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maio 28, 2021
A Extinção É Para Sempre por Nuno Ramos
O projeto A Extinção É Para Sempre é composto por um conjunto de obras envolvendo cinema, performance, literatura, teatro, artes visuais, dança e música. Essa diversidade de gêneros possui um núcleo poético comum: a tentativa de responder a temas que atravessam hoje o espaço público com tanta frequência e naturalidade que correm o risco de passarem despercebidos. Tratam da necessidade do luto, da naturalização da violência, dos desastres da guerra, da ameaça de extinção não apenas das espécies, mas das próprias instituições; da mudança radical do conceito de povo, da violência e da memória histórica presente nos edifícios e nos monumentos.O conjunto é formado por sete episódios: CHAMA, Monumento, Chão-Pão, Iracema Fala, Os Desastres da Guerra, Helióptero e A extinção é para sempre.
Os demais episódios seguem em desenvolvimento no laboratório artístico e seus desdobramentos públicos estarão sujeitos às possibilidades de interação que as mudanças no contexto da pandemia venham a permitir nos próximos meses.
“A Extinção é Para Sempre”, é para sempre, é para sempre, como uma rosa é uma rosa é uma rosa. Apesar do truísmo, é bom lembrar – vivemos algo da ordem do irreversível, numa proporção cujo desenho é difícil definir. Podemos perder tudo e, por isso, o que quer que façamos agora é dramático e decisivo. A hora é nossa. Pois a naturalização da violência contra a Cultura e a própria linguagem (para além da violência contra a vida física das pessoas) vai se capilarizando pelo país, como uma mancha de óleo destruindo um coral. Artistas, profetas, seresteiros, poetas, vagabundos, videomakers, cantores, pintores, escultores, profissionais ou amadores – a hora é nossa.
Pensei neste conjunto de trabalhos pressionado por esta inédita sensação de ameaça, buscando uma reação. Reação, antes de mais nada, através do próprio exercício da linguagem. Sim, a linguagem, este meio ambiente onde o outro ainda existe, livre para respirar e falar e brincar junto; linguagem à qual este projeto se dirige em formas e formatos tão diversos. Misturados, isolados, em parcerias, em solilóquios, em situação precária, íntimos, públicos, em meio à brutalidade, em meio à boçalidade, em meio à pandemia – acho que são todos trabalhos em formação, feitos a quente, com taxa grande de improviso e não completamente finalizados, mas cheios (espero) dessa alegria de ainda ser, de ainda estar.
Há algo que, percebo agora, atravessa quase todos estes trabalhos – uma cena que se forma e deforma, que se veste e se despe, compõe e decompõe, num loop entre um momento de formação e outro de dispersão. Sinto que minha intuição sobre o que dá para fazer vai mesmo por aí, como se não fosse possível responder de frente, explicitamente, mas sim em movimento, patinando, oferecendo a cara e correndo para longe. Está pronto? Sim, mas não. Acho que ainda não. Vamos continuar um pouquinho. Neste sentido, a própria ideia de autoria se faz e desfaz, se forma e deforma também – isto tem sido o melhor de tudo nestes meses de experiência intensa a partir do simples rabiscado das ideias iniciais. A dimensão coletiva, a partilha com atores e dançarinos e músicos, as novas e as velhas parcerias, este sentimento comum de urgência e a dignificação de cada conquista.
Não acho que sejamos sobreviventes de um antigo tempo, mas atores de uma cena que já se põe de outra forma, e que vai exigir muito de nós até estabilizar-se. Estamos, justamente, testando isso agora, no front deste “inesgotável pior”, que daria um bom título a nossa época. Pois não acredito que haja correção para o desvario dos últimos anos, no sentido de um retorno a algo anterior. Não se forma de novo o corpo que virou cinza (o melhor, ao contrário, é olhar bem para ela e nunca esquecê-la). Neste sentido, ao contrário de qualquer melancolia, sinto um estranho entusiasmo. Pois há muito, mas muito mesmo, a dizer, a cantar, a bater e correr, a ler e recitar, a escolher e amar. Pois a extinção é para sempre. Para sempre.
Nuno Ramos