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novembro 21, 2019
Sofia Caesar - Canseira por Raphael Fonseca
Nas últimas semanas, uma fotografia que ilustrava a reportagem de um jornal de grande circulação não sai da minha cabeça. Nela vemos dois corpos vestidos dos pés à cabeça e deitados sobre a base de um monumento em São Paulo. O ato de deitar-se traz um detalhe que chama a atenção: cada cabeça está dentro de uma caixa que condiciona objetos para serem entregues. Tratam-se, portanto, de pessoas que trabalham entregando coisas de cá para lá de acordo com o desejo dos usuários de smartphones. O título que acompanhava a matéria contribuía com o desconforto da imagem: “12h por dia, 7 dias por semana, R$936: como é pedalar fazendo entregas por aplicativo”.
Essa lista de números que compunham a chamada da reportagem se tratava de uma reconstrução de uma das máximas dos direitos trabalhistas e da sociedade industrial: oito horas de trabalho, oito horas de recreação e oito horas de descanso. Parece não haver mais como retornar a essa contagem do tempo proposta durante o século XX – com a disseminação dos nossos computadores de bolso, as oito horas são facilmente extrapoladas e mesmo os atos de lazer são atos de vigia. Eu posto, tu postas, nós postamos – enquanto aquela cerveja com um grande amigo da infância é trabalho na medida em que constrói ficcionalmente a sua imagem de boa pessoa, a selfie com o colega de escritório com quem você viaja também o é na medida que demonstra que você consegue estabelecer vínculos afetivos para além do bater de teclas diário. Em suma: é tudo trabalho e, como diria a etimologia da palavra, todo trabalho é castigo.
Canseira, a primeira exposição individual de Sofia Caesar, apresenta uma pesquisa que gira em torno dessas questões e é capaz de dobrá-las em imagens que apontam para direções diferentes. Quais os lugares destinados para o repouso? Logo ao entrar, nosso corpo se depara com uma grande rede que corta o espaço de forma diagonal e convida o público a tomar o seu tempo deitado. Ao subir, a impressão de conforto e a memória física mole que a palavra “rede” pode nos trazer é substituída pela aspereza do material – trata-se de uma tela de segurança. Este encontro entre incômodo e aconchego guia a exposição e pode ser visto no grupo de cadeiras de praia também destinadas para o uso do público. Sentamo-nos, observamos o espaço a partir do assento e transportamos o objeto para outras salas. Cada uma das oito cadeiras traz uma letra e podemos criar composições a partir de seu sequenciamento. Quando juntas, a palavra “trabalho” se forma: o descanso de um é o castigo do outro – assim nos ensinam as praias cariocas e as assimetrias sociais ali percebidas.
A palavra ocupa um lugar importante na pesquisa recente da artista – desde o título da exposição à proposição das cadeiras, sua escrita é sucinta: há preferência pelas palavras soltas em detrimento das frases de efeito. Nada é panfletário e o ato de escrever é enxergado como algo físico e frágil. Três móbiles trazem um adjetivo e dois substantivos que compõem o campo semântico da “canseira” – girando de acordo com o vento, as letras que formam as palavras confundem a nossa leitura e nos remetem à nossa escrita diária deveras fragmentada. Vogais e consoantes giram em torno de seu eixo e se apresentam literalmente prestes a cair. Em outro de seus objetos, uma estrutura vertical de ferro sustenta expressões que remetem a lugares e apontam para diversas direções. Estamos em todos os lugares desse inventário de situações, mas ao mesmo tempo com os pés colocados em sua sala – quais as consequências da possibilidade de se viajar para onde quisermos sem sequer nos movermos?
O terceiro e último aspecto que chama a atenção na exposição de Sofia Caesar vai ao encontro da imagem citada no começo desse texto – a representação do corpo fatigado através do uso da fotografia e do vídeo. “Workation” é uma instalação dividida em quatro telas pretas que crescem proporcionalmente: um smartphone, um laptop e dois monitores de LCD de tamanhos diferentes. O corpo da artista está presente em todos os vídeos e está associado a um objeto de repouso ou trabalho – a cadeira de praia, a rede de dormir, a cama, a mesa de escritório e os papéis jogados para o ar. Há um jogo de metalinguagem – o vídeo sobre o vídeo, a tela de celular filmada e reproduzida dentro de outra tela. Nesse sutil espelhamento, o seu corpo cria posições onde a postura ereta é derretida e reafirma a sua incapacidade de dar continuidade à potência produtiva. A praia e a rede aqui não são os lugares do prazer e do lazer, mas do torpor.
Essa relação estabelecida pela artista nos leva à sua série de lambe-lambes e ao olhar crítico impresso sobre a produção de Hélio Oiticica – artista que não apenas dá nome a este centro cultural, mas que é um dos artistas brasileiros mais conhecidos internacionalmente. É sabido que ele desenvolveu em seu apartamento em Nova Iorque cinco das suas “Cosmococas” (1973, feitas em parceria com Neville D’Almeida) e deixou instruções para a sua realização. Duas décadas depois, os projetos foram produzidos em diferentes instituições e se tornaram peças essenciais para a história da instalação.
Durante o seu processo de pesquisa para esta exposição, Caesar se surpreendeu não com as proposições de Oiticica, mas com as imagens que encontrou de escritórios de grandes multinacionais: em muitas empresas do porte, por exemplo, da Google, áreas de convivência foram criadas a fim de que não apenas os funcionários relaxassem nas pausas de trabalho, mas também pudessem trabalhar junto à sensação de estarem em lazer. Quando essas imagens são ladeadas com as proposições de Oiticica, as semelhanças formais, ambientais e mesmo da participação do corpo humano chamam a atenção – para onde foi o desejo de “crelazer”, conceito criado por Oiticica em relação às suas instalações? De quais maneiras a própria noção de instalação foi capitalizada pelas grandes multinacionais? Como o próprio artista escreveu em um de seus trabalhos mais icônicos, “A pureza é um mito” – suas expectativas românticas quanto às artes visuais e sua relação com a sociedade foram antropofagizadas e viraram, perversamente, fantasmas encontrados nas lojas Ikea.
Se nos anos 1970 Oiticica e Neville D’Almeida sentiram um eco de seus pensamentos na leitura de “Eros e civilização” (1955), de Herbert Marcuse, é possível aproximar os interesses de Sofia Caesar de outro livro, “Sociedade do cansaço”, de Byung-chul Han (2010). Os tempos são outros; a equação 12 horas, 7 dias, 936 reais nos traz a certeza de que algo deu muito errado nesses quase cinquenta anos que separam “Canseira” das “Cosmococas”.