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maio 8, 2019
Ecos Mecânicos: A Máquina de Escrever e a Prática Artística por Cristina Freire
Ecos Mecânicos: A Máquina de Escrever e a Prática Artística
CRISTINA FREIRE
A máquina de escrever evoca um passado próximo. Seu anacronismo tátil e mecânico destoa do mundo digital onde se tornou uma curiosidade. Como uma espécie de tipografia padrão, a máquina de escrever funcionou, até há algumas décadas, como uma prensa portátil e acessível capaz de associar a escrita, a fala e a publicação. A sonoridade característica das teclas torna a máquina de escrever um instrumento musical percussivo.
Sua arqueologia no Brasil revela um inventor desconhecido, o padre João Francisco de Azevedo (1814-1880), que ousou criar uma máquina de escrever no século XIX, no contexto de uma sociedade colonial e escravocrata. Há estudos que sustentam que seu projeto foi entregue a agentes estrangeiros e atesta um exemplo precoce (e mal conhecido) de extrativismo intelectual no Brasil.
Como dispositivo de escrita mecânica, a máquina de escrever situa-se entre polos antagônicos: a burocracia e a arte. No Brasil, a burocracia é parte da vida cotidiana. Preencher formulários, provar que uma pessoa é ela mesma envolve muitos registros e extensa papelada. Como dispositivo moderno, a máquina de escrever pode ser considerada uma tecnologia de liberação, pois favoreceu a emancipação feminina com a profissionalização da secretária e a formação técnica da datilógrafa, apoiada em escolas, cursos e manuais. As listas de palavras totalmente desarticuladas que vemos nos antigos manuais de datilografia fazem lembrar da poesia dadá.
Nas correspondências entre poetas, a máquina de escrever foi protagonista. As cartas datilografadas têm muitas vezes como tema a própria máquina. “Nossos instrumentos de escrita estão trabalhando em nosso pensamento”, escreveu o filósofo Nietzsche ao adquirir sua máquina de escrever. Nas primeiras décadas do século XX, Mário de Andrade chama de Manuela, em homenagem a Manuel Bandeira, sua máquina Remington. Nas páginas da Revista de Antropofagia, lê-se em letras mecânicas o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, entre outros manifestos e poemas.
Os poetas concretos, desde meados dos anos 1950, tiveram com a máquina de escrever uma parceira de plano e projeto, distante do artesanal. O espaçamento padrão e o branco da página funcionaram como elementos gráficos-estruturais. Com máquinas de escrever muitos artistas contemporâneos realizaram trabalhos em processos intermedia, resultando em poesia visual, incluindo cartas-poemas, poemas concretos, datiloscritos; datiloarte.
Publicações marginais circularam como envios postais e associaram-se aos meios de reprodução mais fácil naquele momento como o papel carbono, o mimeógrafo e o xerox. Muitos trabalhos chegaram de diversas partes do mundo para participar das exposições no MAC USP. Poemas visuais, publicações, manifestos, programas de ações e performances, descritivos de situações, ambientes e ações-partituras, fotografias com textos, etc.
Há uma significativa diferença no uso da máquina de escrever pelos artistas antes e depois da nossa era digital. No princípio, até meados da década de 1980, os artistas valeram-se dos recursos da máquina como dispositivo de escrita mecânica na construção da imagem-letra-palavra.
Hoje, o desuso da máquina de escrever, que oscila entre a inutilidade prática e o eclipse total, é índice do desparecimento programado de todas as coisas. Sua obsolescência sugere a possibilidade da emergência de novos sentidos poéticos e políticos, que tensionam esse vão indefinido entre o futuro e passado.