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agosto 3, 2019
Des-caminho por André Vechi
Des-caminho
ANDRÉ VECHI
Fernanda Andrade - Desenho-caminho, Galeria de Arte UFF, Niterói, RJ - 08/08/2019 a 08/09/2019
Desenho é percurso, resultado da trajetória de gestos circunscritos por um espaço definido. Esses movimentos geram uma série de marcas sobre a superfície, usualmente chamada de plano. As linhas e os pontos são os rastros dessas ações. Na sobreposição ou continuidade desses elementos fazemos surgir imagens, figuras mais ou menos nítidas que assumem ou disfarçam esse caráter quase aleatório dos traços em sua individualidade. O percurso nos leva sempre de um ponto a outro, da superfície imaculada e continua ao contraste gráfico entre figura e fundo, espaço e ação.
O caminho é da ordem da norma, da cartografia e do urbanismo. É percurso que se cristaliza, torna-se via, rua, estrada. Regido por regras, inscreve-se em mapas, condiciona o movimento de quem habita ou se instaura momentaneamente em um espaço. Desenhar, como um dos gestos primordiais de introdução ao território da visualidade e da comunicabilidade, antes mesmo da fala, passeia entre o percurso livre e o caminho codificado. Coloca-se justamente na tensão entre a subjetividade do gesto e a suposta universalidade da imagem.
Analogamente, nosso corpo estabelece ações, percursos contínuos, interrompidos, circulares, pela cidade. A urbe, contudo, não é uma superfície uniforme, embora assim nos pareça nos mapas. Isso se dá, pois a cartografia é ciência que captura a complexa realidade do espaço, sistematizando-a, retirando sua ação, apagando detalhes. Mapear, então, faz parte das tentativas de codificar o espaço, tornando-o cognoscível a partir de um pacto firmado pelos sistemas métricos e pela noção de escala. A cidade que nos engole, agora, cabe em nossas mãos, dependendo do zoom que damos nas telas. É justamente nela, hoje, que deixamos o registro de nossas caminhadas. Ao ativarmos a configuração de localização de nossos dispositivos móveis, permitimos o registro de nossos contínuos deslocamentos ao longo do dia com a precisão possível das limitações tecnológicas. Entretanto, os fluxos também se inscrevem em nossos corpos, não só pelo cansaço, mas, também, na memória, a partir das sensações convocadas.
Fernanda Andrade, na série Desenho-Caminho, refaz com a caneta sobre papel jornal seus deslocamentos cotidianos. Não se trata de relatar meramente o trajeto, retornando ao modo analógico-documental do desenho, não. O conjunto, iniciado em 2015 e ao qual a artista retorna em diferentes períodos e com renovadas intensidades, faz cintilar a imprecisão do humano frente ao desejado rigor da máquina como forma de reabertura para o poético e para a individualidade no espaço coletivo da cidade. É possível pensar em aspectos psicogeográficos desse processo, pois ele está mais preocupado com as marcas afetivas que ficam na lembrança de Fernanda enquanto habitante e usuária do espaço urbano, do que na sua tradução. De fato, pouco reconhecemos da cidade, pois seus indícios nos vem apagados. Identificamos apenas as linhas, volteios das idas e vindas, algumas poucas formas geométricas, que imaginamos ser edificações, e alguns outros elementos de uma gramática própria.
Não se trata de uma mera deriva ou, ainda, da vaguidez do flâneur de Benjamin e Baudelaire. A condução de Fernanda na cidade se faz por compromissos cotidianos, pelas necessidades e atividades diárias, muito mais do que pelo desejo de se reinventar uma cidade, de furar seu tempo e suas constrições. O que fica em seus desenhos é algo da abertura pertinente ao universo das formas abstratas, que não nos permite um reconhecimento direto. Possível efeito do descompromisso com as escalas. A artista rejeita a racionalidade cartesiana e a precisão das coisas, pois no fundo, não são mais do que acordos e convenções que se mostram insuficientes para a transmissão das particularidades experiência humana.
Lega-se ao observador o trabalho de desenhar figuras sobre os desenhos de Fernanda, inventando formas que lhe mais ou menos são familiares, reconhecendo aquilo que nunca esteve presente no papel, a não ser dentro da cabeça daquele que vê. Se não há claramente uma cidade, imaginam-se outras formas. Deve-se, ainda, realizar com o próprio corpo desenhos no espaço, negociando passagens com os objetos dispostos. Há, na instalação, uma série de jogos de equilíbrio entre as formas e o espaço do qual efetivamente participamos. A sobreposição de planos devido a fraca transparência do papel, aponta para a contaminação irrecusável entre as imagens. A corda tensionada que sustenta as estruturas e os trabalhos são linhas maleáveis traçando trajetos. A fragilidade dos desenhos, oscilando com nosso deslocamento são aproximações generosas da artista com o público. Ela não visa apartar suas anotações diárias dos caminhares, protegendo-os, mas apostar na delicadeza dessa forma, assumindo sua vulnerabilidade.
Fernanda caminha no papel e desenha no espaço. Constrói um caos organizado, ou uma organização caótica. Não se trata de estruturar uma definição, mas de encarar o conflito, de habitar a incerteza. Simultaneamente, encontramo-nos fora-diante de um desenho da artista e dentro-imersos em outro enigma de linhas por ela traçado. Desestabilizando as escalas, os princípios e os fins, a cartografia e a deriva, lançamo-nos na perplexidade causada pela fineza de seus traços que emergem da contínua negociação entre as ordenamento das construções e subjetividade do desejo.
André Vechi, julho de 2019.