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outubro 6, 2019
Entre o Aiyê e o Orun por Thais Darzé
Entre o Aiyê e o Orun
THAIS DARZÉ
Na visão de mundo afro-brasileira os questionamentos não encontram “respostas filosóficas”, pois na tradição africana, a mitologia conta histórias que narram o início e a razão das coisas. Esses mitos, também chamados de itans dentro das religiões afro-brasileiras, formam uma vasta mitologia vinda da África, que criou o modo de ver, vivenciar e sentir o mundo de muitos brasileiros.
Entre o Aiyê e o Orun é uma exposição coletiva formada por 14 artistas que possuem poéticas relacionadas aos mitos africanos que permaneceram no Brasil e por essa razão moldaram em muitos aspectos a cultura brasileira. O Aiyê e o Orun estão em constante troca e integração, são palavras da língua iorubá, e as suas traduções significam mundo material (a terra) e mundo espiritual (o céu) respectivamente. Na cosmologia iorubá, a existência pode ser compreendida através destes dois níveis de mundo e universo. O Aiyê é o mundo humano, materializado, sentido, concreto e tocável, onde a natureza, os seres são produzidos e fiscalizados. Já o Orun está reservado para o intocável, ilimitado, transcendente, espaço dos Orixás e Eguns. Estes dois níveis se complementam, e juntos produzem a harmonia necessária ao ato de existir.
São expostas obras em diversas linguagens, como fotografia, pintura, escultura, instalação e vídeo, realizada pelos artistas Agnaldo dos Santos, Ayrson Heráclito, Caetano Dias, Carybé, Emanoel Araújo, J. Cunha, Jaime Figura, José Adário dos Santos, Mario Cravo Junior, Mario Cravo Neto, Mestre Didi, Nádia Taquary, Pierre Verger e Rubem Valentim. Há ausências, não poucas, mas as exposições nunca são completas. Entre o Aiyê e o Orun pode ser vista apenas como uma iniciativa que pretende fomentar e construir novas narrativas num viés menos eurocêntrico da história da arte, saudando nossa ancestralidade e a relação desta com identidade, mestiçagem, religiosidade, abarcando questões relacionadas à presença e à importância do negro no Brasil.
Um traço em comum entre os artistas dessa mostra é que “o conteúdo afro-brasileiro” transita no território do sagrado, sagrado esse silenciado, velado e perseguido durante séculos. Sabemos que as manifestações culturais de influência africana eram perseguidas, menosprezadas, e até mesmo proibidas até o início do século XX. É a partir dos anos 30 que tais expressões culturais passam a ser gradativamente aceitas e lentamente adotadas pelas elites econômicas e intelectuais do Brasil, que, sobretudo, passam a reconhecer a influência dos povos africanos na construção da identidade brasileira.
As diversas versões do Mito da Criação do mundo na visão afro-brasileira conduzem a proposta conceitual da exposição Entre o Aiyê e o Orun. Nas sociedades tradicionais africanas, as narrativas orais são um traço dominante para transmissão e preservação da sabedoria dos povos. Por essa razão, a pesquisa curatorial dessa mostra também considerou alguns relatos através da oralidade de membros de terreiros de diferentes nações, tais como Ketu, Angola e Jeje.
As mitologias dos povos iorubás, fon e ewé são mais ricas e personificadas. Uma rede complexa de acontecimentos narram e explicam a razão das coisas. Existem distinções entre as versões e fusões de divindades entre as duas nações (Ketu e Jeje). Segundo Lima, no início do século XIX o processo “aculturativo” entre os nagôs e jejes deve ter se acentuado na Bahia dada a participação de líderes religiosos das duas tradições em movimentos de resistência antiescravista. Já a tradição bantu não personifica as entidades que são para essa cosmologia as forças da natureza. Na visão de mundo desses povos, o raio não casou com trovão e nem a cólera é filha da lama.
Poderia estabelecer diversos paralelos do conjunto de obras da mostra Entre o Aiyê e Orun com as pinturas de Picasso, Braque, Matisse, ou mesmo Gauguin, artistas que foram profundamente afetados pela cultura africana. Outra possível comparação seria o teto da Capela Sistina de Michelangelo, porém esse caminho nos mantém no mesmo lugar de ter a cultura europeia como referencial de uma suposta superioridade. Escolho o questionamento através das palavras de Emanoel Araujo: “Será que não poderemos jamais nos livrar das definições estabelecidas por critérios definidos tão remotamente e desse olhar tão comprometido por uma cultura do racionalismo europeu e de sua hegemonia ocidental?”.
Tentar é preciso!
Thais Darzé