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fevereiro 16, 2019
Sobre o que é visceral por Felipe Scovino
Sobre o que é visceral
FELIPE SCOVINO
A primeira situação que me chama a atenção nos desenhos de Daniela Antonelli é a sua capacidade de criar uma espécie de filme ou sequência narrativa: o desenho cria uma nova relação com o mundo à medida que ele se apresenta sequencialmente ou de forma coletiva. Lado a lado, os desenhos criam uma história que se amarra conceitualmente em virtude de que personagens, símbolos e ações se repetem e, mais do que isso, se complementam. Claro que o desenho, em qualquer circunstância, possui autonomia. E aqui não seria diferente. De todo o modo, suspeito que essa relação inconsciente (já que não foi planejada pela artista) com o cinema ou com o encadeamento de ações não pode ser deixada de lado.
É importante que o espectador compreenda que toda a obra de Antonelli – sejam objetos, desenhos ou pinturas – se faz por meio de um sistema coerente e circular. Em seus desenhos, por exemplo, invariavelmente vemos surgir ao menos uma figura feminina, masculina ou mesmo andrógina envolvida em circunstâncias que contemplam o confronto ou a dialética entre vida e morte, assim como temas que variam entre separação, dúvidas existenciais, amor, solidão, entre outros. O uso de um nanquim aquoso sugere uma visceralidade nesses desenhos. São paisagens translúcidas que deixam à mostra as várias sobreposições de camadas e histórias contidas nas obras, sem adicionar qualquer peso a essa visualidade. São desenhos da ordem da água; fluem pelo papel de forma leve e espontânea. Mas, atenção: não há um excesso de lirismo que desemboque em ver o mundo como algo perfeito ou incondicionalmente preso ao amor pueril. Há uma visão madura e sensata sobre o que é o mundo, com seus medos, dores, alegrias, desilusões e contrastes.
Por trás dessa sensibilidade, há tragédia. São personagens em camas, aparentando um estado de convalescimento; alguém à deriva em seu barco; o muro isolando a casa; o casal que não se entreolha e permanece de costas um para o outro; novamente a casa, agora desabitada e distante; o personagem caindo como num fosso sem fundo, entre outras situações que configuram um estado de dor ou sofrimento. Penso ser exatamente esse um ponto importante em seu trabalho: o modo como Antonelli nos oferece histórias sob um estado dialético ou de contradição. Aparentemente o seu traço indica uma construção lírica, substanciada pelo estado onírico, com uma leveza e dinamismo da linha. Contudo, o que se torna aparente nessas construções é o desejo obscuro e original de revelar essa potência do trágico. Este não fixar-se em uma solução para convertê-la em sucessivas histórias que ganham um ritmo muito próprio converte-se em um saber-passar permanente de uma solução a outra, exercício que impede qualquer estagnação na artista.
É importante assinalar esse estado dinâmico da linha em sua obra. Nela não há centro. Suas linhas aparecem com uma liberdade de destinação que convida nosso olhar a percorrer toda a superfície da tela ou do papel, identificando essa narrativa que se compõe por quebras. Quebras que também podem criar uma analogia entre sua obra e um livro – os desenhos sendo entendidos como páginas, até por conta do tamanho deles, como numa história contínua e, mais, sem um começo ou fim razoavelmente identificado. Daí novamente a relação com o cinema. Sua obra lança-se contra qualquer hierarquização de elementos. Parece que cada nova solução ou pequeno conjunto de imagens conduz à solução seguinte, constituindo uma trama. Um embate contra o estático: assegurada sua vitória, fica a maneira como se entrega às possibilidades de um ritmo livre de qualquer limitação.
Gosto de pensar numa frase de João Cabral de Melo Neto sobre Miró para refletir sobre a obra de Daniela: “É contra o conceito limitado de compor (compor como equilibrar) que Miró empreende então sua luta obscura” . A sensação de falta de peso da linha de Antonelli é proposital, não só pelo caráter de fluidez da forma, que faz com que sejam criados esses territórios que se emaranham e que constituem a trama da obra, mas também por essa escolha que cria a sensação de que tudo se esvai, cai, parte, afasta, desfaz e, simultaneamente, une, agrega, confunde e compartilha. É nesse limite, novamente, que a composição se realiza: na percepção e identificação das coisas do mundo, pois estão lá presentes sua destituição e sua coesão. Compor, para a artista, significa balancear essas duas visões ou práticas do mundo. Portanto, isso não significa que Antonelli tenha abandonado completamente a preocupação de equilibrar. “É o equilíbrio que preside à construção de cada um desses quadros inscritos num quadro, cada um por si uma pequena estrutura clássica”.
O corpo é um arquétipo presente nos desenhos e em sua obra como um todo, por meio da presença constante – metafórica ou não – de carne e vísceras. Se, em seus objetos, o corpo e a carne são símbolos presentes, em seus desenhos e pinturas, as vísceras parecem ser um elemento recorrente. Uso a palavra víscera para ilustrar essa suavidade ou fina camada sobre a qual os acontecimentos se sucedem em suas obras bidimensionais. É como se estivéssemos furando com nossos olhos as diversas e delicadas sobreposições que guardam as histórias contidas nessas obras. Ao criá-las sob um estado de falta de densidade no qual os elementos parecem flanar sem gravidade pelo papel, vislumbramos uma condição de epiderme ou... víscera. Finas camadas de uma trama que se constrói a partir de várias imagens ou campos. Eis as vísceras. Por outro lado, a carne desse mesmo corpo se faz presente nas esculturas. Formadas por ossos e, ocasionalmente, com a adição de madeira, penas ou pedras, essas obras remetem a um estado arcaico. Ficam no limite entre o que é natureza e o que é cultura. Podem parecer abjetas à primeira vista, mas, rapidamente, me recordam a questão moderna colocada por Brancusi: o belo está presente inclusive na representação metafórica do mundo a partir de elementos do inanimado, num jogo (novamente) entre natureza e cultura, sem qualquer perda de adensamento poético. Nesse sentido, é importante atentar para o fato de que as obras de Antonelli possuem um vínculo estreito e direto: uma depende da outra, eu diria, para o fechamento desse ciclo. Um entendimento de que a representação do corpo em sua obra se dá de forma fraturada, pois cada suporte evoca uma circunstância própria dessa ideia de corpo, mas, ao mesmo tempo, global, já que a união dessas unidades constrói uma rede completa e unívoca.
Gosto de pensar que esse conjunto de imagens deixa aparente um corpo e um imaginário amparados em contradições – em alguns casos, incompatibilidades. Não há uma tentativa frágil de maquiar o que é o mundo. Contudo, isso não significa, de forma alguma, que o trabalho evoque constantemente a tragédia ou a tristeza, pois o que ele é, efetivamente, é a própria circunstância da vida.
NETO, João Cabral de Melo. Miró. Organização de Valéria Lamego. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, 2018, p. 16. Idem, p. 18-19.