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agosto 3, 2019
Agarrar-se a pedras afiadas por Marisa Flórido
Agarrar-se a pedras afiadas
MARISA FLÓRIDO
“Terror domesticado”, assim definiu Régis Debray a imagem ao associá-la à morte, às máscaras funerárias em que o corpo perdido do morto é substituído pelo corpo visual da imagem, para prolongar sua presença ausente no seio da comunidade. Diante dos ritos funerários pré-históricos ou de obras que tematizam a Vanitas ou memento mori (“lembra-te que és mortal!”), estamos em presença da única certeza da existência, sua fatalidade. Estamos diante da consciência paradoxal da morte, presença negativa que só pode ser pensada como o indefinível absoluto.
Alquimistas se lançariam à busca da transmutação da matéria, para transgredir a morte, essa falta inerente à carne. Não por acaso, o ateliê do artista foi representado nos séculos XVI e XVII como o laboratório do alquimista, no qual a sabedoria secreta do artista-alquimista exercitava sua habilidade em desvendar o mistério dos elementos, da criação e das metamorfoses. Estoicos, por sua vez, defenderiam que é preciso aceitar e não temer a morte. Sobre os terrores da morte, Sêneca escreveria na Carta 4: "muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens minguam e fluem em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver, e ainda não sabem como morrer".
Agarrar-se a pedras afiadas, frase que intitula a exposição de Nathan Braga, foi emprestada dessa carta. Nathan, o artista que é também químico, está entre o alquimista e o estoico, o cientista e o poeta: diante do corpo perdido, da face apagada na morte, resta operar na tensão entre o agarrar-se às pedras afiadas da memória, à transmutação da matéria, e a dolorosa gestão da perda; resta operar na tensão entre a presença do ausente e a estranha materialidade do corpo perdido. Como fazê-lo sem tornar a obra mais um suporte para fantasmas, que assombram (d)o passado, transformando-o em mais um resíduo morto? Convocar pedras com arestas afiadas e cortantes para fazer do luto a força do gesto insurrecto ao porvir; para fazer da memória, uma irrupção em que o próprio tempo se apresenta em suas dinâmicas complexas e heterogêneas, em materialidades impuras e híbridas, ativadoras de memórias ambíguas e apagamentos inelutáveis.
A estranha materialidade do corpo perdido se reveste aqui de lirismos quase sempre trágicos. O artista, técnico em química, cria esculturas-objetos de naftalina por meio de processos físico-químicos, como também em “Crisálida”, trabalho em que a seda é lentamente pintada com pigmento sintetizado quimicamente pelo artista. Em “À tua imagem e semelhança”, valendo-se da semelhança entre os materiais, porta-retratos de mármore (mas vazios de imagem) são sustentados por uma prateleira de naftalina. A ação do tempo dissolve o suporte, os porta-retratos caem e se partem, partindo a imagem que falta. Se o mármore é o material da tradição escultórica por sua perenidade e dureza, também reveste túmulos e guardam a carne que desaparece e o cheiro de sua putrefação. Se a naftalina é um composto para repelir traças e preservar a vida de objetos antigos, seu cheiro impregna o presente da lembrança dos guardados. A memória tem (o)dores.
A mesma ambivalência é encontrada na coroa de flores com a faixa em que se lê: “sempre viva”. A frase traz a nomeação daquela espécie de flores que, entretanto, morrem. Como o paradoxo da palavra “agora” (essa “mentira estúpida”, escreveu Cortázar em Babas do diabo), sempre atrasada ao ser pronunciada, sempre defasada no fluxo irrevogável dos momentos. O cruzamento de tempos diferenciados em que se tramam eternidade e efemeridade, duração e fugacidade, a memória e o esquecimento, é também abordado na relação da palavra escrita com o suporte (nas obras com mármore e naftalina, mas também naqueles com matéria orgânica perecível como ovos e flores), assim como na relação da palavra com a imagem. Em “Acúmulos Forjados”, negativos fotográficos da infância do artista são enlaçados com memórias – e toda memória guarda um infinito de ficções – escritas nos slides.
Na “intermaterialidade e interdisciplinaridade” de seu processo, como define o artista, é justo no interstício entre o que se apresenta e o que escapa, que o olhar, o olfato, o corpo é convocado. Diante das pedras afiadas, sabemos que somos passagem. Que nosso corpo e rosto escavam lentamente seu apagamento e ausência.
Marisa Flórido - curadora