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setembro 16, 2018
Matheus Rocha Pitta: Caminho da Pedra por Luisa Duarte
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
Carlos Drummond de Andrade
Revista de Antropofagia, 1928
Incluído em Alguma poesia (1930)
Caminho da Pedra, de Matheus Rocha Pitta, articula quatro diferentes obras da trajetória recente do artista em uma única e inédita instalação, pensada especialmente para o espaço da Galeria BNDES. Os trabalhos, datados de 2014 a 2018, são construídos em um agenciamento no qual a poesia nasce do encontro com uma realidade hostil, assim como no poema de Carlos Drummond de Andrade, que batiza a exposição. O artista realiza aqui uma operação poética na qual instaura uma subversão fina: faz do encontro com o obstáculo um acontecimento capaz de gerar afetos outros que não o imobilismo, ou melhor, entende o imobilismo (a petrificação), a incapacidade de agir, como uma potência. Ora, em tudo tal premissa é inversa aos valores dominantes na nossa contemporaneidade. Tudo ao nosso redor nos diz para agir, progredir, ultrapassar obstáculos. Qualquer parada, pausa, refugo se torna sinônimo de desajuste. As quatro proposições do artista hoje exibidas – Ao Vencedor as Batatas, Sopa de Pedra, Leite de Pedra, e Primeira Pedra – surgem dispostas no chão da galeria, sob uma luz fria e baixa, como que convocando uma aproximação cuidadosa, permeada pelo silêncio, na contramão de uma atenção dispersa tão comum na atualidade.
Caminho da Pedra alia, a um só tempo, uma investigação poética rica acerca do nosso tempo a uma formalização marcada pela síntese. Note-se que as obras se encontram deitadas, literalmente. É preciso força para se apresentar assim ao mundo. Não ereto, veloz, mas pousado, habitando as margens, na penumbra. O artista afirma um descompasso intencional com o tempo cronológico filiado aos valores dominantes de produtividade, desenvolvimento, performance, eficácia – o tempo dos “vencedores”, o tempo do progresso. Ao trocar leite por pedra, troféu por batata, ao ofertar uma sopa de pedra que é também alimento, o artista ilumina a face fantasmagórica das mercadorias, em sua indiferenciação que, no limite, finda por nos indiferenciar, tornando-nos, igualmente, mercadorias.
Caminho da Pedra surge assim como mais uma etapa dentro de um programa poético desenvolvido com altas doses de coerência, experimentação e aposta ao longo dos últimos quinze anos. Comparecem aqui os elementos centrais de uma pesquisa que mobiliza as urgências do presente, mas sem transformá-las em espécies de commodity. Ao contrário, o artista escova o presente a contrapelo, habitando-o inteiramente, mas em um descompasso constante, pois sabe, seguindo Giorgio Agamben, que “ser contemporâneo significa ser pontual a um compromisso ao qual se pode apenas faltar.”
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Inspirada na expressão criada por Machado de Assis, a obra Ao Vencedor as Batatas (2016) consiste em um troféu de batatas que é oferecido ao público durante a exposição. A escultura é composta de batatas, sacos plásticos e uma mesa de vidro e tijolos que sustenta troféus de cimento. As batatas são disponibilizadas ao público e estão sempre frescas. A primeira parte da obra ocorre quando o artista se apropria de imagens de jornais que reproduzem o gesto de vencedores ao levantar ou beijar uma taça. Matheus Rocha Pitta opera, então, uma substituição: saem os troféus, entram as batatas; os gestos, então, aparecem deslocados de sua finalidade. No lugar da prata ou do ouro a serem beijados pelos raríssimos vencedores, a batata de quase todos. Note-se que troféu é um termo cuja origem vem do grego tropain que significa uma reviravolta, um “twist” de um exército em uma batalha que o torna vencedor. Em uma estela, uma grande lápide de cimento, estão inscritas as imagens de jornais nas quais os vencedores comemoram erguendo batatas.
Sopa de pedra (2014) é uma obra de Matheus Rocha Pitta na qual é servida em praça pública uma sopa feita tanto de legumes verdadeiros quanto de legumes esculpidos em pedra sabão. Gesto, escultura e comida, índices fundamentais da poética do artista, se encontram aqui reunidos. Na exposição o que vemos é um memorial do trabalho no qual elementos que o formam são exibidos junto a vídeos, fotografias, ao lado da narrativa da estória que envolve a origem da sopa de pedra. Esta nos conta sobre um estrangeiro (em algumas versões um monge, em outras um soldado) que chega faminto a uma cidade, cujos habitantes lhe negam o pedido de comida. O estrangeiro então se senta na praça principal, acende um fogo, enche sua panela de água e joga ali algumas pedras. Curioso, um habitante lhe pergunta o que está fazendo. “Uma sopa de pedra, hmmm, está ótima, mas com algumas batatas ficaria ainda melhor”, responde o estrangeiro. O curioso volta com algumas batatas, que vão direto pra panela. Outro habitante lhe faz a mesma pergunta, no que o estrangeiro responde que a sopa ainda não atingiu toda sua potência – assim a sopa ganha mais ingredientes à medida que a atenção dos habitantes aumenta. Uma vez pronta, as pedras são retiradas e todos tomam a sopa juntos. As pedras aqui são um signo da fome mas também da partilha: a fome é aquilo comum a todos, compartilhar a sopa é também uma partilha da fome. Na receita da sopa de Matheus, as pedras, no lugar de serem retiradas no momento de comer, são adicionadas ao prato ao lado dos ingredientes verdadeiros. Ao longo da mostra será servida uma Sopa de pedra no Largo da Carioca, próximo ao BNDES.
“Tirar leite de pedra” é uma expressão popular que significa fazer algo impossível, conseguir bons resultados apesar de condições adversas. De certa forma temos aqui uma tradução do famoso dito de Hélio Oiticica: Da adversidade vivemos. Em Leite de Pedra (2018), Matheus Rocha Pitta, em parceria com a ONG Redes da Maré, convidou moradores a tirar leite de pedra, literalmente: um litro de leite foi oferecido em troca de um quilo de pedra. As caixas de leite foram esvaziadas (os participantes levavam garrafas vazias) e preenchidas pelas pedras. As caixas com pedras se converteram, então, em “tijolos”: ali foi jogado cimento de modo a manter as pedras juntas. A imagem do leite na embalagem foi mantida em cada “tijolo”, que por sua vez, são unidades da escultura hoje exibida no espaço expositivo. O resultado parece impossível: um pallet de leite (1080 litros) petrificado. A mesma unidade de medida usada na distribuição da mercadoria retorna como signo de uma redistribuição: o capital usado no mecanismo de produção da obra não foi o dinheiro, mas o impossível, a pedra. O artista instaura um acontecimento a um só tempo poético e crítico em relação aos fluxos (altamente abstratos por um lado) econômicos do capital.
Em Primeira Pedra (2015), um pequeno cubo de cimento assinado pelo artista e datado, é oferecido ao público, não de graça, mas em troca da “primeira pedra encontrada na rua que encha sua mão”. Somos chamados a sair do espaço expositivo em busca de uma pedra, realizando assim um vínculo com a cidade. Retornando, carregando a pedra encontrada ao acaso, nos deparamos com aquilo que poderia ser uma arma em nossas mãos. A Primeira Pedra é justamente essa arma, essa pedra que não é atirada, tendo sua potencialidade violenta interrompida para, ao contrário, mobilizar afeto e pensamento a partir da ausência de um ato. No espaço expositivo folhas de jornal de ontem estão dispostas no chão, formando uma grade. Sobre as mesmas estão dispostos os pequenos cubos de concreto. À medida que os cubos são trocados, novas folhas são dispostas, com seus respectivos novos cubos. Ao longo do tempo os cubos se convertem em uma coleção de pedras recolhidas pelo público.