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abril 26, 2019
As Quimeras de Claudio Cretti por Tadeu Chiarelli
As Quimeras de Claudio Cretti
TADEU CHIARELLI
Claudio Cretti - Quimeras, Galeria Marilia Razuk, São Paulo, SP - 03/05/2019 a 01/06/2019
Faz anos que acompanho a produção de Claudio Cretti, artista nascido em Belém do Pará, mas que, morando há tantos anos na cidade de São Paulo, já é quase um paulistano nato. Recentemente esse interesse por suas esculturas ganhou novo direcionamento quando a ele acoplei minhas indagações sobre a trajetória de outro escultor, outro paulistano nato, só que nascido na Itália: Victor Brecheret.
Pensar a obra de Brecheret como constituída nas franjas entre a tradição da escultura europeia e as prescritivas modernistas para a escultura do início do século passado, me fizeram rever a mais recente produção de Claudio Cretti como constituída nas franjas que mal separam (ou separam ainda com alguma dificuldade) a escultura moderna da contemporânea. De modo geral a primeira sustenta-se na unicidade, na autorreferência e na raridade dos materiais (mármore, bronze etc.); a segunda teria como características principais o uso de materiais prosaicos, a dependência do espaço real onde se situa e a disponibilidade para ser manipulado pelo (ex) espectador.
Quimeras – título da série que Cretti apresenta na Cassia Bonemy Galeria, no Rio de Janeiro – são exatamente o que pode significar o termo: cada peça ali exibida se caracteriza como uma combinação heterogênea e muitas vezes desconcertante de vários objetos. Apesar da aparência estranha (a estrutura gráfica que as caracterizam não repele a eventual aparência de formas vegetais ou animais), são esculturas únicas tendentes a perdurarem no tempo e no espaço.
Levando-se em conta apenas essa última característica, elas poderiam ser incluídas, não apenas na tradição da escultura modernista, mas também na grande tradição da arte europeia, que sempre tiveram a unicidade da obra como ponto máximo de avaliação.
Mas as peças que configuram Quimeras possuem características que problematizam seu status dentro da tradição moderna. Além do fato (já mencionado) de serem constituídas por meio de articulações de objetos não previsíveis – batutas, arco de violinos, objetos para limpar instrumentos de sopro (artigos musicais que o artista encontra em lojas especializadas em Pinheiros, bairro onde mora), encadeados a cachimbos, zarabatanas e outros artefatos populares, que Cretti sempre colecionou –, muitas vezes elas são ainda mais problematizadas pela articulação entre algumas delas e as bases que as sustentam.
De fato, nesses casos, bases e esculturas tendem a resultar em uma única peça. Em outras ocasiões opta por situar suas peças em bases convencionais, guarnecidas por aparatos de acrílico que as envolvem e as protegem.
No primeiro tipo de ocorrência, o artista, ao transformar base e escultura num único objeto, o aproxima daquelas obras do escultor romeno Constantin Brancusi, que ficou conhecido como um dos fundadores da escultura moderna por integrar a base às suas esculturas, formando também um todo indissolúvel. Quando transformou base e escultura num único objeto, Brancusi integrou a obra ao espaço que a circundava, mesmo mantendo – é importante que seja aqui mencionado – a integridade formal das mesmas.
Mas as esculturas de Cretti não se resumem a essas formulações brancusianas porque não se adequam a elas com tranquilidade. Afinal, ao contrário das peças do romeno, as articulações de objetos sobre as bases se estruturam com alguma fragilidade, são instáveis e, como resultado de qualquer oscilação, podem ter suas extremidades direcionadas para outros sentidos que não aqueles decididos inicialmente pelo artista. Meio cambaios, se sustentam com dificuldade e parecem sempre estar prestes a sucumbir por sobre a base ou diretamente no chão.
Nessas formulações já se torna patente a relação ou a dependência dessas esculturas ao entorno, o que as desvinculam da busca pela integridade formal que caracterizou a escultura moderna.
(A aparente instabilidade das Quimeras de Cretti, essa submissão ao espaço real, por sua vez, remetem o espectador a algumas obras dos anos 1960/1970, ligadas à arte povera italiana, ao pós-minimalismo norte-americano e mesmo a um segmento importante de obras do escultor paulistano José Resende, um artista que, forjando sua poética sobretudo a partir dessas últimas vertentes internacionais que caracterizariam o contemporâneo, foi uma referência importante para Cretti em seu início de carreira).
Essa dependência do entorno, torna-se absolutamente explícita em suas peças de maior porte, que parecem assumir com mais voluntarismo certo aspecto gráfico que define suas peças menores, e em que se nota como as mesmas jogam com arsenais que replicam, desde a escultura tradicional – o uso do mármore e do granito nos remete diretamente a ela –, até a soluções que parecem embaralhar os conceitos de escultura moderna e de escultura contemporânea, esbarrando em certas configurações que dialogam com o site specific. Afinal, mesmo funcionando ainda como objetos autônomos e portáteis, essas peças são (talvez ainda mais do que as menores) absolutamente dependentes dos lugares que ocupam, trazendo-os para o bojo da proposição estética ali explicitada, o que faz com que o espectador se torne consciente de que ele e a obra ocupam o mesmo espaço.
Já em outras obras – subsérie Bijoux –, Cretti experimenta o contrário do que faz com as outras Quimeras. Ao invés de deixa-las à mercê das circunstâncias do tempo e do espaço, o artista as isola em estruturas de acrílico. Ali dentro, protegidas, as peças parecem atuar, em sutil alusão ao palco cênico, tão aparentado ao espaço pictórico tradicional. Com as Bijoux, as estruturas articuladas de Cretti se refugiam do entorno, como animas ou plantas numa estufa, obras que parecem se recusar aos aspectos mais desafiadores da experiência estética contemporânea, sem que essa recusa as isentem por completo de tais desafios.
Contemporânea ou moderna, moderna e contemporânea, a produção atual de Claudio Cretti tensiona e problematiza os limites dessas conceituações evidenciando que a obra de arte – e isso desde sempre – se estabelece como resultado ou como um flagrante de um encontro entre vertentes as mais diversas e, no limite, as mais díspares.
Se essa característica pode ser encontrada em diversos momentos da história da arte, parece não restar dúvidas de que nos últimos anos ela se tornou a própria definição da arte que atualmente se produz. Vivemos hoje, talvez mais do que no início do século passado, numa grande franja entre o passado e o presente, entre o moderno e o contemporâneo, sem que se vislumbre o surgimento de novos paradigmas para a arte como a entendemos hoje. A não ser, é claro, que a noção de arte como objeto que interage no e com o mundo acabe de vez sua inscrição na História.
Tadeu Chiarelli – março/abril, 2019