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setembro 3, 2019
Elvis Almeida - Estrada nebulosa sem olhos de gato por Pablo León de la Barra
Elvis Almeida - Estrada nebulosa sem olhos de gato
PABLO LEÓN DE LA BARRA
A Galeria Mercedes Viegas apresenta Estrada nebulosa sem olhos de gato, segunda individual de Elvis Almeida na galeria. A exposição reúne 18 pinturas inéditas do artista, e tem sua abertura no dia 6 de agosto. Infiltrada pelo grafite, a sinalização urbana e o comércio popular, “Estrada” explicita uma arquitetura em movimento, seduzida por curvas hipnóticas e atacada por cores vibrantes.
Estação de Ramos. Bairro dividido em dois pelos trilhos da linha de trem, e separado da antiga praia de Ramos e da Baía de Guanabara pela construção da Avenida Brasil na década de 1940. Grafites nas colunas da estrada elevada. Em uma parede, o escrito pintado a mão, NEM ELEIÇÃO NEM INTERVENÇÃO MILITAR! REVOLUÇÃO JÁ! UNIDADE VERMELHA. As letras são apagadas pelos empregados da estação. Casas do final do século XIX e edifícios Déco dos anos 20/30 indicam que o bairro já viveu tempos melhores. Um grande cinema estilo Déco abandonado. A uma distância próxima, pode se ver o teleférico do Complexo do Alemão, desativado há três anos. O estúdio que Elvis Almeida compartilhava com outros grafiteiros na Rua Uranos ficava quase em frente a estação. O som da rua e o ruído contínuo dos trens levando trabalhadores ao centro e de volta para casa é parte do cotidiano do artista. A fachada de um prédio próximo está coberta de azulejos que formam desenhos geométricos, estes pichados por cima de maneira aleatória. Estas duas camadas coexistindo na mesma superfície, uma racional, ordenada, e a outra, urbana, com ritmo próprio, pareceriam oferecer a mesma sobreposição de diferentes ordens que acontece na pintura de Almeida. Ramos é o bairro onde Almeida nasceu, cresceu e vive, ali foi onde seus pais se estabeleceram quando migraram do Nordeste. A relação com a estética do contexto imediato poderia ser um dos muitos pontos de entrada para entender a pintura de Almeida. A cultura popular urbana que se manifesta nas fachadas e nas decorações das casas, lojas e botecos. A relação entre diferentes camadas de decoração e informação que produzem uma estética urbana popular que Almeida rearranja, enaltece e incorpora com humor e como forma de resistência, que possibilitam que a pintura de Almeida seja tão carioca sem replicar os clichês post-bossa nova da carioquice. Qual é a mudança radical que aconteceu nos últimos 10 anos no Rio, que permitiu a uma nova geração de artistas da periferia carioca, que não pertencem a Zona Sul, ter acesso aos sistemas de arte e cultura do Rio? Dentro do momento político atual do Brasil, com o desmoronamento dos sistemas de educação e cultura (entre muitas outras coisas), torna-se ainda mais urgente a presença das vozes diversas que questionam as narrativas dominantes e dão visibilidade a realidades mais complexas.
As pinturas de Almeida não tem títulos, portanto não existem chaves de entrada para o espectador que procura uma única leitura a partir do título da obra. Isto obriga ele/a a olhar o trabalho para decifrar o que acontece em cada tela, criando assim a possibilidade das pinturas serem interpretadas de maneira autônoma, de serem batizadas pelo espectador. As abstrações produzem diferentes significados dependendo da pessoa que as olha. Eu me arrisquei no exercício de dar nomes, ou títulos, a algumas telas: Paisagem Guignard Século XXI, White Horses ou Os cavalos do Apocalipses Carioca, Quatro luas com lágrimas sobre o Rio de Janeiro ou Olhos de gato na obscuridade de Guanabara, Momentos perdidos no tempo como lágrimas na chuva, Quarta-feira de cinzas, Pinball Intergaláctico ou Show de Bola, Brasil 3000 ou Matrix encontra Tron encontra Bola Preta, Fogo na Churrasqueira Pop Portátil, Doble mantra com centros deslocados, O país invisível.
Da mesma maneira, tento listar os diferentes elementos dentro de uma pintura na intenção de ir além da superfície e entrar dentro delas. Estrela verde, lágrimas rosas, lágrimas negras, bandeirinhas de festa junina, repetição de linhas verticais em vermelho e rosa. Explosões. Um Sol sobreposto quase invisível. Círculos concêntricos de diferentes tamanhos e tonalidades, na metade superior os círculos se duplicam, a estrutura radial que os gera também, dois sóis, duas sombras, realidades múltiplas, no fundo uma outra camada de padrões geométricos irregulares. Quatro estruturas sobrepostas, uma lembra uma grade de janela, outra uma explosão interna, a terceira está formada por círculos, a quarta feita por linhas paralelas horizontais. Cores ácidas, cores fluorescentes, cores brilhantes e cintilantes. Pinturas onde as cores são constitutivas e resistem a ideia de que a cor é só decorativa. Pinturas criadas no momento, de maneira quase automática, sem regras externas ou um sistema organizador escolhido a priori. Elementos dentro delas que se propagam como um vírus, reproduzindo-se de formas aleatórias e contaminando a tela. Repetição de padrões que parecem iguais mas cada um é diferente, figuras que o artista encontra em suas derivas pela rua: círculos, estrelas, gotas, pílulas, e outras formas que se multiplicam e são ressignificadas, criando novas conversas entre os diversos elementos.
Imagens que poderiam parecer momentos de êxtases na roda de samba ou pagode, no desfile ou bloco de Carnaval, ou lembranças de jogos e brincadeiras de Festa Junina Nordestina. Uma estética surgida em uma feira de diversões ou um circo intergaláctico. Confete pós-festa, antropofagia popular, vômito de purpurina intergaláctica. Pinturas quase autogeradas onde a saturação de símbolos produz um clímax. Pinturas que abrem janelas a outras dimensões e realidades. Pinturas produto de uma explosão onde tudo coexiste: o biológico, o geológico, o mecânico, o cibernético e o virtual. Conexões entre diferentes sistemas operativos, todos com vida própria, cadeias de DNA, células em reprodução, circuitos elétricos, circuitos de informação, maquinarias pós-industriais, mensagens telepáticas. Cortes transversais através da pele ou camadas geológicas do planeta, vulcões ou epiderme humana em explosão. Viagens cósmicas, campos de energia, estrelas supernovas, buracos negros. Desaparição de qualquer sistema de ordem e controle a favor de um caos anárquico e vertiginoso.
Pinturas pequenas em caixinhas de doce de buriti. Pinturas onde a tela é construída a partir da adição de elementos. Pinturas feitas com estêncil ou carimbos. Pinturas construídas com processos de transferências. Pinturas feitas com sobras e restos de outras telas. Pinturas onde você tenta não usar o pincel. Pinturas onde você tenta pintar sem ser pintor. Pinturas feitas nas telas onde você limpa o pincel. Pinturas feitas sobre superfícies de madeira unidas ao chassi por parafusos visíveis. Pinturas como as tatuagens em seu corpo, onde os diferentes símbolos coexistem (a diferença que em seu corpo a representação é figurativa e nas telas é abstrata). Sua pintura não nega sua origem de grafiteiro e desenhista de quadrinhos. Sua pintura é punk: Punk Abstrata, Neo-Neo-Concreta Pós-Sensível Punk, Carioca Punk de Carnaval, SambaFunkPunkBoogieWoogie da Avenida Brasil. Pinturas que falam da experiência de viver em uma cidade fragmentada e segregada. Pinturas que fazem visível o paraíso, purgatório e inferno que é o Rio de Janeiro.
As pinturas de Almeida poderiam existir para além da história, mas sem dúvida existe nelas uma presença subconsciente da história da arte. Poderíamos falar em diálogos imediatos, por exemplo, com Beatriz Milhazes, no uso das camadas e referências ao carnaval, ou com Luiz Zerbini, no uso do cor e referências tropicais. Mas os diálogos poderiam cruzar épocas mais distantes. Formas que parecem montanhas nos lembram de Alberto Guignard, bandeirinhas de festa junina que piscam o olho para Alfredo Volpi; geometrias em verde e rosa que lembram a série ‘Mangueira’ de Ivan Serpa; intestinos que lembram a obra visceral de Antônio Dias; um processo de repetição com origem na gravura que dialoga com estratégias similares na obra de Anna Bella Geiger; padrões kitsch e luzes de neon que lembram a série ‘Olho de guará’ da Lygia Pape na década de oitenta. Se os artistas neoconcretos em seu manifesto publicado no Rio de Janeiro em Março de 1959 propuseram erradicar na produção de arte uma postura mecânica e resgatar a dimensão sensorial da obra, o trabalho de Almeida vai além da dicotomia mecânica/sensorial e produz um novo manifesto a partir de novos fluxos entre as formas abstratas, a tela, a matéria pictórica, o artista, o espectador e o contexto urbano, cultural e social.
No momento atual, onde vivemos em meio a uma constante saturação de imagens, as pinturas de Almeida não pretendem representar esta saturação, mas funcionam como anti-imagens. Um grupo de screen savers que permitem o fluxo contínuo de imagens múltiplas e às vezes contraditórias, e que atuam como forma de resistência a essa constante saturação. Pinturas que funcionam como mantras que nos desconectam da realidade para que possamos voltar a nos conectar com essa realidade a partir de uma nova tomada de consciência. As pinturas de Almeida estão em um constante movimento interno, se abrem e multiplicam, se ativam quando são olhadas. Dentro do espaço de exposição, os elementos transitam e circulam entre pinturas, se contaminam e nos contaminam criando um campo magnético de energias e ressonâncias. Nesse sentido, as telas pintadas por Almeida estão vivas e contém dentro de si uma energia vital da qual precisamos hoje para poder iluminar de maneira coletiva essa estrada muito obscura e nebulosa na qual se transformou a Avenida Brasil.
Pablo León de la Barra, Rio de Janeiro, Agosto de 2019.