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dezembro 11, 2020
Entre gravuras e colagens de uma artista singular por Ivo Mesquita
Entre gravuras e colagens de uma artista singular
IVO MESQUITA
Uma visão panorâmica dessas produções poucas vezes reunida, oferece a oportunidade de perceber como os seus fundamentos da pintura, da gravura e da colagem foram expandidos e contaminados, sem jamais se imporem uma à outra.
Desde o princípio, o trabalho de Beatriz Milhazes está relacionado a duas noções e processos fundamentais: colagem e impressão. Juntos esteiam a base de um método próprio de sua pintura, que, assim como seu vocabulário plástico, instituem uma marca registrada da artista na paisagem da arte hoje. Nomeada por ela como monotransfer (envolve princípios de monotipia e decalque), a técnica de transferência consiste em desenhar a imagem de um lado de uma folha de plástico e então pintar o verso dela. “Quando a imagem está acabada, colo a superfície pintada diretamente sobre a tela. […] Essa descoberta me abriu uma porta enorme como pintora, com possibilidades infinitas. Eu podia usar uma técnica relacionada com a colagem [e com a gravura], mas usando os meus temas e desenhos em lugar de imagens reproduzidas mecanicamente”, explica.
Este segmento da mostra Beatriz Milhazes: Avenida Paulista, em cartaz no Itaú Cultural (IC), apresenta um amplo conjunto de gravuras e colagens da artista, uma visão panorâmica dessas produções poucas vezes reunida, oferecendo ao público a oportunidade de perceber como os fundamentos da pintura, da gravura e da colagem foram, ao longo do tempo, expandidos e contaminados, desfazendo qualquer hierarquia entre elas, sem jamais se imporem uma à outra, mas sempre aprofundando uma inteligência sobre a arte e a construção da visualidade e da percepção.
A primeira série de gravuras foi feita em 1996 e a de colagens em 2003. Entretanto, a exposição não as apresenta em ordem cronológica, mas, sim, combinadas conforme os desdobramentos conceituais, metodológicos e formais no interior do trabalho. Por certo é possível perceber referências da pintura no início de cada uma das novas práticas da artista, mas, da mesma forma, como dela se desgarram, no correr do processo, para fundar sua autonomia no conjunto da produção. O que amarra tudo, cria o corpo da obra, é a perseverança no projeto de trabalho, a atitude e os sentimentos da autora na sua criação. Pintura, gravura e colagem, cada uma a seu modo, viabilizam-se mutuamente, assim como projetos de escultura, instalação, tecidos, vitrais e murais.
A produção artística de Milhazes constitui um dos mais potentes e originais projetos de pintura contemporânea, sempre entendida como um território em movimento e expansão, e a disciplina concebida como um exercício de caráter conceitual e programático, antes de qualquer a priori determinado por alguma experiência existencial. Colagem, gravura e pintura se constroem mutuamente, numa obra madura, singular, um paradigma de liberdade visual e prazer estético.
Ivo Mesquita
Curador
Estratégia, exploração, formas e interação de técnicas
O curador de Beatriz Milhazes: Avenida Paulista para a mostra no Itaú Cultural escolheu obras que revelam o pensamento criativo da artista. Cada piso joga luz nesse processo. Acompanhe aqui o passo a passo da exposição e comentários.
PISO 1
Com um número maior de colagens, aqui as obras se alinham de modo a mostraras estratégias da artista na construção do plano e na ocupação do espaço de representação com diferentes composições, combinações e deslocamentos, assim como na manipulação do repertório de temas e motivos do imaginário da artista: a folha de louro, as listras, as rosáceas, os alvos, as formas vazadas e os padrões decorativos.
“As colagens têm uma espécie de diálogo com um diário, mas um diário imaginário. Os papéis colecionados vêm de uma variedade de interesses: às vezes uma atração estética, outros são parte de uma rotina como embalagens de chocolate ou recortes que sobraram de impressões existentes. Por isso a construção da composição na colagem cria um diálogo que só existe na colagem.”
(Beatriz Milhazes em entrevista com Richard Armstrong, 2018)
“A arte de Beatriz Milhazes é sobre a cor, mas sobretudo ela é cor. E não apenas isso. É apaixonada pela cor. Casada com a cor. Curada pela cor. Mas também traída pela cor. Ferida pela cor. Drogada pela cor. Sequestrada pela cor. Corrompida pela cor. Mas nunca tragicamente. Pelo contrário, sempre de maneira muito feliz. Ou melhor: alegre, jubilosa. A cor repetida muitas vezes, sempre diferente.”
(Barry Schwabsky, Beatriz Milhazes – cor viva, 2002)
PISO 1S
Aqui, é possível observar gravuras e trabalhos em torno da exploração das formas circulares, criando núcleos que enfatizam o caráter lúdico e exacerbam os efeitos óticos das composições. A repetição, o jogo entre positivo e negativo, a evolução e a movimentação de círculos concêntricos resultam em algo assoberbante e desestabilizador.
“A pintura capta a imediatez do ato. Na gravura, a estabilidade da matéria oferece um outro valor perseguido por Milhazes, que são evidências de cálculo, matemática e razão. O próprio tempo ordenado se exibe coeso na gravura.”
(Paulo Herkenhoff, Beatriz Milhazes, cor e volúpia, 2006)
PISO 2S
Processos de trabalho na gravura e na colagem, momentos de interação entre elas e a pintura, o desenvolvimento do repertório de temas e motivos característicos da artista. Neste piso, é possível conhecer outros projetos gráficos dela, como livros e colaborações com diferentes publicações.
“Todos os meus espaços de trabalho têm aspecto de casa. Nunca morei em nenhum, mas gosto que tenham uma atmosfera reconhecível, com objetos, memórias e imagens que me motivam, livros que posso consultar. Tudo que está no ateliê compõe um ambiente que me acolhe e me deixa à vontade, inteira. (...) Tento fazer as mudanças necessárias para me adequar aos momentos e demandas de cada etapa da vida artística, contudo sem alterar a relação genuína que tenho com a minha obra, o meu processo e a minha rotina no ateliê.”
(Beatriz Milhazes em entrevista com Lilian Tone, 2018)
“As noções de pintura, gravura e colagem foram expandidas e contaminadas, desfazendo qualquer hierarquia entre elas, sem jamais se imporem uma à outra, mas viabilizando-se mutuamente e aprofundando uma inteligência sobre a arte, a construção da visualidade e da percepção.”
(Ivo Mesquita, Beatriz Milhazes colar, gravar, pintar, transferir, 2020)
“A obra de Milhazes possui a extraordinária complexidade das coisas simples, e nos coloca diante de uma estonteante evidência plástica.”.
(Frédéric Paul, Un numéro monstre, 2018)