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setembro 19, 2018
AVAF: aquele vestígio assim... feérico por Ricardo Resende
Do deslumbramento fatal dos vestígios e da ficção dos excessos da cor consciente, sem luz e brilho. No êxtase constante dos bailes de Vogue, é a celebração da consciência da demolição e recriação ou reconstrução, é trans-vida. Devorar o esplendor e a dramaticidade da arte barroca em montagens trans-luxuosas, fantasiosas, fastuosas, suntuosas, mágicas e deslumbrantes. O desejo pela imersão no fantástico da grande instalação pictórica aquele vestígio assim... feérico. É alucinação pura o que propõe esse salto no abismo das cores vistas nessa exposição.
De onde emanam? Depois de conhecer e observar a mistura de cores do povo Huari, do Peru, cultura milenar andina, silenciosa que combina laranja com rosa, rosa com verde, rosa com amarelo, laranja com verde, marrom com marrom, marrom e cinza, Eli Sudbrack mergulha e foca no poder da cor, concentrando-as no quadro das suas pinturas feéricas recentes. Essas novas pinturas transcendem a obra do avaf. A cor é elemento de comunicação para esse povo que transmite energia, além de unificadora dos seres humanos. Cor é cultura.
A “artificialização” da cor na pintura, que antes de ir para a tela é pintada na “janela” do computador, explorando as formas e as “tintas” digitais, é a abstração da abstração como simulação da tela na máquina digital. Em outras palavras, o que se vê numa pintura é exatamente o que se vê, nada mais do que isso.
Uma pintura sobre papelão corrugado pode ser tão somente as diversas cores sobre o papelão, da maneira como é pintado, e claro, também da maneira como interagimos com ela. “Não é nada mais do que o que está ali...” disse certa vez Robert Ryman, quando perguntado o que se via em suas pinturas.¹
As recentes pinturas do avaf (assume vivid astro focus, referência ao pronome pessoal Nós), podem ser vistas dessa maneira. Utiliza para pintar um material específico, o Liquitex Ultra Matte Medium, um fluido extensor que aumenta a espessura da tinta acrílica e lhe dá o aspecto de opacidade. Faz desse líquido uma mistura do produto com a tinta para conseguir o fosco das cores que caracterizam suas pinturas sobre papelão onde resultados translúcidos e fluorescentes se misturam com a cor sem nenhum brilho, foscas, de maneira que ficam na superfície da tela sem deixar passar a luz.
O avaf busca a opacidade para atingir as cores “puras mas fantasiosas” e luminosas vistas na tela do computador, que é por onde inicia suas pinturas. As faz como protótipos levadas depois para a superfície do papelão corrugado, rasgado e esfoliado, explorando assim sua rugosidade e aspereza. Revela muitas vezes nesse processo cores fluorescentes das camadas iniciais para adicionar mais brilho à tonalidade das cores.
Chegou nessa pintura, ainda como coletivo de artistas, como avaf, mas agora com uma prática mais individual e intimista. É a maneira de pintar que se expande pelo excesso de luminosidade sobre a superfície das cores que predominam em suas “telas”, como decorrência do que vinham fazendo nas suas montagens e instalações, também carregadas de cores vibrantes, vivazes, luminosas e figurativas, margeando com o abstrato.
De aparência sintética e requintada, de tantas cores “agitadas e eufóricas” que utiliza para pintar e construir os seus ambientes imersivos, acaba por conferir a essas pinturas uma nova materialidade com aspecto de “artificialidade”. De outra forma, se trata de uma pintura que parece superar a própria pintura, não permitindo uma atitude passiva ao observa-las. É a pintura de uma outra pintura.
O espectador é peça central em sua obra que pede a interatividade de quem a observa, sempre. Que pode ser tragado por suas instalações e pinturas onde as cores “puxam para dentro” quem as observa. Nesse sentido, a concentração e intensidade das cores impressionam, bem como o processo minucioso para atingir a profusão de tonalidades esplêndidas desejadas, que é o que nos faz submergir no “quadro” pintado que tem a escala humana. O artista chegou num formato que é como se tivéssemos diante de um espelho, do nosso tamanho, que se abre como janela para o mundo das cores. É como se estivéssemos sob o efeito de uma substância psicoativa, mágica, com sensações alucinatórias de formas e cores ultra vivas, que vêm em nossa direção, nos levando a um estado sensorial eufórico, de êxtase diante da cor.
Há todo um estudo de testes tonais para se conseguir as cores de maneira a fazer o olhar percorrer toda uma extensão, de cima para baixo, de baixo para cima, de um lado para outro e assim por diante, “aprisionando o olho” nesse percurso feérico sobre a superfície dessas pinturas. Uma cor puxa a outra. Ou uma cor complementa a outra mesmo sendo convencionalmente opostas. Não há como desviar dessa pulsação que emana das “telas” feitas de papelão corrugado, que acaba lhes conferindo visualmente certa aspereza e secura tátil visual, já que não é necessário tocar uma pintura para senti-la.
A intensidade esmaecida sem brilho que caracterizam essas pinturas vêm de dentro da própria cor, na sua opacidade sem profundidade. Mas nessas pinturas, minunciosamente estudadas em seus matizes, faz um estudo tonal de cada cor que vai “entrar nas telas”; sempre há uma justificativa, nada é por acaso.
Devemos olhar para o que vinha desenvolvendo ao longo de sua trajetória como coletivo em que os artistas traziam suas experiências pessoais e interesses contaminados por Eli Sudbrack, para dentro de um trabalho pensado e feito por muitas mãos. Um desdobramento ou uma experimentação que faz com que os artistas do coletivo explorem todo o seu potencial de criação sem “aparecer” individualmente. Vêm desfocados do personagem em uma experiência única de serem apenas artistas.
Nessa exposição, não poderia ser diferente, traz como avaf seus assistentes Gilson Rodrigues, Thiago Barbalho, Ricardo Alvez, Nadja Abt e uma ex-aluna e amiga, Camila Rocha, em uma instalação dentro dessa mostra onde tudo se confunde como um único trabalho. Um ambiente imersivo de cor, como deve ser, que é o ápice do deslumbramento visto nas telas e tapetes rodantes da grande sala da galeria. Dessa forma a mostra exerce a ideia do coletivo.
Na verdade, o que fazem nessas pinturas, é como um zoom sobre as paredes das instalações anteriores recobertas com o papel de parede, que caracterizam a obra. Quando mais nos aproximamos, mais abstraímos de suas formas e cores. Na aproximação e afastamento a imagem desaparece e reaparece.
Foi o que fizeram. Deram um zoom e veio a abstração da abstração. De algum modo eles recriaram suas instalações imersivas no espaço da galeria ao unir as pinturas com os ‘tapetes dançantes” que são meio xamânicos, meio ritualísticos, que de tanto rodar levam a cor e forma a um transe. Feitos de lã de alpaca tingida, são características da região andina e do povo Hauri. Nada mais é do que uma outra versão das pinturas sobre o papelão, agora suspensas rodopiando sobre as cabeças do público. Rodam rodam incessantemente em um movimento sem fim, ora parados ora rodando, coreografando dessa forma o centro da sala expositiva em rotações diferentes.
A cor riscada no tempo e no vazio, transforma-se em esculturas móveis.
É interessante observar que são as próprias pinturas a dar o título que as acompanham. No mesmo exercício que os nefelibatas no final do século XIX faziam ao desenhar com as nuvens, Eli observa suas pinturas depois de concluídas, buscando na abstração da abstração figuras ou formas figurativas desenhadas com formas abstratas. Vê coisas que lhe dá os títulos que acabam de alguma maneira, induzindo o olhar de quem as observa. Nada mais do que um exercício de ver figuras escondidas na abstração. Papagaio Buquê, Pastel Feérico, Marrom Bombom, Armadura Capacete Saia, Bérbere Abafativo, Prateleira Batom, BB (Barbie Brasília), Línguas, Gatos e Vasos, Adê Adè, Adejo Fúlgido Acabrunhado... Dá aos títulos um enfoque “mona” ou, em outras palavras, um toque gay ao modo de ver e ser.
O que se vê numa pintura, é exatamente o que se vê. Nada mais do que isso. Em outras palavras, uma pintura sobre o papelão corrugado nada mais é do que a tinta sobre o papelão corrugado ou como é pintado, e claro, também a maneira como a sentimos. Que nada mais é “também o que acontece a propósito das cores. Uma rosa sobre papel cinza colore de verde o fundo.”²
Como disse o artista paraense Marinaldo Santos, “o caboclo só quer duas coisas na vida: uma porta para entrar e uma janela para enxergar”. O que Eli Sudbrack fez foi um zoom no que o avaf fazia até ali. Ao olhar fundo na sua trajetória, através daquela janela, viu apenas cores e formas, a essência mágica do mundo.
¹BOIS, Yve-Alain. Painting as Model. Ryman’s Tact. Abstraction II. An October Book. Pag. 215.
²Merleau-Ponty, Maurice. O olho e o espírito. Cosac Naify Portátil 24: São Paulo, 2004. Pag. 133