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setembro 16, 2018
Alfredo Volpi e Ione Saldanha: o frescor da luminosidade por Paulo Venâncio Filho
Alfredo Volpi e Ione Saldanha: o frescor da luminosidade
PAULO VENÂNCIO FILHO
É extraordinário, mas não uma coincidência, que as fachadas tradicionais da arquitetura popular brasileira tenham originado as estruturas pictóricas iniciais de Volpi e Ione Saldanha. A simplicidade rítmica porta e janela das casas modestas, de casarões e sobrados se transferiram para a pintura de ambos. Ausentes o rigorismo e a ortodoxia da arte concreta, os elementos arquitetônicos e a sua geometria precária, repetidos, deram aos dois os fundamentos de uma abstração geométrica livre, flexível, lírica. A concatenação das formas estava ali, presente, diante deles, de tal modo que a estrutura abstrato geométrica de suas pinturas vem de uma aproximação circunstancial, afetiva, desinteressada de outros interesses além da simples representação dos seus motivos, sem programa ou ideologia. As fachadas são planas, a tela é plana, é por esta condição natural que ambas se comunicam e torna possível a transposição de uma na outra. Absorvem não só a geometrização arquitetural, também as cores, simples, claras, timidamente puras, caracterizam essa pintura na margem do construtivismo brasileiro, nem concretista, nem neoconcretista estrito. Para Volpi, as toscas fachadas das modestas casas da cidadezinha litorânea de pescadores – Itanhaém – produziram uma sensibilidade visual abstrata, retrato tão claro da vivência brasileira. O mesmo ocorreu a Ione diante dos imponentes casarões coloniais de Ouro Preto. Aquele conjunto arquitetônico grandioso, embora oposto à diminuta Itanhaém de Volpi, manifestava também a mesma organização imprecisa, a mesma emanação rítmica, quase descuidada, da estrutura arquitetônica, e aí toda a sua graça – a pintura quase como uma partitura em que estão colocados os ritmos sincopados das portas e janelas.
À parte, deslocados da centralidade artística, em posições heterodoxas e não-programáticas Volpi e Ione revelavam nas suas pinturas certos aspectos excêntricos à experiência construtiva brasileira; sem eles faltaria certa desconformidade a esse movimento, algo que distendesse e fosse além da estrita rigidez prescritiva. Em Volpi e Ione estão ausentes o impulso da vanguarda, a preocupação teórica, o desejo de ruptura. Os dois foram artistas menos das possibilidades da experimentação do que da intensa concentração no fazer. Nem por isso, deixaram de expressar um aspecto verdadeiro e autêntico da difícil e rápida modernidade brasileira. Quando nos anos 50 cruzam nas artes plásticas os vetores que pressionam mais ou menos as transformações artísticas, que partem de planos desiguais e desarticulados, o de maior impacto é o construtivismo, ao qual ambos respondem e reagem em sentido convergente. Volpi e Ione estão do mesmo lado da experiência construtiva como da vivência brasileira.
Não é só a desconsideração dos fatos e da cor local que caracteriza desde seu início a pintura de Volpi, em Ione é também ausente o elemento literário, narrativo, alegórico. Todos esses elementos tão sugestivos ambos vão desconsiderar, ignorar, e propor um espaço de construção, um ambiente real e abstrato, vivo. Para isso contribui a lírica contida, não derramada, antirretórica que um e outra manifestam. Ambos falam pouco, numa sintaxe de poucos elementos, direta, resultado de uma aquisição rigorosa e econômica dos meios pictóricos próprios.
Ponhamos um Volpi ao lado Ione
Em ambos existe um fundo quase impressionista, uma vibração que fraciona a luz e faz pulsar uma musicalidade ininterrupta. Dentro do construtivismo brasileiro, Volpi e Ione desenvolvem linhas que e tocam; coloristas francos, a luminosidade meridional que percorre suas pinturas é como a garantia de bem-estar que uma manhã de sol provoca, o pequeno formato intensifica a proximidade, a intimidade e traz as coisas para perto – quanto mais próximo, mais intenso.
A economia dos meios, o pouco foi o suficiente, para construir um modo avançado de pensar e mais ainda de realizar. Eliminar da tela tudo que era acessório, ou antes, partir das coisas simples elas mesmas, do imediato. Não era um programa pré-estabelecido, fazia parte do agir cotidiano, dos atos da vida. Evitar complicar; o que não quer dizer que a pintura não seja complexa, parecendo fácil, de alcance amplo e geral. Esta é uma qualidade da arte de Volpi. A comparação se faz sentido, mostra o enraizamento em uma experiência de grande comunicabilidade, como poucas na arte brasileira, é que é como essa vivência tão generalizada tem similaridades com a expressão pictórica que transmitem.
Volpi é o inventor da alegria na pintura brasileira. A mesma que se encontra nos bambus de Ione. Uma alegria saudável, como poucas, na arte brasileira. A pintura de ambos requer a clareza que a exigência da bela fatura esconde, essa mesma bela fatura que elimina, ou melhor, desconsidera. Só assim, creio, podem ser entendidos como « primitivos ». Volpi e Ione, entretanto, insistiam no domínio do instável, frágil e precário que sugere o ainda vivo, inacabado, mas esse inacabado tinha que se realizar na mais meticulosa e concentrada artesania sem a qual sua pintura não seria possível.
É a artesania “arcaica” de ambos que os remete a tal consideração. O método de Volpi; serrar as ripas, lavar e desengomar o tecido da tela, preparar a têmpera, nada mais era do que a expressão material e exterior de uma ciência da organização de uma vivência íntima; do mesmo modo que, relata Ione, o bambu deve ser cortado, deixado secar, ter seu interior perfurado de alto a baixo para não rachar, levar camadas e camadas de um branco preparatório, para finalmente receber as primeiras pinceladas. E é desse saber demorado, depurado e manual que surge uma pintura fundamentalmente instantânea, viva, fresca, insubstancial que, insistindo ainda, me parece o registro de um momento de satisfação e completude de um fazer e alegria. Nessa permanência do que é frágil, em sua constante reposição e repetição, na sugestão do precário a pintura circunda a transparência no seu limite. Neles o gosto pela fluidez da cor, pelo frescor da cor, faz dela uma tênue, mínima impregnação na superfície - a cor não tem peso.
O azul celeste é a medida da pintura; é luminosidade, é espaço, é o fundo de todas as coisas, o ambiente humano. O azul celeste é a constante, a medida de todas as coisas. A pincelada é pousada sobre a tela, também a cor, também as formas estruturadas com a “fatura manual dramaticamente precária e rica de sua matéria” (Mário Pedrosa). Essa solidariedade superficial, transparente, líquida, qualidade pictórica incerta, frágil, inacabada que ela produz, garante, paradoxalmente, a integridade da pintura. O fundo da tela, não se deixa ocultar, se entrevê o que está atrás, propicia uma vivacidade ao olhar nesta leve indefinição trêmula que a pincelada deixa na tela.
Tomemos um exemplo: as famosas bandeirinhas. É um “achado” da observação do mundo ao redor. É tanto o quadrado onde falta um triângulo quanto elemento decorativo das festas populares. E se a bandeirinha real coincide com a “bandeirinha” geométrica de Volpi, trata-se de mais uma prova do tipo de ativação que uma inteligência pictórica pode exercer sobre uma forma visual popular com a qual coincide.
Ione ao abandonar o chassi e a tela não realizava um movimento de ruptura, de abandonar e ir além da pintura, ao contrário, sua intenção era de continuar pintando, ou seja, dar continuidade a ela em outras superfícies.
As “bandeirinhas” de Volpi e o bambu de Ione têm conexões próximas. A “bandeirinha” é uma forma, o bambu um objeto, mas a bandeirinha é também um objeto e o bambu uma forma. A proximidade e afastamento, a correlação entre forma e objeto é o que desperta o interesse. O bambu é um “achado” ou uma “invenção”, não o resultado de uma experimentação, pesquisa, investigação, menos ainda problema teórico. Ninguém tinha pintado antes num bambu, mas ele estava lá e Ione o encontrou. E se transformou numa “tela” cilíndrica, um objeto pictórico. O bambu não tem lados, frente e verso, é uma superfície contínua, circular. E há ainda uma conexão plástica entre a verticalidade natural dos bambus e os mastros de Volpi, as tão frequentes diagonais que atravessam as telas de alto a baixo.
A pintura envolve completamente o bambu, é total. Cinético, pois sugere o movimento, o encadeamento rítmico das formas leva ao à necessidade do contorno visual da obra, o fim retorna ao começo. A verticalidade presente nas pinturas, derivada da estrutura arquitetônica inicial, encontra o objeto perfeito; por um lado forma geométrica – cilíndrica – por outro matéria orgânica; o rigor geométrico com a plasticidade orgânica. O natural é ultrapassado por um processo que transforma em objeto. O percurso é demorado, etapas e mais etapas até atingir a superfície adequada. Mas, ao final, exalando a presença da coisa viva, o mesmo frescor da luminosidade que compartilha com Volpi.