|
abril 9, 2019
No meio-fio visual por Adolfo Montejo Navas
No meio-fio visual
ADOLFO MONTEJO NAVAS
Naquele meio-fio visual que sulca pelos caminhos ainda tensionados ou em articulação entre cultura pictórica, iconografia comercial, universos kitsch ou pop de consumo e imaginário contemporâneo, encontra-se esta fábula artística de Marcelo Cipis, cujas raízes se fincam também entre um passado cada vez menos recente (com uma melancolia moderna estranhada, cotidiana, em curso, até denotada no uso de cores rebaixadas, leves) e uma sensação onipresente de estar assistindo a uma latente dramaturgia de situações e fenomenologias, de nosso dia a dia já erodido de ideologias maximalistas, pós-histórico, líquido. Talvez porque cada vez mais faça parte da arte viva das entre-imagens reviver o moto-contínuo de que as aparências enganam. Daí por que, mais que nunca, o lugar obrigatório e crítico da pintura na globalização visual seja tão problemático quanto inquietante.
Sobretudo para obras que falam com uma sintaxe estética paradoxal (composições, figurações, cromáticas), que parecem procurar uma inocência, uma recuperação de certo elã vital das coisas, mas que fazem respirar uma suspeita instalada mais embaixo, a de que esta imagética é distópica e utópica ao mesmo tempo! (Não em vão, “A utopia é aqui”, de 2019, por exemplo, repotencializa pinoquiamente um nariz ampliado, que pode ter alguma alegoria política próxima.) Sempre naquela dialética macro/micro que habitamos, conseguindo assim ter uma dupla militância. Ou outro meio-fio: seja contemplado por meio de pequenas telas-alfabeto – que ensinam a renomear, a assegurar uma abstração com a mão – ou então um sabão que parece lingote ou camisas como produtos corporativos da ficcional firma industrial Cipis Transworld, ou ainda pinturas ou peças icônicas cuja formulação irônica, humorística – “Mulher Legér” (2016) ou “Jeff Koons suprematista” (2010) – rebaixa qualquer pompa estética a mais (seja institucional, mercadológica ou simplesmente coisificadora).
De fato, o ar da globalização pesa tanto quanto o da micropolítica, assim como o peso das vanguardas históricas (suprematismo russo, futurismo italiano, surrealismo), projetado em ecos sintéticos, metabolizados, convive com um pathos da subjetividade que quer estar em suspenso, quando não próximo ao entretenimento, à magia, ao sem peso, ainda rodeado de crise. O traço leve, perfilado, o esquematismo ascético e sensual de sua figuração chegam a ser neoprimitivos (do século XXI), e as cores tênues, mas vivas, voltam a enganar em sua aparência de alegria, quase procurando um estágio neutro possível, uma neutralidade estética quase quimera... Veja-se a aguda diferença entre uma risada e um boi, dois austeros títulos de pequenas telas recentes (2018), que exigem uma participação metapictórica, pelos referentes que gravitam (Delaunay, Arp, anúncios...), num empenho perceptivo oblíquo como é a ironia, como, aliás, acontece com Victor Arruda, artista com quem Marcelo Cipis tem algumas surpreendentes sintonias (configurações humanas recortadas, espacialidades suspensas ou certo background picabiano).
Contudo, a obra de Marcelo Cipis transita despretensiosa, aliada à sua sofisticação. Os seus signos, escritura-desenho-pintura-objetos, prometem uma transversalidade além dos gêneros paralelos com os que convive (ilustração, comic, propaganda, publicidade, design...); na verdade, sua poética funciona como uma convocatória poética, de nuances e sutilezas, formas de enxergar através do muro da realidade quando ele é mais opaco. E, por isso, a conquistada sensação de leveza, a sua respiração quase transparente. Outro contraste é que a superfície de suas telas é muito explícita, não joga com perspectiva, tridimensionalidade dentro dela, e sim fora, com quadros-fractais que se constelam de forma fragmentária, ou obras (em suportes diversos) que escamoteiam o todo como solução, sempre ingênua (retratos arquitetônicos exibidos em sua parcialidade compositiva, em flashback crítico – veja-se a série “Sala de estar moderna e abstrato moderno”, de 2018). E nesse jogo das formas e dos imaginários combinados, de escritura pictórica tão enfaticamente visual em sua cultura, nós, seus contemporâneos, saímos ganhando.
Adolfo Montejo Navas
março de 2019
Marcelo Cipis - DeaRio, Anita Schwartz Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ - 15/04/2019 a 15/06/2019