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junho 16, 2019
Frantz – Também e ainda pintura por Francisco Dalcol
Frantz – Também e ainda pintura
FRANCISCO DALCOL
A verdade é tão estranha quanto desafiadora: Frantz é um pintor que não pinta. Ou, ao menos, que não pinta mais, se entendermos o pintar como o gesto que plasma no encontro da tinta com a tela o acontecimento que faz pintura.
Se não pinta mais, é porque antes Frantz já pintou. Isso foi no começo dos anos 1980, quando o jovem artista despontou, logo se projetando no circuito artístico local e mesmo nacional, naquele momento histórico em que a pintura, frente à sua longeva tradição e suas sucessivas mortes decretadas, era reabilitada por um renovado interesse pela pesquisa de seus meios e linguagem. Mesmo assim, quando Frantz ainda pintava, sua pintura já era pautada pela insubordinação e subversão aos padrões, orientando-se pelo questionamento às convicções em torno do que, afinal, seria a pintura.
Nessa investigação que o levou às regiões limítrofes da compreensão sobre a pintura, Frantz deslocou o acontecimento plástico, visual e pictórico para o campo da operação conceitual. Passou, assim, a privilegiar menos a feitura pessoal e individual do fazer-pintura para, em lugar, priorizar mais os processos e procedimentos que se valem dos códigos da pintura, de modo a confrontá-los às convenções que conformam o entendimento a respeito da cultura pictórica.
Nos desdobramentos vindouros dessa investigação inquiridora e problematizadora, suas experimentações e reflexões resultaram em desdobramentos diversos, que em comum expandem nossa compreensão não só do fazer-pintura, mas também de valores e premissas como criação, individualidade, autoria, intencionalidade e originalidade. Assim, na produção de Frantz, a pintura passou a ser questão de escolha, apropriação e edição. Ou de encontro, pensamento e decisão. Mas, contudo, sendo também e ainda pintura.
Daí, portanto, o título desta exposição de Frantz, cuja última individual no MARGS ocorrera no começo dos anos 1990. Abrindo mão de qualquer caráter retrospectivo, esta individual de agora se organiza em três eixos, cada qual em uma sala, de modo a explorar a complexa temporalidade que marca a produção de Frantz nas últimas quatro décadas. Não se trata, portanto, de uma abordagem cronológica em que etapas se sucedem evolutivamente. Até porque, em sua trajetória, os momentos e as fases se sobrepõem, vão e voltam, como um turbilhão no qual coabitam processos e procedimentos desenvolvidos em tempos diversos e que, no decorrer, complementam-se e desdobram-se.
O primeiro eixo, na Sala João Fahrion, reúne um conjunto de pinturas em grande escala, de diferentes épocas, algumas delas ainda inéditas. Aqui, são privilegiados os trabalhos originados a partir dos pisos e das paredes de ateliês de artistas forrados por Frantz com extensas lonas. Essas coberturas permanecem em cada lugar durante anos, recebendo resíduos de todo tipo que restam fora dos trabalhos alheios. Quando Frantz decide retirar os forros, os acúmulos de tinta e sujeira lhe surgem como indicações de um acaso que, a partir do seu processo de apropriação, enquadramento e montagem, permitem-lhe identificar e nomear as superfícies como pintura.
Dialogam com essas grandes pinturas-não-pintadas os diversos objetos apresentados na sala, que consistem em resíduos de tinta acrílica acumulados em potes e bacias que funcionam como formas e moldes. Espécie de alegoria a partir da matéria primeira da pintura, esses trabalhos enfatizam a abordagem conceitual com a qual Frantz desloca o campo pictórico para o plano objetual. Ao fim, tanto as pinturas quanto os objetos levam em comum à indagar sobre a materialidade e a presença da pintura, por meio da insinuação de um jogo entre falso e verdadeiro, ausência e presença, original e apropriação.
O segundo eixo da exposição revisita um episódio do passado em que a história do artista e a história do MARGS se interseccionam. Em 1982, Frantz apresentou no museu a exposição “Pichações”. Nela, mostrava suas pinturas baseadas nas intervenções escritas que encontrava nos muros, muitas delas de caráter político e subversivo, e que depois o levariam a outras obras, como a série pautada pela presença recorrente e expressiva do X, este símbolo dúbio, que ao mesmo tempo significa anulação e opção. Foi uma exposição audaciosa, e também provocativa, tanto pelo fato de um museu apresentar pichações legitimando-as como pintura, como por se tratar de um jovem artista, então com 19 anos.
Passadas quase quatro décadas, “Pichações” é agora remontada na Sala Pedro Weingärtner, procurando emular o significado e a experiência da exposição original ao reunir a quase totalidade dos trabalhos expostos em 1982, à maneira como foram apresentados. São obras que hoje se encontram em coleções particulares e acervos públicos, a exemplo do próprio MARGS. Complementam a experiência advinda dessa remontagem da exposição outras obras relacionadas à série “Pichações”, além de uma reunião de documentos históricos, procedentes do arquivo pessoal do artista e do Núcleo de Documentação e Pesquisa do museu.
Nesse sentido, Frantz – Também e ainda pintura consiste no ato inaugural de um ciclo expositivo e curatorial desta gestão intitulado “História do MARGS como História das Exposições”, com o qual se pretende revisitar episódios da história do museu – e de artistas que nele expuseram – a partir de exposições emblemáticas do passado.
Por fim, no terceiro eixo, é apresentado na Sala Angelo Guido um trabalho inédito de Frantz. Trata-se de “Liquid paper”, que se vincula à sua mais recente frente de pesquisa e realização, baseada na manipulação de catálogos de exposição. O trabalho integra o projeto “Roubadas”, no qual Frantz intervém nos discursos visuais e textuais contidos nas publicações artísticas, adulterando e editando as imagens e os textos que encontra ao longo das páginas.
Mais do que o embaralhamento e o apagamento das autorias, essa operação de apropriar-e-intervir dá a ver sempre uma obra outra, embora ao mesmo tempo impossível de ser desvinculada por completo de seu referente anterior. Assim, “Liquid paper” nos aponta para uma nova operação conceitual de Frantz, e que resulta em mais um desdobramento visual a pautar sua extensa produção. Efeito também de procedimentos de apropriação e intervenção, “Liquid paper” nos mostra que a realidade é sempre uma construção a ser mediada, e a arte a operação que se ocupa de intervir nesse real construído.
No conjunto e no arranjo dos três eixos, esta exposição mobiliza procedimentos e operações da produção visual de Frantz que, a partir de embaralhamentos e deslocamentos, incidem sobre a reconfiguração do olhar. A intenção é intensificar uma pertinente discussão e reflexão sobre os limites da pintura. Pois na experiência advinda da obra deste pintor que um dia pintou e hoje não mais pinta, ao menos em termos convencionais, encontramos a chance de renovar e ampliar nosso entendimento e experiência sobre o fazer e o pensar em torno do campo expandido da pintura.
Francisco Dalcol
Diretor-curador do MARGS
Doutor em Teoria, Crítica e História da Arte