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março 4, 2020
Como olhar para trás por Fernanda Lopes
Como olhar para trás
FERNANDA LOPES
“A memória é uma ilha de edição”, afirmou Waly Salomão no verso que abre o poema Carta aberta a John Ashbery (1996). Há quase um ano, Ilana Zisman, Maria Amélia Raeder, Mariana Sussekind, Priscila Rocha e eu começamos a trabalhar em um grupo de acompanhamento e discussão de trabalhos. Nos últimos seis meses nos dedicamos a pensar esta exposição. Durante todo o tempo em que falamos sobre memória (um dos pontos de contato em comum, a partir de diferentes pontos de vista, entre as produções de cada uma delas), a frase de Waly sempre se fez muito presente para mim.
Memória é o que construímos e, ao mesmo tempo, é também tudo aquilo que deixamos para trás. Entre pontos tão extremos (fazer presente e deixar ir) estamos nós. Ela não é uma coisa em si, mas um processo, uma ação, que necessariamente é posta em prática por alguém, em um momento determinado. É algo que se define e se redefine a partir dos olhos de quem vê, a partir do contexto em que se insere. Memória é situação. Ela é relativa, é parcial, é ponto de vista. Memória é disponibilidade, é envolvimento. A todo tempo estamos recriando, reinventando, reconstruindo nossa memória. Talvez nossas memórias digam muito mais sobre o que somos hoje, sobre o que acontece hoje, do que sobre como fomos ou sobre o que aconteceu um dia.
O título dessa exposição – Como olhar para trás – se constituiu a partir das nossas conversas e das discussões sobre os trabalhos. Diferente do que possa parecer à primeira vista, não é um manual ou um passo-a-passo de como construir memória, mas sim um questionamento ou um lembrete para nos mantermos atentos sobre o que se passa no presente e como este se constitui como lembrança.
Há quatro anos, Ilana Zisman vem constituindo uma produção que tem como um dos motores a descoberta de que uma parte importante da memória de sua família era desconhecida por ela. Era como se parte da história de sua família antes de chegar ao Brasil não tivesse existido. O processo de busca por informações, entrevistando pessoas, encontrando documentos, imagens, testemunhos, mapeando e cruzando nomes, cidades e histórias, vem alimentando a reconstrução dessa história e sua investigação artística. Em seus trabalhos há, de maneira diferente a tentativa recorrente de dar corpo às coisas, de tornar ou tentar manter presente uma memória (coletiva/pessoal) silenciada ou apagada ao longo do tempo. Talvez por isso a dimensão e escala humana sejam tão recorrentes em parte de seus trabalhos. Arquivo 1, da série Taharah (2019), ocupa quase toda a parede principal da sala. Sua presença física contrasta com a delicadeza do material que o constitui. Os papéis de seda, sustentados por uma tela pregada diretamente na parede, são tingidos em tons de vermelho em processo manual que exige o empenho da força física da artista (são o resultado possível a partir da atuação direta do corpo dela). O processo também coloca em evidência a fragilidade do material usado, que precisa resistir ao processo para manter sua integridade física. A aparência de carne e pele expostas reforça à referência no título ao ritual judaico de respeito e cuidado pelo qual o corpo passa antes de ser enterrado. Na parede oposta, a série de três pinturas sem título (2016) lida com o inverso: o papel vegetal, sobreposto em diferentes camadas, preso diretamente na parede, sem a proteção de moldura ou vidro, quase some na arquitetura, velando e revelando as formas e cores feitas pela artista. Em ambos os trabalhos, sua capacidade de permanência física é posta à prova a partir dos materiais usados. Há um jogo de opostos: enquanto um reclama presença, o outro quase não está mais ali.
O material também faz o duplo papel – de suporte e elemento central – na produção de Maria Amélia Raeder. Nos últimos anos, sua pesquisa interveio fisicamente no jornal, cortando dobrando, colando ou encobrindo, e também esteve interessada em sua dimensão mais conceitual, interferindo ora nas imagens, ora nos textos, e também na relação entre a frente e o verso das páginas. Em Estratégia para permanecer (2019), tanto o jornal quanto a fotografia – ao mesmo tempo veículos de circulação de informação sobre o presente, e fontes de constituição da história e da memória coletiva – tem seus estatutos originais de documento e de verdade imparcial colocados em cheque. Na grande instalação idealizada pela artista, os 230 desenhos em nanquim sobre papel vegetal que cobrem as paredes são como mais de 200 tentativas de manter uma mesma imagem presente. As linhas são traçadas a partir de um método desenvolvido pela artista que permite a criação de infinitos percursos dentro da mesma imagem. Não por acaso, vistas isoladamente, muitas lembram mapas ou labirintos, na tentativa de (re)construção de fronteiras e novos territórios. Nessas dezenas de tentativas, nenhuma é capaz de dar conta sozinha da imagem original, ao mesmo tempo em que nenhuma exclui a presença das outras. No corredor, a artista chama a atenção para outra possibilidade de olhar novamente para a mesma imagem. A página de jornal aqui é reproduzida quatro vezes e em cada uma delas a fotografia é coberta por uma das cores utilizadas na sua impressão. Escalas como a CMYK são responsáveis pela padronização das cores reproduzidas. Em conjunto, as duas obras evidenciam a ideia de imagem (e como consequência, a memória) como construção, estimulando também sua leitura crítica, a partir de diferentes pontos de vista, deixando de lado uma postura passiva, seja como público de uma exposição, seja como leitor de um jornal.
A ideia de construção e o interesse pela imagem também são motes da produção de Mariana Sussekind. Para realizar No dia que tiraram os lustres (2020) ela acompanhou ao longo de nove meses o desmonte de um apartamento após a morte de sua proprietária. Foram mais de 500 fotografias em preto e branco feitas nesse processo, sem uso de luz artificial e com planos mais fechados, evidenciando a experiência física da artista nesse espaço. Mas o que vemos na instalação não é a documentação desse processo de tornar algo passado e sim o olhar dela a partir dele. O espaço de exposição é como uma grande ilha de edição, onde estão reunidas 60 imagens, coladas diretamente nas paredes. Entre elas há variações de tamanhos e distâncias, além da repetição de algumas. A maneira como estão encadeadas, evidencia a importância da sequência e do ritmo nessa experiência, destacando as diferentes perspectivas e pontos de vista de cada imagem e também do conjunto. Como um documentário ficcional, é Mariana quem escolhe o que vai ser mostrado (e consequentemente o que vai ser descartado) e como vai ser mostrado (influenciando na leitura possível). Não se sabe onde ou quando as fotografias foram feitas. Não há indicação de quanto tempo durou esse processo. Nem mesmo se tudo o que vemos é a mesma casa. O peso de cada imagem e da maneira como se apresenta no espaço encontra com nossas memórias pessoais, reconhecendo em nossa experiência individual alguns daqueles objetos e situações, e à nossa curiosidade em tentar descobrir mais sobre quem morava lá, a partir das pistas deixadas pela artista. O áudio que faz parte da instalação soma mais uma camada às possibilidades de leitura. Assim, No dia que tiraram os lustres é um duplo exercício de observação e percepção: primeiro para artista e, depois, para o espectador. A cada olhar, uma nova história é criada e nenhuma, nem todas juntas, darão conta de reconstruir o que foi esse apartamento.
Ficção e realidade também estão em jogo nos trabalhos apresentados por Priscila Rocha. Suas pinturas, objetos e instalações tomam como base lembranças da infância, que nesta exposição se tornam presentes na figura dos soldadinhos de brinquedo. Presentes em diferentes épocas, culturas e lugares do mundo, essas figuras sobrevivem no imaginário coletivo por gerações, evocando uma memória coletiva e ao mesmo tempo individualizada. Em Valsa ensaiada e ..como o senhor era quando criança. Igualmente tristes e igualmente felizes (ambas de 2020) o processo de pintura se dá quase como em um campo de batalha. Pegadas impressas pelo brinquedo na superfície da tela se repetem e se acumulam, revelando os rastros deixados por uma brincadeira de ataque e defesa. Pegadas de tamanho adulto se misturam a essas, quase camufladas, revelando uma lógica de construção própria da pintura, com sobreposição de camadas, guardando no resultado final a história de sua construção. Quase irreconhecíveis, os soldadinhos também são a base material e conceitual de outros trabalhos que colocam em cheque o processo de institucionalização da memória. A vitrine que ocupa o hall de entrada da exposição – Museu de História (Des)natural (2019) ¬– assim como a linha do tempo desenhada na parede – sem título (2020) ¬– valem-se desses recursos expográficos comuns especialmente em museus de história para dar veracidade e peças e informações sem nenhum, ou quase nenhum, lastro histórico. A memória das obras produzidas por Priscila, assim como da própria casa, também são trazidas a público. Enquanto o livro-objeto sem título (2020) reúne parte do pensamento da artista durante o processo de construção da exposição, a instalação Ghost Army (2020) “revela” uma padronagem com folhas de acanto em uma das paredes da sala. Foi a pesquisa sobre os soldados de brinquedo que fez a artista descobrir que a folha de acanto, ao mesmo tempo em que se configurou como um símbolo militar, também teve forte presença na estética ornamental. As grades de ferro das portas da sala onde estão suas obras, assim como as sancas em gesso e o guarda-corpo da escada, originais deste casarão dos anos 1930, trazem essas folhas em seus ornamentos.
Fernanda Lopes