele constitui imagens. As palavras apresentam-se como elementos visuais que integram, de maneira fundamental, a composição dos trabalhos. Sontag, nos anos 1960, colaborou para a compreensão de que a arte produzida naquele momento valia-se de elementos produzidos pela sociedade de consumo menos por um simples interesse visual, mas sobretudo para criar a oportunidade de que nós, o público, possamos reconfigurar nossos próprios critérios preconcebidos a respeito do que pode ou não ser considerado arte. Não há outro modo de terminar este texto: mas, afinal, o que é a beautiful image?
Ulisses Carrilho
Smile at least / You can’t say no to the Beauty and the Beast
David Bowie
Words or images are always a taunt. The unconscious never ceases to self-inscribe: what’s fabled and imagined emerge at every leap taken by the individual. Conversely, reality doesn’t allow itself to be inscribed – it sneaks out, escapes and comes about in the world. It’s conspicuous in material life, turning up as a perceived phenomenon. Among the tokens employed by Bruno Miguel in his paintings and the abundance of color, paint and objects on the surface of his canvases, there’s also a double incidence: we flagrantly recognize an artist who presents hypotheses to the history of painting and, at the same time, an image regimen that doesn’t just develop around the art object, but on the expanded field of visualities. Borrowed from the inscription in the painting at the entrance of the exhibition, the title of the show, makes this connection clear: let’s talk about image.
Although in his work the artist roams around biographical references, there’s no memorial intention to it, since it doesn’t result from a desire of reflecting upon an individual’s private world. It seems to elicit the fact that the very primal matter of art is formed on a leap taken from a created image to a perceived one. Bruno Miguel has been a teacher at Escola de Artes Visuais do Parque Lage for over a decade, and his interest in creating a poetic research that explores the development of a certain view is notorious: the artist seeks to refine a sensibility towards ready-made images. On another occasion, it would be interesting to examine this hypothesis in view of his series “Marina Helps Bruno”, which deserves attention and an opportunity of being displayed, since it brings up an urgent issue that resets not only the idea of function in art, but also the controversial concept of quality. In the face of a society corrupted by overabundance, saturation, spectacle and by the exclusionary and elitist idea of a “good taste” a priori, would the visualities unrefined by the art system deserve the slightest chance of research?
The will to address a world that is foreign to him is remarkable in the artist’s rhetoric: the images that surround him, images of objects he collects, but are ingrained in his body. Such images are convened by the artist from a mere interest on representing them on pictorial grounds. Through painting, Bruno Miguel explores the images of a world damaged by disintegration; accelerated by entertainment; deceived by the promise of globalization.
Many of the objects embedded in the layers of paint on canvas and in the resins that allude to various designs of bubble wrap are consumer objects: patches indiscriminately bought in bulk from shopping platforms on the web. Used in the military for warfare purposes since the 1800s in England, patches started getting popular in the 1930s, as a way to identify armies and ranks – issues related to a sense of belonging. In the late 1950s and the early 1960s, they were taken on by “rebel teenagers” in the wake of the MOD scene, originated in London, England. The symbol chosen by the mods, a target, has its origins in a symbol used in RAF airplanes, air service branch of the UK armed forces in World War II. And, thus, they were included in the rock n’ roll dress code, through which they were disseminated into pop culture. Patches soon became a conduit for expressing ideas, political views and love for certain bands. These small objects are a sort of culturally operated crest, creating a sense of belonging and designating or confronting identifications. Such icons are a fundamental part of the works displayed in the show.
In Susan Sontag’s essay “One Culture and the New Sensibility”, from her book “Against Interpretation”, I find a reflection upon the profusion of these so-called simultaneous paths that give substance to Bruno Miguel’s paintings. Art is understood as an instrument for modifying consciousness and organizing new modes of sensibility. According to the author, we’d experience a suffocating pressure for interpretation that annihilates our sensibility through a causal, logical, reactionary and interpretative perspective of the world. This scientistic idea, according to some of Sontag’s hypotheses, has seized the artistic-literary field in modern times. How to resist logic and just trust what one feels when faced with stimulus? Is it possible get over the concept of taste and enjoy what is seen, perceived and felt by the body?
In the series of paintings here displayed, the artist shows color fields with plenty of references to a world which, although not foreign to art, is often underrated by artists on behalf of a so-called sophistication and intellectual refinement. Fortunately, Bruno Miguel’s painting insubordinately resist this idea, preparing the ground for devising other scenarios, previously suggested by culture theorists: the idea of a more generous culture, imbued with complexity, and barely binary. The many displays of color and shape erupt from the canvas with no intention of confirming tradition, but to update the issues formulated then. However, it’s not like his artistic strategies distrust painting. Instead, the artist ostensibly trusts this procedure.
No wonder this essay starts with the inscription and irruption of the uninscribable. With the inscriptions painted by the artist, he creates images. Words are displayed as visual elements which fundamentally integrate the works’ layout. In the 1960s, Sontag collaborated to the realization that art created back then employed elements produced by consumer society not as a result of visual interest, but mainly to create the opportunity for us viewers to reset our own preconceived criteria on what could and couldn’t be regarded as art. There’s no other way to end this essay: what is a beautiful image?
Ulisses Carrilho