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junho 28, 2019
Nem natureza nem tempo... por Bené Fonteles
Nem natureza nem tempo...
BENÉ FONTELES
São muitas as perguntas. Felizmente, nenhuma resposta é o que nos provoca a obra de Lia do Rio que já atravessa um percurso de quatro décadas. Há nela uma imensa afinidade em transformar, ou transcriar a natureza em cultura, o que já faz há milênios nossa ancestralidade indígena. Lia tem um pé lúdico lá no terreiro das ocas na floresta primeva.
Ela seduziu-se pela efemeridade do que as árvores produzem com sua sabedoria mais que biológica a se comunicar na interdependência dos vasos comunicantes da floresta e espaços dos centros urbanos e com os que desfrutam de sua generosidade a não parecer só do reino vegetal. Lia sabe do íntimo desta cadeia interdisciplinar e é com ela que faz a arte melhor e mais instigante.
Lia faz com que as folhas em suas analogias, formas, estágios de permanência que não se fecham, se desdobram – otemponãopassa – são continuum na paisagem ao permear as mais diversas situações ocupar espaços naturais ou criados pelo humano. Ou sendo objetos de parede, tridimensionais, ou ainda, sendo queimadas e ao virarem cinzas, ocupar sacrários transparentes e, sozinhas, todo o vazio de uma galeria em potência de poesis rara.
Lia tem a coragem de não se importar em expor o que se diz efêmero no espaço museológico. Confere nobreza e leveza, que ganha na arte contemporânea no Brasil um lugar de relevância ainda não de todo reconhecido, mas por tudo, significativo e seminal.
A poética de Lia em instalações e vídeos, objetos e o que poderia se chamar “arte ambiental” foi editada, em 2014, no exemplar livro Sobre a Natureza do Tempo e aqui expostos nesta mostra antológica que demonstra seu pensamento sofisticado e pleno de significantes desenvolvidos nestas décadas para nos por em diálogo profundo com a grande ilusão que é o tempo.
Os Maias contemporâneos dizem: Tempo é Arte! Lia perverte a natureza e o tempo, a natureza no tempo e o tempo na natureza, para nos transgredir os conceitos com uma natureza que não lhe só é externa, mas que lhe é intima do feminino tão próprio à força matriz das mulheres que nos dão origem e que sabem que as folhas fazem mais que mera fotossíntese, e que também adubam os sonhos.
Ela vai ao âmago das coisas raras que, de tão ordinárias, Lia lhes confere a aura do extraordinário, de uma poesia que lhe dá poder de jóia como a folha que se bifurca, é duas, ou outra que está prenhe de quase sementes alojadas no dorso. A artista as acolhe em cúpulas/relicários, cria ambiências espirais de outras folhas para um percurso do corpo/olhar ao destino do precioso. Lia quer dizer que ali reside mais que uma curiosidade biológica: mora o sagrado gesto mutável da criação.
Sua relação com o tempo, não só metafórica, mas de uma poética vivenciada a máxima, e até mínimal potência, age com uma ética soberana ao lidar com os elementos naturais, para não falar do transitório, mas não só, Lia nos conta sobre o transcendente e do seu poder de transubstanciar a matéria até que ela seja só arte.
Ao conjugar a terra, pedregulhos, folhas e outros elementos em espaços de percurso nas cidades como Brasília, Rio de Janeiro ou Tóquio, dialogando com os trajetos não tão habituais do público pego de surpresa, Lia busca a força natural e matriz que existe em cada ser e da qual não pode negar, nem se afastar, pois é essencialmente sua natureza dentro e fora. Ela tem o poder angular, de nos lembrar do poder nutriz das sementes e das folhas, quando também coloca uma semente num suposto ostensório de acrílico transparente, a nos querer dizer quase igual o poeta anônimo do Nordeste: Existe um pomar oculto no coração da semente.
Lia nos faz recordar de toda história da Vida que nos faz e refaz generosa, mas às vezes impiedosa, e muito mais, que não é só fazer Arte. A artista nos faz mais humanos. E mais do que humanos, ela nos recorda que também somos divinos quando transmutamos a matéria da qual temos a plenitude do conhecimento, mas relegamos ao lugar do utilitário e do efêmero e não da sabedoria milenar praticada pelos aborígenes da Terra que tem os elementos como parceiros de um processo criativo.
Lia nos educa à percepção e à sensibilidade – é também professora de artes visuais – para irmos até aos movimentos e texturas muito íntimos dos micromundos e enxergar além e com acuidade crítica, o macro que por vezes nos apequena. Sábia, sabe sentir com outros olhos de quem não só apenas vê. Gauguin disse: Eu fecho os olhos para ver.
Lia nos guia, os cegos de linguagem poética perceptiva e sensitiva, para nos completar com o “olhar” sensorial e em suas obras, contemplar, buscar no Ser o que é imenso.
Bené Fonteles
Março de 2019