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dezembro 16, 2020
Arte em Campo, despedida do Pacaembu. Observações atravessadas por Lucas Bambozzi
Arte em Campo, despedida do Pacaembu.
Observações atravessadas
[texto escrito para mídias sociais, tipicamente apressado, com linguagem misturada, podendo conter argumentos ainda em estágio de desenvolvimento - adaptado parcialmente para o Canal Contemporâneo]
por Lucas Bambozzi
Então eu fui nessa exposição (em cartaz até 17/12) que em tudo parece "pelegagem", mais um evento que usa arte e artistas pra “passar pano” na lógica “privativista” que rege essa cidade e o país que tem o “neoliberalismo como cartilha”.
Tá bom, mal começou o texto e já estou antecipando termos “entre aspas”, que fazem alguns torcerem o nariz e nem querer continuar lendo. Talvez seja esquerdopatia da minha parte (sic).
Volto à arte então. Tem obras incríveis, todos xs artistas ali são muito incríveis. Admiro todxs xs que vi, de verdade. Da mesma forma como também tinham artistas incríveis que muito admiro naquela mostra no Hospital Matarazzo (2014), viés e empreendimento por onde a história se repete, sim pela lógica da especulação, pela face da empresa desta cidade.
"Esqueça o Futuro" (2017) de Rafael Rg, enquadrando as bandeiras do Brasil e da prefeitura de SP.
Então, me chamou atenção o trabalho do Rafael Rg, por exemplo, um poste com uma placa de sinalização, dessas oficiosas em verde e branco, onde se lê “Esqueça o Futuro”, essa frase é uma forma interessante de se entender a exposição no Complexo do Estádio do Pacaembu como um todo. Instalado estrategicamente de costas para a entrada, sai melhor na foto justamente porque sugere o enquadre da bandeira do Brasil, no alto do estádio. Dependendo do ângulo, aparece também a bandeira da cidade de São Paulo. Ambas simbolizam uma disputa acirrada como ameaça ao futuro que desejamos para a cidade e para o país - em termos de coletividade, de bem comum.
"O Azar é Seu", diz a obra, de 2018, de Paulo Nazareth
A presença de Paulo Nazareth é marcante, não só pela contundência como por ser o único artista com 3 obras distintas na mostra. A icônica bola de futebol cravada por uma faca (que figura em vídeo, como escultura singular e como instalação) é uma das mais interessantes críticas à morte-matada do futebol como manifestação popular e espontânea. O “negócio” do futebol mata a bola como jogo, mas não é só isso que está sendo dito, claro. Diante do painel "O azar é seu", o público oscila em fazer selfies. Talvez por ser frase ríspida demais pra ser compartilhada, por não ensejar uma mensagem mais “joinha”. Deve ser boa a disputa interna de cada umx, mesmo que inconsciente, tentado que fica o pública pela estética retrô, com lâmpadas grandes, que remete a uma estética típica de um parque de diversão ou circo. Típica dessas coisas que o capitalismo moderniza e faz desaparecer e depois nos inventa formas de pagar a viagem retrô pelo viés da nostalgia. Mas acho mesmo que o azar é nosso, é um azar coletivo, de todes nós. Menos delEs, os super ricos (aqui abro mão da linguagem neutra, pois “ser um super-rico”, parece ser, quase sempre, uma obsessão, uma tara masculina, por cifras e poder).
Condutor, 2020, de Erica Ferrari e Deyson Gilbert
Tem ainda uma escultura belíssima do José Spaniol, que se eleva no meio da quadra de tênis equilibrando mesas retrô (Ao léu, 2013). Tem os ótimos cupins do Laerte Ramos, que se espalham pelo campo já loteado (literalmente), enfatizando o descaso com a coisa pública (Baixa Temporada, 2013). As bandeiras corroídas da Erica Ferrari com o Deyson Gilbert, enclausuradas em um espaço apertado, numa sala antes destinada à Polícia Militar, chamada Quarto do Choque) é talvez o trabalho que mais foi pensado em função do espaço, como uma obra “site-specific”. A obra chama-se “Condutor” em analogia à frase "Não sou conduzido, conduzo" do latim, "Non Ducor Duco", presente na bandeira da Cidade de São Paulo. Drapejando seus farrapos aos ventos do ventilador e ao som de torcidas e protestos, também enfatiza a ideia de que deixar o bem comum à míngua é a estratégia mais nítida nas justificativas que dizem, “ah, mas estava tudo tão decadente”. Um potente painel luminoso, em letras vermelhas da Carmela Gross continua ainda hoje me solicitando a chave de um enigma entre palavras como “Jogadores”, “Gatunos”, “Ladrões” “Herdeiros”, “Degenerados”, “Arrivistas” que apesar de ser uma obra de 2016 (Figurantes), as palavras se re-tensionam, ganham novos significados e não deixam de remeter ao poder que nos governa hoje.
"Figurantes" (2016), painel luminoso de Carmela Gross.
Mas então, em meio às obras, o que mais me chamou a atenção, não foram exatamente as obras citadas ou outras tantas que poderia examinar mais de perto. Mas se sobressai, acima de tudo, o complexo do Pacaembu em si. Já o conhecia bem, já frequentei muito a piscina, já levei a filhota pra andar de skate e bicicleta, comia pastel de feira nas quintas e sábados, já fui até em partida de futebol. Ali, no vazio entre as obras, se destaca afinal algo que importa muito: a coisa pública, o orgulho de que aquilo atende a anseios e necessidades comuns. A coisa pública “crua”, com a pintura desgastada, em tons desbotados, em mobiliário esmaecido (talvez decadente aos olhos de uns) mas que exerce um fascínio que no geral ganha da arte em interesse, em estética e também em experiência real na visita à exposição. Pois a exposição, desconfiamos, serve a outros fins que não a coisa pública.
Piscina vazia, com algumas poças d'água, provavelmente como resquício de chuva. As telas compõem a obra "Banhistas" de Wagner Malta Tavares.
A obsessão por "modernidade", por privatização, por se desfazer da coisa pública equivale à tara de certa classe em colocar porcelanato em tudo, equivale à ânsia em esconder o esmaecido, em louvar apenas aquilo que reluz como ouro, equivale à lógica em “reformar” o bem comum como oportunidade de "negócios".
Eu não faço mais parte de muito disso. É um pequeno alívio. Não estou em galerias desde que o negócio das feiras tomou de forma mais voraz o circuito da arte e me vi mais útil em outras vertentes, menos negociais, dialogando com outros públicos e interesses.
Faço parte por exemplo de um grupo em que estamos conduzindo uma experiência de galeria que opera de forma enviesada, a ReOcupa ligada à Ocupação 9 de Julho, em SP. Teria sido oportuno fazer alguma ação junto ao evento? Sim, mas de fora, com alguma ação como o Carro do Ovo, a qual foi aventada, mas não de forma conivente. Lançaríamos perguntas como essas que se faz aqui, nesse texto.
Há muita especulação sobre como a concessão do Pacaembu vai operar pelos próximos 35 anos (o contrato se encerra em 2055). Nem toda informação diz que a coisa pública vai acabar, talvez seja exagero falar em “despedida”. Mas nas mídias mais bem estabelecidas, a crítica que se viu, coloca foco também no novo que vem em socorro ao velho (O Velho Pacaembu se despede com arte, no Estadão, 08/12/2020). E não na importância de que o que é público se mantenha como público ou na análise crítica de obras que criticam o que se passa na privatização, nas relações negociais ou nas condições que os artistas têm hoje de continuarem a fazer arte com dignidade.
Pois sim, a coisa pública, a coisa coletiva, essa me nos importa cada vez mais.
Epílogo (comentários a questões surgidas por ocasião desta publicação no Instagram e Facebook)
@jp_accacio me pergunta se eu aceitaria participar se fosse convidado.
Comento que só participam artistas através de galerias. Entendi que esse é o jogo. Não fui convidado, mas só me convidariam se fosse através de uma galeria. Mas se seu eu estivesse junto a uma galeria tipicamente comercial talvez estivesse em outra relação com o mercado. Ou seja, eu estaria talvez, nessa outra “existência”, contexto e momento, mais dentro do jogo, lidando com suas regras, suas conivências, suas “pelegagens” (vale resgatar esse termo). Então seria um conflito diferente. Mas pela admiração aos trabalhos que descrevi, talvez estivesse nessa vibração: a de evidenciar as contradições do mecanismo, com a maior contundência possível, dentro e além do simbólico. A pergunta: “se te convidassem vc participaria” sugere um viés de ressentimento. Como se eu estivesse escrevendo isso aqui por não estar participando. E se o convite tivesse vindo no contexto atual em que me encontro, eu provavelmente não participaria.
Acho que nossa condição de artista-etc, a de se lançar em outros práticas correlatas ligadas à arte, o que nos garante subsistência e nos conclama a um certo distanciamento dos sistemas mais comprometidos com o sistema da arte, de avaliação constante do que nos rodeia, nos faz acreditar que o exercício da crítica é fundamental. Mas é nítido como busca-se desqualificar quem critica (como a insinuação de ressentimento, por exemplo). Muitos de nós já estivemos dentro, a gente sabe como a crítica de arte na imprensa já vem encomendada pela galeria. Já vem como inserção de valor simbólico no próprio mercado. Ou seja, não há crítica, só há tapinha nas costas, alisamentos negociais. E muita hipocrisia.
@edithderdyk comenta que Flávio Império, na década 70, num encontro no Lasar Segall disse que os artistas eram “os passarinhos da sociedade”.
Sim acho lindo isso de artistas serem passarinhos. E às vezes precisam atuar em bando, pra se proteger ou pra irem mais longe, juntos. E tem as revoadas que produzem formações coletivas, maravilhosas.
@mairavazvalente comenta sobre uma suposta normalização das atrocidades. @renatocustodio comenta: “Tá tudo muito confuso, ou muito claro. A arte em campo passando um estádio público pra iniciativa privada”.
Sim, me preocupa que de tanto falarmos já não se escute. E tenho convicção que há que se desmascarar a lógica da privatização. Ela se entranhou como solução simplista justamente diante da aparência esmaecida que a coisa pública adquiriu. Jogar pedra na coisa pública virou esporte preferido das classes mais exploradas. Pois difundiram a ideia de que a privatização garantiria os serviços de qualidade que essa classe não tem acesso. Há uma campanha há décadas sustentando isso, a de que toda solução aos problemas, toda modernidade e todo progresso, vem da privatização. No que acreditamos? Eu acredito que não queremos todo o progresso que certo mundo nos impõe. O estado das coisas na política está em torno disso, a especulação, a reforma da previdência, a privatização dos ginásios, do sistema de saúde, da educação. O custo do agronegócio igualando os alimentos a veneno. O custo de certos minérios e o fim de todo um ecossistema. O custo da saúde privada pelo sucateamento do SUS. Sim, e a arte, o que ela tem a ver com isso? Os artistas não precisam endossar lógicas coloniais, modos de extrativismo, modelos de produção de precariedade, precisam?
O que tenho certeza é de que nos tornamos guardiões das escolhas, desmandos e atrocidades dos que elegemos como nossos representantes. E para realizar seus interesses pessoais, supõem nosso cansaço, nosso esmorecimento, e muitas vezes, é por aí que o capital vence, por onde passa a boiada, por onde a vida escoa.
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