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janeiro 20, 2019
Ta Tze Bao por Paulo Sergio Duarte
Ta Tze Bao
PAULO SERGIO DUARTE
Toda grande obra de arte se apresenta como um problema, não como uma solução. A obra de Antonio Dias não foge à regra, temos que enfrentá-la. Antes de tudo como conhecimento, aquele que não é religioso, nem científico, mas conhecimento artístico. E é disso que se foge hoje, com frequência, na arte contemporânea. O artista, ao contrário, o enfrenta, se confronta com ele e nos apresenta diante dos olhos, sem nenhuma condescendência. Arte e política sempre estiveram presentes na obra de Antonio Dias desde seu início, em 1962, às vezes de forma explícita, em outras de modo sutil, mas nunca panfletário, óbvio, sempre contribuindo e refletindo sobre a linguagem da arte.
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Ta Tze Bao, 1972 [1], é uma dessas manifestações, na longa série que o artista vai intitular The Illustration of Art (em inglês no original). Em Ta Tze Bao, o artista mais uma vez enfrenta o problema entre arte e política de modo inteligente e privilegiado para quem for capaz de fruí-lo. Trata-se, como sempre na sua obra, de uma fruição com reflexão. É preciso pensar no que se está vendo – é a contrapartida do público ao esforço do artista. Dazibao foram jornais murais chineses, em grandes ideogramas, surgidos nas paredes das cidades na China há muito tempo, desde a época do império chinês; existiam essas manifestações de cunho político ou moral. Mas, a partir de 1966, eles começaram a aparecer como uma dissidência à esquerda do Partido Comunista da China, a luta contra os “revisionistas”. Era o início da chamada Revolução Cultural. Os chamados Guardas Vermelhos viam burguesia por todo lado, na direção da Universidade, no teatro, na ópera. Foi nesse momento que a palavra Dazibao circulou no Ocidente. Ninguém sabia de fato o que se passava na China. Para nós, então, jovens ocidentais de classe média esclarecida, parecia uma grande transformação, a obrigação do intelectual se vincular ao trabalho efetivo, por essa razão apareceram as diversas organizações maoístas, dissidentes dos soviéticos e, mesmo, dos trotskistas. Dazibao era a eloquente gráfica da Revolução Cultural, que mascarava um verdadeiro massacre nos seus rituais de reeducação.
Antonio vai operar uma transformação. Toma a palavra Ta Tze Bao para título de seus trabalhos sobre o escândalo do Watergate. Watergate não era mais o conjunto de seis prédios, em Foggy Bottom, nas vizinhanças de Washington D. C. Era metonímia de um escândalo. Acredito que todos saibam do que se trata: culminou com a renúncia do presidente Nixon, em 9 de agosto de 1974, para evitar o impeachment durante sua campanha para a reeleição. O escândalo do Watergate culminou no sábado, 17 de junho de 1972. O papel da imprensa livre numa democracia foi um dos determinantes nesse evento. Nessa data, dois repórteres do Washington Post – Bob Woodward e Carl Bernstein – investigaram a invasão pelos republicanos nos quartéis-generais dos democratas roubando informações, e publicaram o que haviam encontrado. Posteriormente, diversos jornais nos Estados Unidos e no mundo estamparam nas primeiras páginas o escândalo.
Dazibao era o jornal por excelência da imprensa para a esquerda radical; se era livre ou não, pouco importava, o importante era depor os “revisionistas”, aqueles que divergiam do pensamento do camarada Mao. Para Antonio Dias, já em 1972, o verdadeiro Ta Tze Bao era o Watergate. Muito antes da renúncia de Nixon. Em Ta Tze Bao, 1972, o artista realiza um trabalho duplamente inteligente e radical. Vamos ver por quê. Em primeiro lugar se aproveita do ready made à moda pop como nunca havia feito antes: transpõe as primeiras páginas de dois jornais – do New York Times e do Corriere della Sera – tal como apareciam durante uma semana de novembro de 1972. Lembrem-se que, na época, o artista residia em Milão. Até aí nenhuma novidade. A pop art havia feito isso dez anos antes. Mas aqui não há simples ready mades ou objets trouvés. Dias realizou outros Ta Tze Bao; na primeira série de Ta Tze Bao, são aquelas pequenas cirurgias, o artista intervém sobre a página, numa série que delimita com vermelho as áreas da notícia em cada jornal – New York Times e Corriere della Sera –, aquela exibida e publicada em livro em 1978. Já vai aí uma inteligência.
Aqui não, na que temos agora, do mesmo ano, 1972, só vista três vezes, por curtos períodos, uma na Itália, uma em Hong Kong, e, recentemente, no Brasil, vai mais longe plasticamente. Avança sobre a arte conceitual e banha todas as páginas em vermelho e mais as desdobra, tudo vermelho. Destaca as áreas das notícias, as recorta sobre tecido pintado de vermelho na exata equivalência e as pendura sob cada página de cada New York Times e Corriere della Sera. Aqueles desenhos recortados mostram toda a área do Uncovering the Cover-Up, outra série do artista sobre o assunto. Esse balanço das áreas vermelhas superiores e dos pequenos recortes inferiores não é gratuito, ele vigora sobre a relação política da importância de uma notícia e a primeira página do jornal. Isso, na época das mídias sociais – Twitter, WhatsApp, Facebook – parece muito velho, mas não é; todo dia estamos marcados pelos nossos Dazibao eletrônicos que nos imprimem com suas urgências na palma de nossas mãos. O Ta Tze Bao de Antonio Dias, em papel, é atualíssimo, com uma vantagem, nos faz pensar sobre o mundo e sobre a arte.
Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2018.
1. Antonio Dias adota uma das muitas transcrições existentes, na época, dos ideogramas chineses para o alfabeto latino: Ta Tze Bao. Aqui, quando não estou me referindo explicitamente à obra do artista, estou usando a transcrição adotada para a língua inglesa pela Encyclopedia Britannica e para o francês pela Wikipedia nos dias atuais: Dazibao.
Ta Tze Bao
PAULO SERGIO DUARTE
Every great work of art is presented as a problem, not as a solution. The work by Antonio Dias is no exception; it must be confronted. Confronted above all as knowledge – not religious or scientific, but rather artistic knowledge. And this is precisely what contemporary art often shies away from today. This artist, on the contrary, confronts it, he faces it head-on and presents it to us in plain sight, without any condescension. Art and politics were always present in Antonio Dias’s work since the outset, in 1962, sometimes explicitly, sometimes subtly, but never in a superficially polemical way, always contributing and reflecting on the language of art.
Ta Tze Bao, 1972 [1], is one of these manifestations, in a long series that the artist titled (originally in English) The Illustration of Art. In Ta Tze Bao, the artist once again confronts the problem between art and politics in an intelligent and outstanding way for whoever is able to appreciate it. As always in his work, it is an appreciation the requires reflection. It is necessa ry to think about what one is seeing – it is what the public contributes in counterpart to the artist’s effort. Dazibao were Chinese wall-mounted newspapers that have appeared on walls in cities in China for a long time, since the time of the Chinese Empire, publishing manifestations of a political or moral character. But from 1966 onward, they began to appear as an expression of far-left dissidence within the Communist Party of China in the struggle against the “revisionists.” It was the beginning of the so-called Cultural Revolution. The so-called Red Guards saw the bourgeoisie on every side, in the university, in the theater, in the opera. It was at that moment that the word dazibao circulated in the Western world. No one really knew what was taking place in China. For educated middle-class westerners like us, therefore, it looked like a great transformation was underway, obliging an intellectual to roll up his sleeves. For this reason there arose the various Maoist organizations in dissidence to the Soviets and even to the Trotskyists. Dazibao was the eloquent graphic cry of the Cultural Revolution, which masked a true massacre in its rituals of reeducation.
Antonio would carry out a transformation. He adopted the word Ta Tze Bao for the title of his works about the Watergate scandal. Watergate was no longer the set of six buildings, in Foggy Bottom, in the environs of Washington DC. It was the metonym of a scandal. I believe everyone knows what it concerned: it culminated in President Nixon’s resignation on August 9, 1974, to avoid impeachment during his reelection campaign. The Watergate scandal began on Saturday, June 17, 1972. The role of the free press in a democracy was one of the determining factors in this event. On that date, two reporters of the Washington Post – Bob Woodward and Carl Bernstein – started investigating a break-in by the Republicans into the headquarters of the Democratic Party to steal information, sequentially publishing what their investigation revealed. The news later made headlines on the front pages of newspapers around the world.
Dazibao was the newspaper par excellence of the press for the radical left; few people cared if it was free or not, the important thing was to put down the “revisionists,” those who diverged from the thinking of the Maoist circle. For Antonio Dias, in 1972, the true Ta Tze Bao was Watergate. Long before Nixon’s resignation.
In Ta Tze Bao, 1972, the artist produced a work that was doubly intelligent and radical. We shall see why. In the first place, in the best pop art tradition, he appropriated a ready-made as he had never done before, transposing the front pages of two newspapers – the New York Times and the Corriere della Sera – just as they appeared during a week of November in 1972. It should be remembered that at that time the artist was living in Milan. Up to here, it was all par for the course. Pop art had been doing this for the last ten years. But these are not simple ready-mades or objets trouvés. Dias made other Ta Tze Bao works; the first Ta Tze Bao series involves those small surgeries where the artist intervenes on the pages, in a series that uses the color red to delineate the news areas in each newspaper – the New York Times and Corriere della Sera – shown and published in a book in 1978. Therein lies the intelligence.
What we have here now, from the same year, 1972, previously shown just three times, for brief periods – once in Italy, once in Hong Kong, and recently, in Brazil – goes further in aesthetic formal terms. He rides out against conceptual art, bathing the whole page in red, in a swath that extends outward a full page-width to the right. He highlights the news areas, cuts them out onto fabric steeped in red, in the exact shape, and hangs them under each page of each copy of the New York Times and the Corriere della Sera. Those cutout drawings show the entire area of Uncovering the Cover-Up, another series by the artist about the subject. The balancing of the red swathes above and the snippets below is not gratuitous; it speaks about the political relation between the importance of a story and its position on the front page of a newspaper. This, in the era of the social media – Twitter, WhatsApp, Facebook – may look dated, but it isn’t; every day we are marked by our electronic dazibao that print their urgencies on the palm of our hands. The Ta Tze Bao of Antonio Dias, on paper, is totally current, with an advantage, as it makes us think about the world and about art.
Rio de Janeiro, December 10, 2018
1. Antonio Dias adopted one of the many ways available at that time for transcribing Chinese ideograms into the Latin alphabet: Ta Tze Bao. Here, when I’m not explicitly referring to the artist’s work, I use the transcription currently used for the English language by Encyclopedia Britannica and for French by Wikipedia: dazibao.