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maio 27, 2021
Sussurros, pragas e preces por Clarissa Diniz
Sussurros, pragas e preces
CLARISSA DINIZ
O fugaz encanto de um colibri aviva mistérios. Talvez porque quase inapreensível em seu luminoso mover-se, para povos e saberes diversos, o beija-flor é um pássaro sagrado. Ele habita histórias sobre o surgimento do mundo, acerca da origem da água, sobre a criação do calor. Para alguns, sua aparição é tomada como a presença de espíritos, uma vez que o colibri é visto como um mensageiro entre mundos ou como o próprio divino.
Arrebatados pela insondável beleza desses singelos passarinhos, talvez há milênios nossos ancestrais venham suspeitando que os beija-flores sejam signos. Por não sabermos, todavia, o que significam, seguimos elaborando sentidos para essas fascinantes criaturas, implicando-as em nossas cosmovisões, atribuindo-lhes um lugar especial nas tramas de nossas causalidades: vendo em sua presença, por exemplo, a visita de um ente já falecido ou o prenúncio de uma passagem.
Por isso, para muitos de nós, representar um beija-flor não é um gesto qualquer. Desenhar seu corpo, modelar seu volume, emular seus movimentos ou iluminar suas cores é evocar o próprio enigma dos sentidos que atribuímos à sua existência, atualizando-os. Assim, frequentemente retornando ao colibri em suas obras, a despeito da acurácia formal da representação desses pássaros em suas esculturas ou pinturas, Efrain Almeida não se filia a tradições representativas que valoram a objetividade de suas figurações. Ao contrário, o artista se vincula a práticas que, como testemunhamos em diferentes culturas, as valorizam não por sua dimensão autorreferente, senão por sua capacidade de imantar significados por vezes distantes, adensando-os e desdobrando-os nas singularidades de nosso espaço-tempo, de nossos corpos, de nossas memórias, de nossas perspectivas.
À semelhança de um pintor de ícones religiosos – cujas representações são feitas em oração e são, por isso, também formas de prece –, Efrain Almeida não subordina suas esculturas e instalações, tampouco suas aquarelas recentes, ao imperativo de princípios exclusivamente estéticos. Em fricção à certa tradição geométrica dos cânones da arte brasileira, através dos raios e dos campos de cor de suas aquarelas são evocadas experiências visionárias que não se pretendem formas esteticamente soberanas.
Ao contrário, sua geometria faz mover e avivar as agências que estão distribuídas no cosmos, partilhadas entre seres e fenômenos diversos e atribuídas, por nós, também àquilo que, como uma obra de arte ou um colar de contas, poder-se-ia supor que não é vivo. Avessando geometrias que se imaginam objetivas e autônomas, as linhas e cores prismáticas das aquarelas de Efrain se dão à convivência e à implicação entre colibris e outros mistérios.
Trata-se de um artista que, ao longo de sua trajetória, esculpiu animais, corpos e outros objetos de caráter potencialmente votivo ou totêmico, burilando-os com tamanho afeto que, ao encará-los, somos tocados por suas subjetividades, desejos e agências. Tal como se revelam brilhosas as asas dos beija-flores – que não são apenas pigmentadas, mas iridescentes, donde o explosivo fenômeno de cor que surge da complexa e furtiva convergência entre o pássaro, a incidência da luz e o nosso olhar –, o caráter icônico da obra de Efrain também nos convoca a vislumbrá-la para além de sua estetização.
Contudo, diferentemente dos pintores de ícones estritamente religiosos, cujo compromisso histórico-narrativo com as escrituras sagradas é mandatário, artistas como Efrain Almeida ou Alex Cerveny – em diálogo nesta exposição – experimentam o universo agentivo habitado pelas imagens sagradas em chave diversa, explorando sua fabulação para além dos limites dos dogmas, das doutrinas e demais normatividades do âmbito da adoração. Suas obras não se querem sacras, senão reivindicam, em suas iconologias fabulatórias, o direito a produzir imagens repletas de intencionalidades e segredos: imaginários que não se impõem como privilegiados nem autossuficientes, mas que se entregam a nós como cúmplices coabitantes da experiência abismática da vida.
Nessa direção, Cerveny convoca outro dos modos de produção de sentido comuns a contextos religiosos; a alegoria. Por meio de composições alegóricas que articulam signos diversos de modos extemporâneos – em paisagens situadas num espaço-tempo em suspenso, de atmosferas por vezes míticas –, em sua obra, o artista elabora um imaginário repleto de apocalipses e gêneses, ascensões e quedas, transmutações, chagas e milagres.
Suas figuras estão sempre enfurnadas em redes de agência: elas costumeiramente estão produzindo ou sofrendo alguma ação que, por sua vez, não é autocentrada, mas distribuída entre seres humanos, animais, fogos, árvores, chuvas, objetos, palavras, ventanias, meteoros, breus, motosserras. Ademais, executadas com extrema precisão e, ao mesmo tempo, com uma delicadíssima fatura, as alegorias de Cerveny transpiram o tempo que lhes foi quase que votivamente dedicado. Capturados por seus quiméricos detalhes e pela vibração de seus matizes, ao encará-las, somos seduzidos a integrar seus mundos.
Admirador e pesquisador de múltiplas mitologias, em suas inebriantes pinturas, Alex Cerveny fabula cenas, personagens e contextos numa liberdade cosmopoética similar àquela dos regimes de causalidade dos mitos. Se, na perspectiva mítica, seres se transmutam em outros, espiralam o tempo, agigantam-se ou podem transformar tudo à sua volta, o mesmo se passa nas alegorias do artista, que desse modo reorganiza aquilo que sabemos e que imaginamos sobre o mundo e acerca de nós mesmos. Não à toa, parte significativa de sua obra rearranja e fabula signos, referências e outros dados da própria vida do artista, desvelados a nós como numa confissão.
Incluir-se nessa urdidura agentiva, na qual forças diversas agem umas sobre as outras, torna-se mister. Se, de um lado, seria mesmo impossível desvincular-se de tal trama, por outro, é eticamente importante, para artistas como Alex Cerveny e Efrain Almeida, revelar-se como parte dela. Que a arte se saiba implicada e que seus criadores, tanto biográfica quanto socialmente, a habitem na dupla condição de agentes e pacientes de seus movimentos, é fundamental para que atentemos às vulnerabilidades e às responsabilidades ético-políticas das práticas artísticas.
Eis que agora, neste tão atroz tempo de pandemia, enquanto Efrain Almeida evoca os colibris e suas mensagens, Cerveny nos oferta imagens da destruição ambiental e do desmatamento. Além de denúncias do ecocídio praticado contra nossas florestas e seus muitos – e não apenas humanos – povos, suas recentes pinturas são ícones da vida que, a despeito de tudo, resiste. Como ex-votos sem vínculos religiosos, mas prenhes de confiança em seu poder de agência, as imagens de Almeida e Cerveny mobilizam cura e transformação.
Por isso, quem encarar as recentes pinturas de Cerveny – elaboradas silenciosa e lentamente em seu refúgio em Santo Antônio do Pinhal, cuidadas e acarinhadas como se vivas fossem porque respirando estão – não como representação, mas como evocação, poderá escutar os sussurros, as preces e as pragas de todas as forças que as atravessam e que talvez nelas estejam iconicamente assentadas, conjurando a ruína do projeto de extermínio em curso no Brasil e profetizando a frondosa, obstinada e transformadora permanência da vida.
Clarissa Diniz
Rio de Janeiro, maio de 2021