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abril 28, 2021
Ivan Serpa e o mundo: várias paisagens, múltiplas respostas por Marcus de Lontra Costa
Ivan Serpa e o mundo: várias paisagens, múltiplas respostas
Quadro nenhum está acabado,
disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além do outro quadro
que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva a outra e a muitas outras.
Joao Cabral de Melo Neto, “A lição de pintura” (In: Museu de tudo, 1966/1974)
O mundo do pós-guerra era assim: construtivo, por exigência, e humanista por necessidade. Após o conflito, surgiu uma nova etapa na história da arte: aceitar métodos e ações de caráter racional, oriundos das metodologias dos processos de seriação industrial, e acrescentar a eles uma sensibilidade humanista, doses consideráveis de romantismo e de defesa de valores éticos. A partir de então, a obra de arte absorve influências externas, contaminando-se de vida e de verdade.
No Brasil, uma valente e talentosa geração surge no cenário artístico nacional, junto com iniciativas institucionais, como a criação dos Museus de Arte Moderna, de São Paulo e Rio de Janeiro, e da realização da Bienal Internacional de São Paulo. País jovem e de diversos matizes étnicos e culturais, ressurge, nos anos 1950, a ideia de se estabelecer projetos de identidade nacional, dessa vez mais embasados teoricamente e tendo como referencial algumas obras de arquitetura moderna, em especial o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, que desafia o autoritarismo formalista e valoriza aspectos regionais e simbólicos.
Entre diversos talentos, destaca-se, desde o início, o nome de Ivan Serpa, oriundo de uma classe média carioca urbana, herdeira direta dos valores culturais de intelectuais que valorizavam o serviço público e algumas propostas nacionalistas.
É exatamente essa busca de integração entre os movimentos internacionais e os aspectos específicos da realidade brasileira que faz surgir, entre nós, um movimento concretista peculiar e inusitado. Nele, a ideia utópica cede lugar a uma urgência, de fundo cinético e imediatista, entendendo os métodos construtivos como essência de um processo criativo, introduzindo cores e volumes inesperados e articulando um vocabulário poético, que valoriza aspectos de origem popular e de vocação libertária.
A arte de Ivan Serpa é assim: desde sempre, um grito de liberdade, uma busca de síntese, ímpar, arrojada e original, de construir uma estética comprometida com a vida e com o sentimento brasileiro. Por isso, ele jamais se preocupou com a construção de um estilo, determinado por forças externas, em coerência com o professor exemplar que era e que exigia de seus alunos um constante exercício de pesquisa e reflexão.
Alguns fatos, de origens diversas, foram essenciais para a formação artística de Ivan Serpa e moldaram a personalidade do artista. A sua sólida formação cultural, adquirida com uma tia francesa, que o integrou, desde cedo, ao mundo estético, e a sua saúde frágil, provocada por uma cardiopatia congênita, desenvolvem no artista um sentimento vital de urgência e a permanente percepção de que a sua sofisticação intelectual sempre haveria de conviver com a simplicidade de seu cotidiano e com a sua autêntica personalidade humanista. Homem de olhar e de pensamento universais, ele jamais abdicou de suas raízes brasileiras: carioca, morador do Méier, na padaria, no ônibus, rubro-negro e mangueirense, entre os seus livros, seus alunos, sua gente, Ivan Serpa, de maneira contundente, sintetiza, em sua personalidade, a essência poética de uma nova estética modernista e tropical, sensível, veloz, construindo paisagens nas quais a geometria é a ferramenta essencial, gesto primeiro, o espaço artístico entendido como elemento organizador do caos da percepção, a ordem, o método, o kósmos.
A década de 1950 marca um processo de reconstrução do mundo após a hecatombe da Segunda Guerra Mundial. Mas a humanidade tinha em mãos, então, uma nova tecnologia bélica, capaz de destruir todo o planeta, o que exigia um engajamento maior da arte em defesa de um movimento modernista que fosse capaz de dar ética e sentido às tecnologias, resultantes dos processos de pesquisa científica e industrial do período.
No Brasil, o jovem Ivan Serpa, desde suas aulas iniciais com o professor austríaco Axl Leskoschek, demonstrou interesse nos processos artesanais da criação artística e fez despertar nele a primazia da linha, do elemento gráfico, como estruturador da composição artística.
Essa busca pela simplicidade e pela clareza encontrou o seu rumo a partir do contato com Mário Pedrosa, que fez surgir no artista um interesse acentuado pelo concretismo, traduzido, aqui, por um vocabulário menos rígido, sem as imposições cromáticas de matriz europeia, e buscando paisagens horizontalizadas, linhas de cor de delicada poética cromática, muitas vezes tangenciando novos ritmos e musicalidades. É dessa época – mais precisamente, de 1953 – a formação do Grupo Frente, do qual participavam o próprio Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Eric Baruch, Abraham Palatnik, Lygia Pape, Décio Vieira, Lygia Clark, Vincent Iberson, João José da Silva Costa, Carlos Val, Rubem Ludolf, César Oiticica, Hélio Oiticica, Elisa Martins da Silveira e Franz Weissmann.
Dentre os artistas da sua geração, talvez Ivan Serpa e Aluísio Carvão tenham sido as principais vozes românticas e líricas de uma geometria que se recusava a ser autoritária e impositiva. Essa visão, de caráter “antropofágico”, cria as bases de uma arte de circulação e de diálogo universais, porém com tonalidades e interpretações brasileiras, que refletem a peculiaridade das nossas raízes culturais. As pinturas de Serpa nesse período revelam uma paisagem construída por linhas e cores articuladas num discurso sensível e inteligente. Elas são, ao mesmo tempo, sofisticadas e populares, e parecem buscar, na rigidez do espaço pictórico, o movimento e o ritmo do vento na paisagem. “Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos.”1
Após um período de grande repercussão das suas obras, Serpa viaja para a Europa e trava contato direto com os grandes mestres da pintura. E percebe que lhe faltavam conhecimentos técnicos na arte de pintar. Mais uma vez a técnica e as práticas artesanais constituem o ponto-chave de suas inquietações, atitude compreensível por sua função de restaurador de obras raras da Biblioteca Nacional. “Quando termino um quadro, poderão dizer que é um mau quadro, mas dirão, ao mesmo tempo, que é um quadro bem realizado. O artesanato é para mim, hoje, algo consciente; convenci-me de que há um ponto em que ele é criação… Artesanato, portanto, é o sentido daquilo que é bem-feito; é, em última análise, percepção da forma”, explica o artista, em 1965, num texto para a exposição comemorativa do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, organizada por Clarival do Prado Valladares, no MAM-RJ.
Em seu retorno ao Brasil, Serpa se desilude dos movimentos relacionados com a abstração geométrica. Na Europa, percebeu que o caminho inexorável desses movimentos levaria a uma ortodoxia formal, à elaboração de conceitos e à ausência total da práxis artística, que a ele tanto agradava. Por isso buscou, inicialmente, uma síntese entre elementos reais e criatividade poética, produzindo obras que, em certa medida, estabeleciam contato com os movimentos da abstração informal; deles, porém, distanciando-se, porque partiam de elementos formais, que ele identificava nos livros antigos com os quais trabalhava na Biblioteca Nacional, como restaurador. Como sempre, o artista agindo como elo entre realidades e mundos aparentemente antagônicos e entendendo a arte como elemento primordial da essência humana. “O homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-Homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. O que é de grande valor no homem é que ele é uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um ocaso.”2
No Brasil, os sonhos costumam acordar pesadelos. A liberdade criativa e inovadora proposta por JK e a construção de uma capital moderna, em pleno planalto central brasileiro, reuniu uma geração de artistas repletos de coragem e ousadia. Mas o regime implantado a partir de 1964 destruiu alvoradas e direcionou o país para uma noite moralista, repressora e violenta. Ao mesmo tempo nascia o compromisso com a liberdade e com a necessidade de preparar uma nação para os desafios do futuro, para o enfrentamento com as estruturas oligárquicas implantadas, responsáveis pela desigualdade, pelos privilégios e pela exploração popular. “É um bicho que avoa feito um avião / é um pássaro malvado / tem o bico volteado que nem gavião / Carcará / pega mata e come.”3
No início dos anos 1960, as grandes redes de comunicação transformavam o mundo “numa grande aldeia global”. Surgiam imagens da fome e da miséria pelo mundo. O ideário modernista ruía diante de olhares incrédulos e diante das imagens de crianças esquálidas. No campo das artes visuais, no Brasil, nenhuma produção sintetizou esse momento, de maneira tão contundente, como a série de pinturas de Ivan Serpa, chamadas de Negras, mas que o artista preferia denominar, poeticamente, de Crepusculares. Essas obras, de forte apelo expressionista, reafirmam a liberdade criativa, que Serpa sempre defendeu, e revelam um artista com amplo domínio de seus meios de expressão. Em qualquer dimensão, essa série de pinturas e desenhos reflete o drama e o pavor de um mundo moderno, falido em suas promessas não realizadas, e acaba por se identificar com a questão conjuntural brasileira.
A industrialização ampliou desigualdades e transformou a violência e a morte em elementos do cotidiano. A utópica ideia de uma sociedade mais justa, através da democratização dos meios de produção, não resistiu a um sistema essencialmente injusto e dominado pelo capital. Mas a arte supera os dilemas temporais: uma verdadeira obra de arte revela novas realidades e amplia as descobertas. Da miséria existencial humana, passando pela decadência de uma utopia não concretizada, até o prenúncio de anos de chumbo na vida brasileira, a arte será sempre o oráculo, a bússola, o espelho. Esse é, sem dúvida nenhuma, o caso dessas pinturas Crepuscularesde Serpa, que se afirmam substantivamente no cenário das imagens expressionistas brasileiras, apenas comparáveis às gravuras fantasmagóricas de Goeldi, às pinturas dramáticas de Iberê Camargo e à série de desenhos de Flávio de Carvalho, registrando a morte de sua própria mãe.
Mais uma vez Ivan Serpa surpreende por sua extrema sensibilidade, pelo seu permanente compromisso com a liberdade que alimenta a verdadeira criação artística. Enquanto críticos e teóricos cobravam do artista uma coerência estética, veiculando-a a uma determinada escola artística, Serpa respondia com a ousadia e o desprendimento característico dos verdadeiros criadores. Entre tantos ensinamentos, a lição que Serpa nos lega são essa ânsia e esse compromisso permanente com a liberdade e a ousadia que fazem da aventura humana algo sublime e transformador. Por isso, hoje e sempre, é preciso manter contato com a produção desse artista exemplar que converte formas e cores em um caleidoscópio mágico, múltiplo e íntegro, de linguagem expressiva. A cada olhar, a cada movimento, a cada instante a arte encanta, revela-nos novas equações poéticas, novas maneiras de interpretar e transformar o real visível.
Os movimentos da pop art reverberaram intensamente por todo o mundo, valorizando as chamadas vanguardas negativas, como o surrealismo e o dadaísmo. No Brasil, eles adquirem um caráter político mais intenso, e uma nova geração de artistas surge no cenário da arte com imagens contundentes, repletas de violência e sensualidade. Serpa, homem de seu tempo, capta esse novo cenário e dele se apropria à sua maneira.
Artista com pleno domínio de sua linguagem, na sua obra, o drama existencial da fase Negra cede lugar a uma sensualidade tensa, na qual o corpo feminino é o abrigo de uma alma barroca, repleta de curvas, dobras, movimentos circulares, que encontram origem em trabalhos realizados anos antes, quando o artista, restaurador de obras raras em papel, observava atentamente a ação dos anóbios (térmitas, cupins) e suas trajetórias microscópicas, delicadas filigranas, pequenos labirintos recriados pelo artista.
As estratégias da pop art atuam no artista como afirmação da liberdade e como instrumento essencial da criação artística, mas foi através de certos processos, oriundos da op art, que Serpa reencontra, ainda na década de 1960, a imposição da ordem, do ritmo, da modulação e da gráfica que marcam a estética da arte geométrica. Assim, as Arcas construídas pelo artista adquirem um caráter simbólico, como se o artista estivesse, com elas, abrindo os seus arquivos mentais, os seus processos construtivos, a sua essência, na busca de refazer o mundo, através da ordem e da simetria.
Depois de tantas imagens, tantos trabalhos, tantas paisagens e tantos mundos que o artista criou em apenas duas décadas, Serpa retorna parabolicamente ao seu princípio, à sua essência. Mas não se trata, em momento algum, de reencontro com princípios racionais rígidos que acabaram por transformar a arte numa cidadela elitista e distanciada do mundo e dos homens, representações amarguradas de um tempo que não volta mais, de uma modernidade já devidamente direcionada para a história.
A geometria, em Ivan Serpa, é ferramenta para organizar a paisagem, arar e fazer germinar o terreno da arte, entendendo-a como ação essencial da espécie humana: criar, inventar e transformar. A paisagem do mundo que surge dessa poética geométrica do artista é tropical, repleta de rosas, de verdes e marrons amazônicos, de artesanato e de cultura popular, sentimentos genuínos: fala Mangueira! “Mangueira teu cenário é uma beleza / que a natureza criou!”4 E assim são as telas do artista, sem nenhum apelo saudosista. Ao contrário, em seu comprometimento com o sentimento e a estética popular, o artista cria um novo significado para a ação construtiva, dando-lhe direcionamento prospectivo, quase premonitório.
Ao falecer, no início da década de 1970, um mundo novo começa a surgir; a ciência e a indústria da comunicação apresentam novos e instigantes desafios para a arte contemporânea.
Hoje, quase meio século depois da morte do artista, o mundo se transformou. A materialidade da arte é, hoje, transmutada, podendo ser agora high tech, digital e mesmo virtual. A própria figura do artista como criador é posta em questão. Estratégias como sample e remix concebem colagens ou ambientes manipuláveis e experiências estéticas multissensoriais. Essas novas tecnologias trouxeram designers, videomakers, matemáticos, cientistas da computação e diversos outros profissionais para o universo da arte. Nas grandes exposições e nas feiras de arte, a fotografia e o vídeo são consumidos por um número cada vez mais expressivo de pessoas, criando, assim, um mercado em expansão, que comercializa inclusive imagens virtuais através do universo cibernético. Hélio Oiticica proclamava “que o museu é o mundo”, questionando os limites físicos das instituições “protetoras” da arte. O que ele pensaria hoje desses mundos infinitos que cabem em nossos tablets ou celulares? O que ele pensaria do nível de interação num portal de notícias ou quando acessamos acervos de vídeos on-line? Nesse universo desafiador, a arte contemporânea necessita de novas ferramentas de ação, para que o ser humano possa ser sujeito dessas novas formas de comunicação e não apenas repassador de detritos digitais.
Trajetórias corajosas como as de Ivan Serpa acentuam a importância da ação artística como instrumento que define identidades culturais comuns, mas, também, como agente de pesquisa, questionamento e subversão. O fenômeno artístico interfere nos mecanismos da tecnologia, levando-os ao limite e direcionando-os para novas vertentes. Ivan Serpa respondia com ousadia e liberdade. Nas várias paisagens que percorreu – geométricas, informais, figurativas –, em várias técnicas e vários suportes, há uma inteligência natural do artista que entende a arte como instância, como agente essencial em qualquer processo humano, em qualquer campo da atividade criativa que necessita de pesquisa e de poesia para permitir que o homem seja sempre o sujeito de suas próprias construções.
A arte é assim: bela para muitos, perigosa para alguns... No mundo contemporâneo, é preciso sempre estar atento e forte e se alimentar de saberes oriundos do passado recente para que possamos enfrentar os dilemas e desafios propostos. Apenas a instância artística, que embasa e justifica a vida de Ivan Serpa, garante a ação criativa e semântica do homem contemporâneo, impedindo que as grandes redes, algumas comprometidas com outras instâncias, façam de cada usuário um títere, uma figura incapaz de descobrir e escapar de jogos de significados de uma trama virtual e global. Por isso o desafio maior da arte contemporânea é o enfrentamento: exemplos como o de Ivan Serpa nos dão a régua e o compasso e nos ensinam a superar e vencer os dragões da maldade.
Marcus de Lontra Costa
São Paulo, janeiro de 2020
Ivan Serpa - A expressão do concreto
1 Padre Antonio Vieira, “Sermão da quarta-feira de cinzas”.
2 Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra.
3 João do Vale e José Cândido, “Carcará”.
4 Enéas Brites da Silva e Aloísio A. da Costa, “Exaltação à Mangueira”.