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abril 25, 2019

Rebote: correspondências a três por Rodrigo Moura

Rebote: correspondências a três

RODRIGO MOURA

Pai: Que coisas vermelhas você conhece?
Filha: Amarelo.


Há pelo menos três maneiras de se fazer uma exposição.

[scroll down for English version]

...assim como as memórias de viagem se empilham, os souvenirs disputam nichos escondidos na casa (na caixa, na estante, na cabeça, na sala de exposições). O bowl de cerâmica creme, comprado no mercado de pulgas de uma capital europeia e trazido no fundo da mala enroladinho numa camiseta branca roubada de um namorado, guarda pedras roladas de basalto colhidas na rua de um condomínio de artistas na China; ao lado, uma rocha vulcânica crispada, reminiscência de um vulcão ainda em atividade, a 2.829 metros de altitude, na ilha do Fogo, arquipélago de Cabo Verde...

Rebote se refere ao desafio de estabelecer diálogos e correspondências a três, aproximando práticas em pintura, fotografia, escrita e curadoria. Os pontos de partida são os próprios trabalhos, assim como experiências anteriores de colaboração entre os participantes. Não se estabelecem regras a princípio, mas as associações são construídas a caminho. As aproximações podem ser de caráter formal, com paridades entre as obras, ou abranger aspectos mais amplos. O espírito entrópico da pintura de Marina Rheingantz é o princípio animador inicial, diapasão das relações estabelecidas. Uma pintura de paisagem sempre em vias de se derreter, transformando em pura matéria inanimada aquilo que antes de ser forma já deseja ser figura, qualquer figura. Uma chuva que parece um elefante. Um guarda-chuva de sentidos. As imagens extraídas do arquivo de Mauro Restiffe são atestado da elasticidade espaço-temporal que determina sua prática. Os tempos se embaralham, as especificidades de lugar e data se interrogam numa espécie de sala de espelhos, não por acaso um de seus tropos. A escrita crítica e criativa é contraponto às imagens, voz entoada em conjunção aos temas principais. Uma escrita que se decanta no tempo, como nos fragmentos que compõem e interrompem a narrativa principal deste texto, sem que possam se separar dele, remontando às relações entre a frente e o verso dos bordados e entre a luz e a sombra das fotografias. Escrita manual, artesanal, residual, serragem de letras e palavras. Roteiro a posteriori.

...esse pensamento me veio claro depois da exposição na Biblioteca, quando não havia espaço para falar em técnica e todo mundo estava distraído demais com ideias sobre afeto e intimidade na fotografia e outras generalidades. A imagem mental que usei como antídoto a essa tendência foi a de um olhar que transferisse os atributos do aparato fotográfico diretamente para a visão humana. Enxergar o mundo por meio da fotografia, escolher a sensibilidade da película, resumir tudo às verticais e horizontais do quadro. Num sonho que tive na mesma época, eu visitava uma paisagem montanhosa na estrada de Ouro Preto e via tudo em preto e branco, com o contraste ligeiramente acentuado e apenas um ponto de cor no meio das rochas e da vegetação do cerrado. Uma cabana de madeira vendendo película, pura luz amarelo Kodak...

Rebote se refere aos efeitos reativos do contato de um corpo com o outro, “salto ou ricochete de um corpo elástico quando se choca com outro”. Justapor as fotografias de Restiffe às pinturas de Rheingantz pressupõe sublinhar algumas proximidades. Estas se manifestam aqui pelo sentido de lugar e de paisagem, e também pelo interesse por luminosidades atmosféricas. Efeitos reativos são inevitáveis nas disparidades de materialidade das pinturas, bordados e fotografias. O elemento fotográfico se camufla mais nas pinturas de Marina do que o contrário. Não há correspondência exata, mas antes, ecos.

Ocorrências de afinidades, por exemplo, nos desenhos de Jean Cocteau na Vila de Santo Sospir com os fios do bordado Uma passadinha (2018); nos confetti de fim de noite com as pinceladas granuladas; nas montanhas verticais com as montanhas horizontais; nos contra-luz cegantes; na linha das pinturas de Lorenzato penduradas no ateliê de Ricardo Homen com a linha de obras menores penduradas na sala da Carpintaria; no jóquei fotografado em Itália com aquele logo ali; na imagem em frangalhos de Minas Gerais: ressonância de Brumadinho na matéria lama das pinturas de Rheingantz, nostalgia barroca na Congonhas de Restiffe, um retrato na parede deste texto.

... as datas passam. Um dia quando, não dá – esta paisagem aparecerá aos seus olhos. Nova ou velha, que importa. É o testemunho – e o será nesse dia – de um céu estranho e vivido, de um romancista cujo único amor foi viver – passar – que é a paixão de todas...[1]


Rodrigo Moura é curador, escritor e editor. É autor da monografia Marina Rheingantz – Terra líquida (Cobogó, 2016), foi curador da exposição Mauro Restiffe – Álbum (Pinacoteca de São Paulo, 2017) e colaborou nesta exposição a convite dos artistas.

[1] Trecho de dedicatória do escritor Lúcio Cardoso em desenho de 1950


Rebound: Three-Way Matches

RODRIGO MOURA

Father: Which red things do you know?
Daughter: Yellow.


There are at least three ways to make an exhibition.

...as travel memories pile up, souvenirs compete for hidden corners in the house (in the box, on the shelf, in the mind, at the gallery). The egg-shell ceramic bowl bought in a flea market of an european capital and brought in the bottom of the suitcase, wrapped on a white t-shirt stolen from a boyfriend, holds basalt pebbles collected at an artist residence street in China; next to it, a crisp volcanic rock, memento of a 1,76 mile high still-active volcano, at Fogo, Cape Verde...

Rebound refers to the challenge of establishing three-way dialogues and matches, bringing painting, photography, writing and curating practices closer. The starting points are the artworks themselves as well as previous collaborative experiences between the actors. No rules are established at first, but associations are built along the way. Approximations may be formal, matching formally equal pieces, or also embody broader aspects. The entropic mood of Marina Rheingantz' painting is the kick-start, the touchstone of established relationships. A landscape painting that is constantly on the verge of melting, transforming into pure inanimate matter something that already wishes to be figure – any figure – even before taking shape. Rainfall looking like an elephant. An umbrella of meanings. The images taken from Mauro Restiffe's archives are proof of the time and space flexibility that outlines his practice. Time frames change order,placementand timing particularities cross-examine each other in a kind of mirror maze, not surprisingly one of his tropes. Critical creative writing is a counterpoint to the images, a voice intoned in conjunction with the main subjects. A writing that is disenchanted in time, like the fragments that comprise and interrupt the main narrative of this text, which are inherent to it, going back to the relations between the front and the back of embroideries and between light and shadow in photography. Handwriting, artisanal, residual, letters and words' sawdust. A scripted afterthought.

…this thought came clearly to me after the exhibition at the Library, when there was no room to talk about technique and everybody was too distracted by ideas about affection and intimacy in photography and other generalities. The mental picture I've used as antidote to this trend was of a vision that would transfer the photo equipment attributes straight to human sight. Seeing the world through photography, choosing the film exposure, summing it all up to the vertical and horizontal lines of the frame. In a dream I had around the same time, I'd visit a mountainous landscape on the road to Ouro Preto and I'd see it all in black&white, in slightly enhanced contrast and just a single colored spot among the rocks and the savanna flora. A wooden cabin selling film, pure Kodak yellow light...

Rebound is about the reactive effects from the touch of bodies against each other, “bounce or backlash of an elastic body as it hits another”. Juxtaposing Restiffe's photos with Rheingantz' paintings implies highlighting some proximities. These are expressed here through the sense of placement and the scenery, and also through the interest for airborne light. Reactive effects are inevitable in the material difference of the paintings, embroideries and photographs. The photographic element is more concealed in Marina's paintings than the opposite. There's no precise match, but rather echoes.

Affinity outbreaks, for instance, on Jean Cocteau's drawings at the villa Santo Sospir and the embroidery threads from Uma passadinha (2018); on the late-evening confetti and the grainy brushstrokes; on vertical and horizontal mountains, on blinding back-lights; on Lorenzato's paintings hanging on the walls of Ricardo Homen's studio and the line of smaller works hanging at Carpintaria; on the jockey portrayed in Italy and the other one right over there; on the picture in tatters from Minas Gerais: Brumadinho's resonance on the mud matter of Rheingantz paintings, baroque nostalgia on Restiffe's Congonhas, a portrait on this text's wall.

...time has passed. “Someday, when” is not feasible – this landscape will pop in your eyes. New or old, what does it matter? It's the exhibit – and it will be on this very day – of a strange vivid sky, by a novelist whose only love was living – passing – which is everybody's passion... [1]


Rodrigo Moura is a curator, writer and editor. He's the author of Marina Rheingantz – Terra líquida (Cobogó, 2016), has been the curator of the exhibition Mauro Restiffe – Álbum (Pinacoteca de São Paulo, 2017) and has collaborated in this show at the invitation of the artists.

[1] Excerpt from a dedication by writer Lúcio Cardoso on a drawing from 1950.

Posted by Patricia Canetti at 10:05 AM