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dezembro 15, 2019
Mariza Carpes - Digo de onde venho por Paula Ramos
Tal como personagem, a figura da menina se repete: ereta, desponta com vestido abaixo dos joelhos, braços em repouso, pés unidos, cabelos comportados, expressões facial e corporal serenas. Tudo respira controle e delicadeza. Sua frontalidade perturba, mas ela insiste em manter os olhos fechados, em silêncio e reflexão. Em que estaria pensando? A pergunta parece tola, mas a natureza da figuração e a recorrência da imagem nos autorizam a divagar. Então, conscientes de que, deste modo, acessamos melhor nossos sonhos e lembranças, podemos imaginar que a menina rememora, fantasia ou planeja sua própria história. Num contraponto à imobilidade do corpo, passível de descrição, temos a fluidez e a liberdade do pensamento.
A menina atravessa a produção recente de Mariza Carpes. Ela surge solitária e introspectiva em meio a ramagens, plantas, águas ou suspensa no espaço; em roupas, objetos, fitas, bonecas; em imagens e fragmentos, produzidos, apropriados ou retrabalhados. A menina diante de seus caminhos, fantasmas, quereres. A menina e sua mãe. Mariza e sua mãe.
Durante anos a menina Mariza ouviu o tique-taque do relógio do balcão, bem como o pedalar incansável de Ivone Fontoura Carpes alimentando o motor da máquina de costura “Singer”. Na cidade de Santa Maria, onde a família vivia, a mãe gozava de amplo reconhecimento. Seus plissados, bordados e acabamentos para vestidos de festa eram famosos, e muitas foram as debutantes e noivas que ela vestiu. Como os irmãos, Mariza cresceu observando panos, linhas, rendas, botões, aviamentos, tesouras, moldes para roupas e o elegante manequim produzido no Rio de Janeiro, em 1955, a partir das medidas dela, Ivone. Quando esta parou de trabalhar, aquela começou a guardar.
Iberê Camargo, mestre e grande amigo da artista, escreveu que “a memória é a gaveta dos guardados” e que “as coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar”. Sem surpresa, Mariza percebeu-se desenhando com linha e máquina de costura, sobrepondo e amalgamando pacientemente camadas de tecidos, papéis, palavras, temporalidades. Viu-se, igualmente, recolhendo flores secas, metais enferrujados, fotografias e impressos desbotados: matérias maculadas pelos anos, que passou a encapsular e a emoldurar, tal como relíquias.
Os artefatos antigos, familiares ou estrangeiros, preservados ou encontrados, conservam, cada qual, seus estilhaços de memória, nem sempre aprazível. Aspecto similar vale para os materiais novos, do papel vegetal, com sua transparência de incômoda opacidade, ao chumbo derretido, com sua plástica maleável e toxidade. Na mesa repleta por cacos de vidro, por exemplo, estão vestígios dos copos de cristal oriundos do enxoval da artista, quebrados por um pássaro libertário; eles são o início de uma coleção que se estende há mais de 20 anos. Há leveza, mas também peso, reais e metafóricos. Há carinho, mas também purgação. “Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua” – Iberê, ele de novo.
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Digo de onde venho: o pessoal, o particular já na primeira palavra; o “eu” no início e no fim da sentença: digo / venho. Afirmação e movimento, com a segurança conquistada ao longo de décadas de continuada e sólida trajetória. O título da exposição assevera, portanto, a consciência e a maturidade da artista e aponta um eixo fundamental de sua pesquisa plástica: o mergulho em sua história pessoal e afetos. Ao mesmo tempo, o feminino, representado pela figura da mãe, da menina e dela mesma.