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outubro 16, 2018
Subversão da Forma por Bernardo José de Souza
Nas sociedades ocidentais, cultura e natureza constituem esferas distintas, as quais designariam, grosso modo e respectivamente, o mundo criado pelo homem e o mundo que nos foi dado - portanto anterior a toda e qualquer forma de construção (racional) humana. Alternativamente, para os povos ameríndios, tudo o que há é cultura, não havendo separação absoluta entre homem, bicho, planta e mesmo objeto (há exceções), uma vez que estes também possuiriam alma, embora dotada de perspectivas diversas em relação à humanidade alheia.
As teorias do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sobre o Perspectivismo Ameríndio, formuladas a partir de suas pesquisas em meio às culturas indígenas da Amazônia, trazem à tona um novo filtro a partir do qual vislumbrar as relações travadas entre o homem e o mundo, entre a humanidade e as coisas que a cercam, inaugurando um processo de subversão da própria natureza de nossa existência e de nossas indagações metafísicas, uma vez que transformam, em larga medida, o outro num igual.
Para além das simplificações açodadas desta introdução, Subversão da Forma busca relacionar um conjunto de obras, mas sobretudo de artistas - Daniel Steegmann Mangrané, Erika Verzutti, Iberê Camargo e Luiz Roque -, que exploram um repertório comum, embora façam uso de vocabulários distintos e assaz particulares, em última análise imbuídos da curiosidade especulativa que lhes (nos) faz rever o mundo sob novas perspectivas, quer plásticas, políticas, afetivas ou mesmo místicas. Esta mostra nasce justamente do desejo de repensar as formas reconhecíveis que nos rodeiam, de instar o público a encontrar estranhamento naquilo que lhe (nos) é familiar, bem como identificar semelhança naquilo que parece estranho.
As obras presentes na exposição são dotadas de uma presença escultórica e, mesmo aquelas que à primeira vista possam parecer bidimensionais, são elas também investidas de uma carga senão coreográfica, altamente performática. Figuras metamorfoseadas em seres quasi mitológicos, sobre-humanos/inumanos, objetos que transcendem sua função para alcançarem um plano místico, reveladores tanto da geometria quanto da natureza amorfa do universo em seu primeiro estágio - afinal, a linha reta, bem como as curvas e as espirais - em suma, toda a forma -, derivam de uma mesma matemática, ancestral, anterior à própria ação humana.
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Os corpos que passeiam pelo espaço expositivo são todos os mesmos corpos, ainda que na aparência distintos - "o mesmo que o Outro"? -, e as obras são como reflexo de uma certa uniformidade entre a matéria humana e a não humana que, no entanto, se nos apresentam disformes, como se o humano houvesse sofrido alguma espécie de metamorfose. Há aqui um irmanamento entre os corpos e suas substâncias a desafiar nossa própria capacidade de significação dos elementos que nos circundam, como se fôssemos subitamente acometidos de uma miopia/distopia/epifania capaz de subverter as regras do jogo, nos reposicionando no centro de um vórtice ficcional que passa a responder pela realidade.
Este corpo que nos é dado a ver - e mesmo nosso próprio corpo - é imantado por uma zona de alta voltagem sexual, a qual equipara, a um só tempo, pulsões de vida, destruição e morte, fazendo atravessar nossos sentidos uma vaga de fantasias, ora febris, ora oníricas, ora paranoides, sempre idiossincráticas. Há no ar uma atmosfera predatória, canibal, um corpo devora o outro e os restos dão forma a uma nova natureza, quiçá perversa.
É como se as chamas tórridas do Museu onde arde um Brancusi (o incêndio no MAM Rio, de 1978, no filme de Luiz Roque) houvessem se alastrado para o espaço expositivo da Fundação Iberê Camargo e desconstruído as superfícies das obras, transmutando o passado em futuro, o belo no feio, o bicho no homem, o terrível no sublime, o natural no artificial. Quimeras ganham forma num apocalipse curatorial projetado in vitro, num laboratório onde forma e matéria evocam uma alquimia quântica, um universo paralelo.
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A suposta plasticidade absoluta da natureza (e de seus recursos naturais, da própria vida, no limite) acaba por encontrar um fim: ao ato de ganhar forma, ou dar forma - esta atividade própria do homem, mas em parte também do artista, do escultor -, sucede a aniquilação total de tudo o que conhecíamos previamente.
A filósofa Catherine Malabou nomeia plasticidade destrutiva ou plasticidade do acidente o fenômeno que rompe com todo e qualquer traço do que havia antes: a impossibilidade de preservar a essência do ente destruído, em que pese sua permanência física, formal. A ruptura neste caso é de tal ordem que não há mais ponto de retorno, solução de continuidade.
Uma explosão - ou espécie de morte - e o "vácuo" dela consequente, consistem no grande e maior risco para nossa aventura sobre o planeta. A natureza rompida, a humanidade dissolvida, a memória esfacelada, a Terra arrasada. Tal qual nos casos estudados por Malabou - a saber o Mal de Alzheimer e os traumas de guerra -, resta o corpo, desprovido de alma, da centelha que o estabelece humano ao invés de simples matéria inerte, desprovida de afeto e de vida.
Esta exposição é sobre o fim. E sobre o começo de um novo tempo, irreconhecível, inominável, inefável.
Bernardo José de Souza
Curador