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março 7, 2020
Arquiteturas instáveis: sem briga com as cores por Paulo Sergio Duarte
Arquiteturas instáveis: sem briga com as cores
PAULO SERGIO DUARTE
Tudo é resto. Placas de papelão de embalagens descartáveis. Tudo desprezível pela sociedade de consumo que lança ao lixo diariamente toneladas desse material. Myriam Glatt não esconde isso, nas bordas de cada trabalho está exposto, não falsifica um “acabamento” para mascarar a origem. Evita qualquer maquiagem sucessora do design. E transforma o desperdício em acontecimento plástico. Insisto, embora haja uma dimensão política muito forte nas escolhas dos materiais, o que se evidencia na mostra é a questão artística. É importante ressaltar esse aspecto porque a arte contemporânea com muita frequência deixa a dimensão política eclipsar completamente a força artística, esta se torna débil, às vezes até mesmo desaparece a favor de panfletos visuais. Nossa artista demonstra como é possível o contrário: ser uma arte política com dimensão estética.
É ver, sobretudo, que as opções cromáticas da artista são variações no sentido musical do termo. Mas, para isso que foi dito é preciso lembrar: variação na música implica na repetição do mesmo material de uma forma alterada, na harmonia, na melodia, no ritmo. É exatamente isso que encontramos no trabalho de Myriam Glatt.
Há, nos detalhes dos cortes dos papelões, a presença da origem. De onde nós viemos: do lixo. Mas, no conjunto, não briga com as cores, prefere expô-las sem dissonâncias, são passagens. A grande “Mandala” que ocupa o chão força essa evidência, a começar pela sua escala, sua dimensão a torna um instrumento muito forte, é o órgão nessa orquestra de vários instrumentos. As mutações do branco, amarelo, rosa, laranja dominam a galeria. Mas vejamos as variações dos brancos e algumas cores sobre a parede: as Abas Móveis. Algumas são coloridas. Mais que isso, são dobras que se evidenciam e a artista quer que as pessoas as manipulem, as modifiquem, mexam nelas. Dir-se-á: a “velha interação”, é isso, mas não é só isso. Cada dobra impõe seus próprios limites. Nessas sutis variações os trabalhos nunca serão os mesmos. E se tivermos algum deles perto de nós vamos ser muito gratificados. Vejam o tamanho, é muito delicado aquele de cada parte, um pequeno pedaço. E não nos esqueçamos que essa geometria é herdeira de um elevado momento da constituição da arte moderna no Brasil: o construtivismo. Toda essa lógica do passado está transportada para o presente de uma forma absolutamente contemporânea.
Lembrem do que foi dito no início: tudo feito sobre suportes para serem jogados fora. E Myriam Glatt transforma-os em obras de arte.
Paulo Sergio Duarte
Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2020.